Hertz Dias é militante do PSTU e vocalista do grupo Gíria Vermelha | Foto: Sérgio Koei

2023 marca os 50 anos do nascimento do Hip hop no Estados Unidos e sua disseminação pelo mundo. Um movimento que uniu o “break, o rap e o grafite, com o propósito de diminuir os conflitos entre as gangues, denunciar o racismo e reivindicar melhoria das condições de vida dos negros, dos latinos e dos caribenhos”, como pontua o rap Hertz Dias, vocalista do Gíria Vermelha e militante do PSTU no Maranhão.

Hertz foi um dos precursores do hip hop brasileiro, na década de 1980, na cidade de São Luís. Junto com os outros jovens, negros e pobres da periferia, fundou o Movimento Hip Hop Organizado do Maranhão, que em 1992 passou a se chamar Quilombo Urbano. Compus música que ecoou forte no Nordeste, integrou o Clã Nordestino e hoje é vocalista do Gíria Vermelha.

Leia a conversa do Opinião Socialista com Hertz Dias.

Em 1973, em uma festa no Bronx, em Nova York, nascia o Hip hop. São 50 anos de cultura que ganhou o mundo. Quais motivos levaram esse movimento negro, rebelde e inovador a tornasse mundial?

Hertz Dias – A mundialização do Hip hop é produto também da mundialização da indústria cultural. Tivemos conhecimento do Hip hop através de filmes como Break Dance e Beat Street. Este último, bem menos hollywoodiano e mais próximo do contexto que fez com que o DJ americano, África Bambata, unisse o break, o rap e o grafite, e criasse o Hip hop com o propósito de diminuir os conflitos entre as gangues, denunciar o racismo e reivindicar melhoria das condições de vida dos negros, dos latinos e dos caribenhos. Por lá, o contexto era da guerra do Vietnã e da luta pelos direitos civis. No Brasil era de luta dos trabalhadores contra a ditadura militar. Esses caldeirões políticos influenciaram no caráter subversivo do Hip hop.

Como foi o Hip hop foi se desenvolvendo no Brasil? O que deu a construção dessa cena cultural em nosso país?

Existem dois momentos distintos, mas combinados. O primeiro é do Hip hop espontâneo, a chamada “febre do Break”, na década de 1980. O outro é a do surgimento do Hip hop organizado, no final dos anos 1980 e início de 1990. Nesta fase, surge os grupos de rap numa pegada bastante politizada, principalmente de denúncia da violência policial e do racismo. A indústria cultural trouxe o Hip hop ao Brasil, mas por aqui ele se expande por fora dela e da grande mídia, o que fez do Hip hop brasileiro o mais politizado do mundo. Para isso, os movimentos organizados, as rádios comunitárias e as pequenas gravadoras foram fundamentais. Isso foi tão profundo que quase todos os principais grupos de rap do Brasil foram presos ou processados na década de 1990.

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Você é parte da história do Hip hop nacional. Junto com outros artistas maranhenses, ocupou espaços públicos para trocar experiências e mostrar em local aberto um novo estilo de dança e música. Você foi parte da fundação do Movimento Quilombo Urbano e integrou o grupo de rap Clã Nordestino. Fale um pouco sobre esse processo.

Fui um dos primeiros dançarinos de break do Maranhão. Comecei em 1984, mas já tinha uma galera dançando. No final dessa década, comecei a contar rap e compus a canção Menor Abandonado, que virou um hit em São Luís. Junto com outros camaradas, fundamos o Movimento Hip Hop Organizado do Maranhão, que em 1992 passou a se chamar Quilombo Urbano. Esse período coincidiu com uma forte criminalização das “galeras” que se organizam para ir aos bailes de funk. Foi sobre essa galera que incidimos com dois projetos: o “Ruas Alternativas” e, depois, o “Periferia Urgente”. O esquema era ir direto nas quebradas mesmo, colocar o som na rua e dialogar com eles. Ganhamos vários para o movimento, inclusive o companheiro Verck, meu parceiro de grupo e professor universitário. Ele era membro de uma das primeiras gangues de São Luís. Em cada um desses lugares a gente montava as posses, que era o movimento organizado por bairros. Tínhamos bons b-boys, bons grafiteiros e o Clã Nordestino veio coroar isso aí no rap.

Como esse processo de desenvolveu?

Gravamos um CD demo que estourou no Nordeste. Zeca Baleiro escutou uma música que escrevi chamada Periafricania e se propôs a produzi-la e a participar da gravação do nosso álbum, que tinha ainda participação do Zafrica Brasil, Rappin’ Hood e uma base produzida pelo DJ KL Jay (do Racionais). Na fase de masterização do álbum teve uma divergência entre nós sobre o apoio à candidatura de Lula (PT) no primeiro turno das eleições de 2002 e o grupo rachou. Eles mantiveram o Clã Nordestino e nós formamos o Gíria Vermelha.

O Hip hop encontrou voz e ganhou espaço com rappers abordando questões políticas e sociais. Isso se mantém ou sofreu mudanças ao longo dessas cinco décadas?

Na minha opinião se mantém, com contradições, mas se mantém. A grande mídia apresenta aquilo que convém. Na década de 1990, também era assim. A diferença é que quem ditava as regras naquele período era o movimento e não a indústria cultural. Hoje o Hip hop é mais dinâmico, mais expansivo, porém menos organizado. Muitas ideologias burguesas estão dentro do Hip hop, principalmente na fala de muitos grupos de ponta do mercado e isso desce para quem está em baixo. A indústria cultural tenta sufocar o caráter subversivo do Hip hop. Faz com que a galera se sinta empreendedora, patrão, playboy de pele preta: o tal “favela venceu!”.  Mas, isso não é culpa da nova geração. Quase todas as antigas organizações de Hip hop se transformaram em ONG, quando o PT esteve no governo e pisaram no freio da crítica política. Muitos grupos começaram a dizer que tinha que tirar o “R” da revolução, que a cena era a “evolução”, que meu partido é o “rap”, é “periferia”, quando a maioria estava alinhada ao PT.  Isso aconteceu com quase todos os movimentos sociais, porque não aconteceria com o Hip hop?

Qual a sua avaliação da cena atual do Hip hop no Brasil?

Acho que essa nova geração é bem mais explosiva do que a minha. Falo isso olhando por baixo, não para quem está na ponta de lança do mercado. Não existe futuro para essa juventude por dentro do capitalismo. Veja, quando estourou as Jornadas de Junho em 2013, o Hip hop participou timidamente, porque era uma explosão principalmente contra o governo Dilma (PT). Se estourar uma nova Jornada de Junho, já imaginou em que pode se transformar as batalhas de rima? O PT sabe disso e os governos estaduais também. Por isso, Lula está usando o decreto de 50 anos de Hip hop para dar um “cala boca” no movimento, ao mesmo tempo em que empurram Reforma Tributária, o Arcabouço Fiscal e estão privatizando presídios para transformar favelado em “mercadoria”. O Hip hop jamais voltará a ser o que foi na década de 1990, mas também não pode voltar a ser o que foi durante os 13 anos do PT. Para ser 100% favela, tem que ser 100% contra quem é contra a favela e a classe trabalhadora.