O governo José Serra publicou no diário oficial do dia 31 de maio Decreto Declaratório no qual apresenta a interpretação oficial das medidas anteriores referentes às universidades estaduais. O objetivo deste texto não é uma análise jurídica dos decretos, para a qual não tenho e não quero ter competência, e sim a sistematização de algumas idéias sobre seu conteúdo. Recorri para tal à pesquisa de documentos oficiais, análises produzidas pelo movimento docente e estudantil e artigos da imprensa. Em várias passagens reproduzo, de modo mais ou menos livre, idéias a respeito do tema que foram expostas, na maioria das vezes oralmente, por colegas. Optei, entretanto, por não citá-los para preservar a distância que porventura queiram ter tanto dos pressupostos que norteiam a presente análise como de suas conclusões.

O novo decreto, denominado de “declaratório” determina uma “interpretação autêntica” sobre os dispositivos anteriores fixando “o sentido exato dos referidos decretos”. Embora seja inusitado no âmbito do Executivo, o adjetivo “declaratório” que qualifica o decreto não muda seu estatuto. Decretos existem apenas os do Executivo e do Legislativo. O Decreto Declaratório atende aos requisitos formais e materiais de um decreto do Executivo e por essa razão tem o efeito de dispositivo específico que se sobrepõe aos precedentes. Essa foi, evidentemente, a saída encontrada pelo governo para revogar os decretos que feriam a autonomia universitária, sem admitir sua derrota e a vitória do movimento. O importante, pois, é discutir o conteúdo do Decreto, mais do que a forma que ele assumiu. Os pontos mais importantes sobre os quais deve ser organizada a discussão são os seguintes:

1. A admissão de que a execução orçamentária, financeira, patrimonial e contábil das universidades estaduais e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) será realizada de acordo com o princípio da autonomia universitária e que a inserção de dados no sistema integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios (Siafem) (Decreto n. 51.636, de 9 de março de 2007) ocorrerá sem o prejuízo das prerrogativas:

a) do artigo 271 da constituição estadual que fixa 1% da receita tributária do estado para a Fapesp “como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico” (grifos meus) e

b) do artigo 54 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996) que atribui às universidades mantidas pelo poder público “estatuto jurídico especial para atender às peculiaridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo Poder Público, assim como dos seus planos de carreira e do regime jurídico do seu pessoal”.

2. A manutenção pelas universidades das contas específicas no Banco Nossa Caixa para efetivar “transferências ou remanejamentos, quitações e tomar outras providências de ordem orçamentária”.

3. O reconhecimento da inaplicabilidade às universidades estaduais dos dispositivos contidos nos decretos n. 51.471, de 2 de janeiro de 2007 (“dispõe sobre a admissão e a contratação de pessoal na Administração Direta e Indireta”), n. 51.473, de 2 de janeiro de 2007 (dispõe sobre a reavaliação e a renegociação dos contratos em vigor e das licitações em curso), e n. 51.660, de 14 de março de 2007 (“institui a Comissão de Política Salarial”).

4. A manutenção da Secretaria de Ensino Superior (Decreto 51.461) e a inaplicabilidade dos artigos 20 e 24 do decreto referente; e a alteração de seu artigo II, alínea c. Onde antes era feita referência à “ampliação das atividades de pesquisa, principalmente as operacionais, objetivando os problemas da realidade nacional” agora se lê “ampliação das atividades de ensino, pesquisa e extensão”.

Autonomia financeira e controle do orçamento
Essas medidas já constituem importante recuo, resultado de uma luta unificada de professores, funcionários e estudantes na qual a ocupação da Reitoria da USP teve um papel de destaque. Torna-se evidente a importância de um movimento unitário da comunidade universitária e a capacidade desse movimento, articulado em torno de diferentes formas de luta mas com um programa comum, conseguir seus objetivos. Não é demais ressaltar que a edição do Decreto Declaratório foi uma derrota do governo Serra e uma vitória do movimento. A autonomia administrativa e financeira das universidades estaduais, que havia sido comprometida pelos decretos n. 51.471, n. 51.473, n. 51.660 e n. 51.636, foi reconduzida à situação jurídica na qual se encontrava em 2006. Um dos principais objetivos do governo estadual – o controle do orçamento das universidades – foi frustrado.

