Há 44 anos, uma menina que detesta sopa e enche os adultos com perguntas embaraçosas cativa leitores e ilustra materiais da esquerda pelo mundo. Símbolo da rebeldia latino-americana, Mafalda segue atual com suas bandeiras feministas, sua preocupação com o destino da humanidade e sua ironia infantil, porém nada inofensiva.

Mafalda é uma menina argentina de cerca de sete anos, filha de pais de classe média, um empregado de uma companhia de seguros e uma dona-de-casa. Está sempre escutando rádio ou vendo TV em busca de notícias favoráveis à paz no mundo, tomado pela guerra do Vietnã, e ao progresso de seu país, vitimado pela inflação e pela migração de seus jovens por falta de oportunidade. Politizada e indignada com a forma como os adultos prejudicam o mundo, Mafalda tornou-se símbolo de contestação na América Latina e na Europa.

O criador de Mafalda é o argentino Joaquín Lavado Tejón, o Quino, que começou a publicar desenhos em 1954 na revista Esto Es. Mafalda surgiu quando Quino precisou fazer um trabalho publicitário para uma indústria de eletrodomésticos chamada Mansfield. Ele deveria inventar uma história em que aparecessem produtos da marca, sem dizer seu nome, mas com insinuações nos nomes dos personagens, que deveriam começar com M. A denominação Mafalda veio de um filme argentino chamado Dar La cara, que tinha uma personagem com esse nome.

Os desenhos ficaram arquivados porque os jornais logo perceberam que se tratava de propaganda de uma marca. Somente em 1964 um amigo jornalista de Quino pediu os desenhos para a revista Primera Plana. Seis meses depois, a história fez tanto sucesso que precisou passar de semanal a diária.

Mafalda reflete a ironia e o ceticismo de seu criador. Perguntado depois do fim da publicação das tiras como via o mundo atual, Quino foi duro: “Mal, muito mal. Alegro-me de não ser jovem”. Talvez por isso Mafalda e seus amigos sejam tão pouco crianças no sentido ingênuo de ver a vida. Exemplo disso é uma frase cortante da personagem: “O que você gostaria de ser se vivesse?”.

Os especialistas no mundo de Mafalda dizem que o personagem Felipe é a encarnação de Quino, o que o próprio já reconheceu. Felipe é tímido e faz o possível para não incomodar ninguém, assim como seu autor, um menino de Mendoza, interior da Argentina, filho de pais espanhóis.

Já Manolito representa a ganância capitalista. Filho de um comerciante espanhol que migrou para a Argentina, o menino só pensa em dinheiro e em como fazer crescer o negócio do pai. Pouco vive a infância, uma crítica de Quino ao conservadorismo e à falta de imaginação provocada pela busca incessante do lucro.

A maturidade das crianças de Quino contrasta com a mediocridade dos pais de Mafalda. Enquanto a mãe abandonou uma carreira para se dedicar ao lar, o pai é um escravo da contabilidade de uma grande empresa, que se aliena da realidade na obsessão pelas plantas.

O socialismo está presente em várias tiras. Num mundo que ainda convivia com o chamado o stalinismo da URSS e do Leste Europeu e o castrismo de Cuba, é natural que o tema ocupasse e confundisse a cabecinha de Mafalda. Quando Felipe explica a ela que os peões vêm antes do rei e da rainha no xadrez, Mafalda custa a acreditar e acusa o pai do amigo, que o ensinou as regras, de socialista.

O clima subversivo da época contaminou a Argentina. A impressão de Mafalda é a de que os argentinos só gritavam para dizer “greve!”. Em várias situações a menina associa o socialismo ao totalitarismo e à falsa igualdade, reflexo do stalinismo que desvirtuou os princípios da Revolução Russa.

Mafalda também é um símbolo do feminismo infantil, mostrando que as meninas desde cedo podem aprender a se valorizar e buscar sua independência. Essa batalha pela autonomia feminina se evidencia nas discussões com Susanita, que só pensa em ser mãe de um médico, casar-se e ser dona-de-casa. Num dos diálogos, Mafalda diz que não há problema em ter filhos, “mas os tempos mudam. Além de ser mãe, hoje a mulher deve contribuir com o progresso, fazer coisas importantes”. Susanita entende que uma das coisas que uma senhora importante pode fazer é jogar bridge enquanto espera o marido chegar.

Durante os nove anos em que suas tiras foram publicadas, o mundo viveu intensos conflitos que certamente influenciaram a criação de Quino. Em suas tiras, Mafalda se interessa mais pela guerra no Vietnã e pela ameaça atômica do que pelo mundo de menina de Susanita.

No dia 15 de março de 1962, quando Malfada nasceu, o governo da Guatemala anunciava que 12 guerrilheiros haviam morrido em batalhas contra o exército. Quando foi publicada a primeira tira de Mafalda, em 29 de setembro de 1964, o Equador vivia protestos e renúncias de ministros pela alta dos impostos. Os EUA tinham acaba de promover a invasão contra Cuba, na Baia dos Porcos.

Quando Manolito aparece pela primeira vez numa tira, em 29 de março de 1965, a embaixada dos EUA em Saigon, no Vietnã do Sul, sofreu um atentado, ao qual o governo americano reagiu bombardeando uma ilha sul-vietnamita. Quando Malfada se despede de seus leitores, em 25 de junho de 1973, o Senado dos EUA enfrentava o presidente Richard Nixon pelo bombardeio no Camboja.

O que Mafalda diria sobre o mundo de hoje, das peripécias do governo Bush e de toda ladainha neoliberal?

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