Mergulhada na lógica privatista e elitista, a política cultural de Lula é tão desastrosa como todo o resto de seu governoNa década de 1980, Comida, dos Titãs, e particularmente seu refrão (A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte!) era uma espécie de hino paras mudanças almejadas por uma juventude sedenta por cultura, arte e liberdade. Quem esperava que o governo Lula iria saciar esta sede chega ao final de 2004 totalmente frustrado.

Afinal, além da absoluta falta de investimentos no setor, o que se viu foram as muitas bravatas do ministro-cantor, o governo Lula saudando Roberto Marinho como grande defensor da cultura nacional e uma série de medidas que jogam, cada vez mais, a arte e a cultura nas mãos da iniciativa privada e das elites.

Caça às rádios livres

Até alguns anos, muita gente que hoje está no governo fazia coro com os movimentos que defendiam a necessidade de uma democratização dos meios de comunicação, com o fim dos “latifúndios” formados por famílias como os Sarney (Maranhão), Barbalho (Pará) ou Marinho (país afora). Contudo, assim como no que se refere à reforma agrária, o que temos visto nesta área é uma concentração ainda maior.

Somente no primeiro ano do governo Lula, o número de rádios comunitárias fechadas cresceu 17% em relação a 2002. No último ano de mandato de FHC foram fechadas 2.360 rádios. No primeiro de Lula, o número subiu para 2.759. De 2002 para 2003, a coisa foi ainda pior: 4.412 rádios saíram do ar (cerca de 40% a mais do que no ano anterior). Essa política (geralmente acompanhada de prisões, confisco de material e violência policial) está longe de parar. No primeiro trimestre de 2004, 862 outras rádios foram fechadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Enquanto isso, as instituições privadas ou identificadas com os setores da elite continuam expandindo seus tentáculos no mundo das comunicações. Basta lembrar que pouco antes de sua demissão, em janeiro de 2004, Miro Teixeira, em um único dia, deu 56 canais de retransmissores de TV à Fundação Nazaré, da Arquidiocese de Belém, o que permite que a rede católica cubra todas as principais capitais do Norte do país, além de parte do Maranhão.

Seu substituto, Eunício Oliveira, proprietário de rádios comerciais no Ceará e em Goiás, é ainda mais identificado com os interesses das oligarquias que dominam os meios de comunicação.

Cultura a serviço do mercado

A repressão às rádios é apenas a ponta do monstruoso iceberg que é a política cultural do governo. Um monstrengo cujo aspecto mais evidente é a proposta de criação da Agência Nacional de Cinema e do Audiovisual (Ancinav).

O vazamento do documento original, em agosto passado (Opinião Socialista 187), teve o efeito de uma bomba por trazer à tona que o governo pretendia, dentre outras coisas, “regular” e “fiscalizar” a linha editorial e a programação das emissoras de rádio e TV, criar uma novo imposto (aplicado inclusive ao preço dos ingressos) para subsidiar o cinema nacional, dar isenção fiscal a redes de TV e elevar a taxa cobrada para a exibição de produções estrangeiras de R$ 3 mil para R$ 600 mil.

As críticas vieram de todos os lados: dos que temiam a evidente censura e defendiam uma verdadeira política pública para os audiovisuais até os hipócritas barões das telecomunicações, contrários a qualquer taxa ou regulamentação.

Acuado, o governo paralisou o processo e montou uma tal de “comissão civil” para apresentar uma nova proposta. Apesar de não ter vindo a público até o momento, pelo que se sabe, ela é uma concessão ainda maior ao empresariado e um total descompromisso do Estado com o setor.

Por exemplo, a taxa sobre o lançamento de filmes estrangeiros (que serviria para fomentar as produções nacionais) foi reduzida para R$ 40 mil. Em troca da retirada da taxa de 10% sobre os ingressos, foi criada uma outra, de 2%, a ser cobrada sobre a venda de aparelhos de TV, vídeo, DVD e celulares que transmitem imagem e monitores de computador. Ou seja, no fim das contas são os “consumidores de imagem”, inclusive aqueles que nem freqüentam cinema, que acabarão pagando o pato.

Pressionando por maiores concessões, os empresários do setor ainda fazem “oposição” à Agência. Já boa parte dos artistas, cineastas e produtores culturais saíram em defesa do projeto, movidos por uma lógica pra lá de questionável: qualquer política de fomento à cultura nacional é melhor do que nenhuma.

Uma lógica anti-cultural

O que estes setores esquecem ou não querem se lembrar é que, de conjunto, a política de Lula significa um ataque ao desenvolvimento cultural e artístico.

Em primeiro lugar, porque não combate (pelo contrário, incentiva) aquilo que há de pior nesta história: o controle do mercado sobre a cultura e a arte. Qualquer política séria neste campo deveria começar pelo fim dos monopólios, com a expropriação e a estatização dos meios de comunicação.

O segundo problema está completamente vinculado ao anterior. Até mesmo o que é arte
ou cultura, hoje, é definido pelo mercado. Só para dar um exemplo: no início de seu governo, Lula liberou R$ 650 mil, da Petrobras, ao parque “temático” Beto Carrero.

É verdade que a concessão havia sido feita por FHC, mas Lula poderia vetá-la e não o fez porque, assim como no governo anterior, até mesmo o dinheiro das estatais é destinado a projetos que muito pouco têm a ver com nossa cultura e respondem fundamentalmente à lógica do mercado: peças teatrais com atores e atrizes “globais”, filmes que são cópias insossas da estética televisiva ou norte-americana, apoiados simplesmente por “terem um bom retorno de bilheteria”.
Se isso não bastasse, Lula ainda está criando um outro problema: a utilização da cultura para a construção de discurso pseudonacionalista. O projeto da Ancinav já falava em incentivar projetos que sejam “de interesse nacional” (a serem definidos pelo governo, obviamente).

Em novembro, Gilberto Gil e Luís Fernando Furlan, ministro do Desenvolvimento, assinaram um convênio (de R$ 13 milhões) para promover a exportação de produtos audiovisuais que ajudem a melhorar a imagem do Brasil. Ou seja, muita gente vai ganhar dinheiro público para filmar lindas praias e mulheres, festas “folclóricas” e gente sorridente, pontos turísticos e felicidade.

Evidentemente, há exceções neste mar de mediocridade e concessão aos interesses da elite. Contudo, nenhuma delas passou por dentro do governo. Em 2004, nossa verdadeira cultura e arte de fato, aquelas que realmente podem satisfazer à nossa sede e fome, pulsaram pelas ruas, guetos e rincões do país. Sem o mínimo apoio de Lula e contra a lógica de seu governo.
Post author Wilson H. da Silva, da redação
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