Tal controle, criado por meio de um “ilusionismo jurídico” nas palavras do professor Dalmo Dallari tinha por finalidades imediatas, em primeiro lugar, a centralização dos superávits financeiros obtidos pelas universidades estaduais e utilizados autonomamente por essas instituições para despesas correntes; e, em segundo lugar, a redução das despesas com “pessoal” (professores e funcionários) por meio da suspensão de novas contratações e da centralização das negociações salariais, que deixariam de ser atribuição do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp). O objetivo dos decretos referentes à execução orçamentária e à administração de pessoal nunca foi, portanto, a transparência dos gastos das universidades como constantemente afirmado na imprensa e sim a centralização de recursos e a constrição das despesas com a folha de pagamentos em detrimento da qualidade do ensino e da pesquisa. Esse objetivo foi impedido pelo movimento.

Problemas, entretanto, persistem e dizem respeito não à situação jurídica da autonomia mas à nova política de gestão estatal. A autonomia administrativa e financeira tem como componente essencial a estipulação da arrecadação do ICMS como base do orçamento das universidades estatuais paulistas. O Decreto n. 29.598, de 2 de fevereiro de 1989 que instituiu a autonomia universitária definiu um percentual mínimo do ICMS para as três universidades: 8,4%. Em 1992, a Lei das Diretrizes Orçamentárias fixou o percentual de 9,0% para as instituições estaduais de ensino superior e em 1995 esse percentual passou a ser de 9,57%. Essa é uma condição necessária, embora não suficiente, para uma administração autônoma. A autonomia universitária pode ser definida como a capacidade de autogestão e autodeterminação das universidades. Não é possível a autogestão e a autodeterminação sem os recursos orçamentários que garantam a independência financeira da universidade e lhe permitam a realização das diretrizes acadêmico-científicas por ela definidas.

A vinculação do orçamento das universidades ao ICMS foi uma conquista mas ele encerra riscos que precisam ser levados em consideração. As entidades docentes têm destacado que o governo Serra deixou de publicar mensalmente a previsão de arrecadação do ICMS, o que dificultará as previsões de gastos e a formulação de planos estratégicos. Cabe ainda lembrar que o movimento de docentes e funcionários tem utilizado essas previsões como base em negociações salariais. Sem essas estimativas mensais, o governo estadual considerará a previsão de um dado mês igual a 1/12 do ano anterior. Se a arrecadação efetiva for menor os recursos destinados às universidades poderão ser inferiores ao previsto, mas se for maior poderá não haver o repasse automático do adicional, este poderia ser retido pela Secretaria da Fazenda e caberia ao governo do estado liberar esses recursos em caráter excepcional.

Cabe acrescentar que a nova Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) não prevê a publicação no Diário Oficial ou por outro meio dos repasses previstos e efetuados para as universidades estaduais a partir de 2008. Ao mesmo tempo em que cobrava das instituições estaduais de ensino superior a transparência administrativa mediante a realização e escrituração em tempo real da execução orçamentária, financeira, patrimonial e contábil no Siafem, o governo recusa-se a tornar público o financiamento das universidades estaduais.

A revogação de fato dos decretos referentes à gestão financeira e administrativa das universidades não coloca a autonomia universitária a salvo. Mas agora se trata de uma ameaça latente e não de uma ameaça real. Há, entretanto, uma questão sobre a qual o movimento não discutiu e diz respeito ao funcionalismo estadual. A manutenção dos decretos n. 51.471, referente à admissão e a contratação de pessoal, e n. 51.660, que institui a Comissão de Política Salarial, tem efeitos sobre o conjunto dos serviços públicos e comprometerá a prestação desses serviços. Embora tais decretos não se apliquem mais às universidades estaduais paulistas eles incidem sobre os demais serviços de saúde e ensino do estado, bem como sobre autarquias e outros órgãos públicos.

