O que há em comum entre o naufrágio de uma embarcação no amazonas com a soda cáustica no leite e epidemia de dengueUm curto esforço de memória é suficiente para trazer à tona episódios trágicos da recente história do país. Ainda estão frescas na cabeça de muitas pessoas as imagens do terrível trajeto feito pelo avião da TAM no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, antes de chocar-se a um prédio da empresa e consumir-se em tenebrosa bola de fogo. Antes dele o fatídico vôo 1907 da GOL. O Boeing 737-800, partindo de Manaus, chocou-se com o Legacy 600, fabricado pela privatizada Embraer, e terminou seu trágico e curto vôo em plena floresta amazônica. Em todos os casos centenas de famílias enlutadas buscando explicação, motivos e culpados.

Mas não é apenas o caos aéreo das filas em aeroportos, dos aviões e helicópteros caindo. Já tivemos água oxigenada e soda cáustica no leite; anticoncepcionais que não passam de pílulas de farinha; gasolina batizada com qualquer tipo de porcaria; queda de estádios de futebol, e por aí vai.

Desastre no amazonas
A mais recente, e trágica notícia envolvendo episódios do que chamaremos imprevidência social vem do extremo norte do país. Já somam 32 vítimas fatais os corpos encontrados, havendo ainda desaparecidos. Este é o saldo, até o momento, do naufrágio da embarcação Comandante Sales ocorrido no dia 4 de maio. A embarcação não possuía lista de passageiros e tampouco registro junto à Capitania dos Portos.

Segundo a grande imprensa existem cerca de trinta mil embarcações cadastradas no Pará e Amapá. No Amazonas em torno de 25 mil. Estes números tratam de embarcações cadastradas. Quanto às embarcações sem cadastro junto à Marinha não existiria nenhum tipo de levantamento. Entretanto o próprio comandante da Capitania dos Portos da Amazônia Oriental – Capitão de Mar e Guerra Kleber Silva dos Santos – admitiu junto à imprensa ser reduzido o contingente para fiscalização das embarcações na região. Seria um total de 110 pessoas, sendo 50 em Belém, 30 em Santarém e outras 30 em Santana, no Amapá. Isto na região onde a população que vive à beira dos rios chama canoa de montaria. Na região onde, de fato, o rio é a rua.
Noventa mortos em 132 acidentes em apenas três anos. Este é o resultado desse descaso, vinculado ao desmonte do Estado, apenas no transporte de passageiros por barcos na região Amazônica.

No Rio de Janeiro já tivemos queda de túnel, choque de trens, quedas de marquises e reboco em plena cidade, vitimando pedestres. Na região metropolitana do Rio de Janeiro as vítimas fatais da recente epidemia de dengue já ultrapassaram a marca da centena. As longas horas de espera nas filas dos hospitais são uma demonstração trágica do desmonte dos serviços públicos implementado nestes anos de neoliberalismo.

A conta em horas não dormidas, e pela dor da perda de parentes e amigos é paga majoritariamente pelos trabalhadores e o povo pobre. É uma difícil forma de demonstrar a correção do velho ditado: a corda arrebenta do lado mais fraco.
Fatalidades do destino?

Não se tratam de armadilhas ou tramas do destino. Não são fatalidades inevitáveis ou imprevisíveis.

Aviões para serem mantidos no ar, sem se chocarem, precisam ter, no solo, controladores de vôo em número expressivo e com jornada de trabalho que os permita evitar o estresse característico de uma profissão onde vidas humanas estão literalmente em suas mãos.

Prédios são construídos para ficarem de pé, não para soltarem seus pedaços na cabeça das pessoas por falta de manutenção, ou erro premeditado na construção.
Barcos são fabricados para flutuar. Viagens realizadas com excesso de passageiros, pondo em risco a vida das pessoas, precisam ser coibidas.

Doenças como a dengue, cólera, febre amarela e outras, eram uma realidade, triste realidade, do início do século passado, que há muito haviam sido erradicadas ou controladas, porém voltaram com força deixando seu rastro de vítimas fatais.

Nada disso é obra do acaso ou de um gênio do mal. Assim o remédio não pode ser o tomado pelo prefeito do Rio, César Maia (DEM), apelando aos santos e orixás. Nem todos os Santos da Igreja do Bonfim resolverão os problemas da ausência do Estado, do sucateamento dos serviços públicos, impostos pela aplicação do receituário neoliberal neste país. Aplicação começada por Collor de Mello, seguida por Fernando Henrique e continuada e aprofundada por Lula e o PT.

O receituário neoliberal, que inclui o Estado mínimo, o sucateamento dos serviços públicos, é aplicado – como efeito dominó – desde Brasília, passando pelos governos estaduais e chegando às prefeituras. Desta forma os responsáveis pelas mortes, pelo descontrole, pela imprevidência social, devem ser buscados entre os ocupantes, atuais e anteriores do Palácio do Planalto e ministérios; entre os ocupantes dos palácios estaduais e das prefeituras, aí serão encontrados os culpados.

Uma lutas dos trabalhadores
A diminuição do papel do Estado, a redução de funcionários em questões chaves como fiscalização, controle e saúde pública, é o que cria as condições para colocarem soda cáustica no leite; para que prédios sejam construídos com areia do mar; marquises e estádios de futebol desabem por falta de manutenção; navios naufraguem sem sequer terem registro na Capitania dos Portos, aviões e helicópteros caiam, obras do metrô desabem, e doenças há muito erradicadas retornem.

A falta ou insuficiência de médicos, enfermeiros, pessoal de apoio e mata mosquitos, é o que permite que a guerra contra a dengue no Rio, desgraçadamente, esteja sendo vencida pelo mosquito.

A luta dos funcionários públicos, daqueles cuja função é prestar serviços ao público, transforma-se, desta maneira, em luta na defesa do conjunto de nossa classe, e como tal deve ser encarada, e, logo, cercada de solidariedade.
A luta contra o neoliberalismo reveste-se também de luta pela vida. Derrotar os governos de turno impondo a contratação de funcionários; aumento de salários e qualificação do funcionalismo; a retomada dos serviços públicos, com qualidade; é parte integrante da luta de nós trabalhadores.

Esta é uma das formas de evitar que sigamos sendo nós os trabalhadores e o povo pobre que paguemos o preço da crise econômica que não fomos nós que fizemos.

*Um dos fundadores do PSOL, até recentemente membro do Diretório Nacional do partido, e agora militante do PSTU
Post author Miguel Malheiros*, do Rio de Janeiro (RJ)
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