No dia 4 de maio, o referendo sobre os Estatutos Autonômicos do departamento (estado) de Santa Cruz provocou fortes mobilizações dos trabalhadores bolivianos nas cidades de La Paz, El Alto, Cochabamba, Oruro e Potosí.

Enquanto ocorria a votação em Santa Cruz, organizações como a COB, a COR de El Alto, a CSUTCB (Confederação dos Camponeses), as juntas vecinales (associações de moradores) e os indígenas encabeçaram mobilizações gigantescas contra os estatutos. Em El Alto, era impossível caminhar nas ruas por causa da multidão. Em La Paz, uma gigantesca maré humana tomou conta da cidade.

As mobilizações começaram em 1° de maio e continuaram no dia 2, com uma mobilização no município de San Julián, em Santa Cruz. Contudo, o auge dos protestos foi no domingo, dia 4. A imprensa fala em 1,5 milhão de pessoas protestando em todo o país.

O que são os Estatutos Autonômicos?
Os Estatutos Autonômicos são um projeto de autonomia do departamento de Santa Cruz em relação ao governo central. Segundo os estatutos, as autoridades departamentais (a oligarquia de Santa Cruz) teriam total controle sobre as terras e os recursos naturais. Por exemplo, o artigo 109 confere ao governador poder absoluto sobre as terras: “o Governador validará todos os títulos agrários que comprovem a propriedade sobre a terra e estejam localizados dentro da jurisdição do Departamento Autônomo de Santa Cruz”. Já o artigo 86 estabelece: “os recursos naturais renováveis, sua utilização e gestão ambiental estão a cargo do governo departamental”. Por trás das reivindicações de “maior democracia e autonomia” está a disputa por uma relação comercial mais direta com o imperialismo e as transnacionais, para garantir uma fatia maior dos lucros.

Repúdio à autonomia
Até agora, a imprensa divulgou que, do total de eleitores, 86% votaram pelo “Sim” e 14% pelo “Não”. No entanto, a abstenção foi de 39%.
Assim, se somarmos o total de abstenções com os votos pelo “Não” teremos 53% de eleitores que são contrários aos estatutos.

Sem dúvida, o resultado mostrou que a burguesia não obteve o resultado esperado, diante da enorme campanha que fez pelo “Sim”. Além disso, o referendo tinha um caráter ilegal. Pela atual Constituição do país, somente a Corte Nacional Eleitoral ou o governo nacional podem convocar referendos.

Nos municípios de San Julián, Yapacaní e Cuatro Cañadas (de maioria camponesa e indígena), não houve votação, porque a população não permitiu a instalação das urnas, e algumas inclusive foram queimadas. Em Camiri (região ao Sul de Santa Cruz, onde houve recentemente uma forte greve exigindo do governo Evo Morales a nacionalização do campo petrolífero da região controlado pela espanhola Repsol), o repúdio aos estatutos chegou a 64,5% (42,6 % se abstiveram e 21,9% disseram “Não”).
A burguesia de Santa Cruz anunciou o resultado como uma vitória esmagadora, tentando ocultar que muitos se abstiveram por não reconhecer o referendo. Na verdade, houve uma forte reação popular, principalmente nos municípios mais pobres, onde a média de boicote foi de 46,8%.

Esse resultado tem grande importância se considerarmos que, nos últimos dias, Santa Cruz foi a capital do “terror”. Houve ameaças de perda de emprego e de proibir a abertura de conta bancária para quem boicotasse o referendo.

O presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, o empresário e latifundiário Branco Marinkovich, anunciou que o salário mínimo no departamento seria de 1000 bolivianos se o estatuto fosse aprovado (o salário na Bolívia é de 575 bolivianos). Entre o terror e a promessa, a burguesia conseguiu avançar em sua hegemonia nos setores da capital do departamento, mas teve grande dificuldade nos setores mais pobres.
É preciso considerar, ainda, que os resultados divulgados foram fiscalizados somente pelas entidades que organizaram o referendo, como a prefeitura, o comitê cívico e a união juvenil (todos defensores do “Sim”). Houve denúncias de fraude, como cédulas que já continham o “Sim” no maior lugar de votação dentro da capital, o que gerou conflitos.

Morales tentou impedir protestos
Mas as mobilizações que tomaram a Bolívia contra os Estatutos Autonômicos também representaram uma derrota para Evo Morales. Depois de fazer diversos pactos e acordos com os partidos da direita durante a Constituinte, de apostar num fracassado diálogo com os governadores (que só fortaleceu a oposição burguesa), o governo e a direção do MAS (Movimento ao Socialismo) ordenaram às suas bases camponesas e operárias, às vésperas do referendo, que não realizassem mobilizações nem enfrentamentos.

A ordem do governo era um “boicote silencioso” ao referendo. Três dias antes, o governo anunciou novas nacionalizações, com o objetivo de manter seu prestígio junto às massas.

Contudo, as bases das organizações populares, movidas pelo forte sentimento de ódio, não acataram as ordens do presidente e impuseram às suas direções as grandes mobilizações contra o referendo.

O que vai acontecer agora?
Depois de Santa Cruz, serão realizados novos referendos nos departamentos de Beni e Pando, marcados para junho. O curioso é que, antes mesmo de sua realização, tanto os representantes da burguesia de Santa Cruz quanto o governo Morales já falam sobre negociar como os estatutos serão implementados na prática.

De um lado, a burguesia pressiona para criar um governo com maior controle sobre os recursos do departamento, incluindo os recursos naturais, com maior poder de negociação diretamente com o imperialismo e, claro, se atrincheirar em seus departamentos para avançar em uma oposição nacional ao governo Morales.

Evo, por sua vez, propôs a não realização dos referendos para unificar a nova proposta de Constituição (que será submetida a um plebiscito popular). Mas o presidente boliviano ouviu de suas próprias bases, como as organizações indígenas, que os dois projetos são incompatíveis.

Todos os setores da classe trabalhadora, os camponeses e até a juventude têm uma sede de mobilizações que derrote a burguesia da Media Luna. Esta é a maior dificuldade que o governo Evo terá que administrar agora. Na contramão do sentimento das massas, o presidente já chama a oligarquia de Santa Cruz para negociar.

A unidade da Bolívia exige a derrota do projeto político dos latifundiários, das transnacionais e da burguesia da Media Luna. Esta conquista só será alcançada com fortes mobilizações nacionais. O que falta é uma direção classista que empalme o sentimento de luta das bases, mobilize contra a direita e construa uma alternativa ao governo de Evo Morales e o seu partido, o MAS.

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