A Secretaria de Ensino Superior e o sistema estadual de ensino e pesquisa
O Decreto Declaratório é lacônico sobre a criação da Secretaria de Ensino Superior. Mesmo assim, importantes reivindicações do movimento foram atendidas. Em primeiro lugar, foi decretada a inaplicabilidade para as universidades estaduais do artigo 20, que dizia respeito às funções de gestão financeira e orçamentária da Unidade de Coordenação do Planejamento e Avaliação e, o mais importante, do artigo 24, que dizia respeito competências do Secretário de Ensino Superior. A revogação das competências do secretário referentes às universidades estaduais retira deste toda e qualquer possibilidade de violação direta da autonomia financeira, administrativa, científica e pedagógica e esvazia as funções da Secretaria de Ensino Superior. Não tem sido dada a devida atenção a este ponto, mas é, certamente, um dos mais importantes do Decreto Declaratório. A seguir, o Decreto Declaratório elimina a referência à “pesquisa operacional” do texto original. As funções da Secretaria ficam assim na nova formulação:

“I – a proposição de políticas e diretrizes para o ensino superior, em todos os seus níveis; II – a coordenação e a implementação de ações de competência do Estado com vista à formação de recursos humanos no âmbito do ensino superior; III – a promoção da realização de estudos para: a) desenvolvimento e aprimoramento do ensino superior; b) aumento da acessibilidade ao ensino superior; c) ampliação das atividades de ensino, pesquisa e extensão; d) busca de formas alternativas para oferecer formação nos níveis de ensino superior, com vista a aumentar o acesso à Universidade, respeitadas a autonomia universitária e as características específicas.; IV – o intercâmbio de informações e a colaboração técnica com instituições públicas e privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais; V – o desenvolvimento e a implementação de sistemas de informações destinadas a orientar as instituições de ensino médio diante das dificuldades encontradas pelos alunos nos cursos de formação universitária; VI – a articulação com a Fundação Memorial da América Latina para divulgação e intercâmbio da cultura brasileira e latino-americana e sua integração às atividades intelectuais do Estado.”

No que diz respeito exclusivamente às universidades estaduais tais funções não são nem mais nem menos abrangentes das que encontravam sua sede na antiga Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico. São linhas gerais que prevêem a definição de propostas de coordenação do ensino superior em todos os seus níveis, mas não a execução destas. As funções declaradas da Secretaria não comprometem a autonomia universitária. Dentre tais funções apenas o inciso I poderia ser interpretado como uma ameaça à autonomia, mas tal interpretação faz pouco sentido. A “proposição de políticas” foi prática corrente nos governos anteriores e antecede a criação da Secretaria. A rigor, qualquer um pode propor políticas e o próprio movimento docente faz isso freqüentemente. A questão não reside, obviamente na proposição e sim na execução. No art. 21 do Decreto está prevista, por outro lado, a atribuição de “sugerir políticas e executar programas” referentes ao ensino superior, mas na medida em que o secretário, que é quem teria justamente a função de coordenar essas iniciativas, não tem as atribuições para tal perante as universidades estaduais cria-se um impasse. A Secretaria não terá, pois, a condição de impor às universidades estaduais nada que elas não estejam dispostas a fazer.

A questão principal envolvendo a Secretaria de Ensino Superior não é, pois, a da criação de um órgão capaz de coordenar o sistema estadual de pesquisa e ensino superior. Um órgão de coordenação das iniciativas desse sistema, que reunisse as instituições públicas que o compõem poderia ter efeitos positivos sobre o desenvolvimento científico e acadêmico do estado, bem como sobre a democratização do acesso às universidades estaduais. Autonomia não implica na inexistência de diretrizes ou de um plano estratégico que dê um norte às atividades desenvolvidas pelas universidades estaduais. A concepção que sustenta a criação da atual Secretaria é entretanto perversa. Ela implicou na não inclusão na Secretaria da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Centro Paula Souza que administra além de 130 Escolas Técnicas Estaduais (Etecs), 29 Faculdades de Tecnologia (Fatecs) no estado, instituições que passam a pertencer à recém criada Secretaria de Desenvolvimento.

As universidades estaduais não resumem suas atividades ao ensino superior. Elas desenvolvem importantes atividades de pesquisa e extensão e têm se destacado nacionalmente como os principais pólos de produção de conhecimento e inovação científica do país. Uma Secretaria voltada exclusivamente para a organização do ensino superior evidencia uma concepção limitada das funções das universidades estaduais. Enquanto o ensino superior é um “ensino pós-secundário voltado para a formação de quadros profissionais de nível superior” as universidades são sedes da “produção de conhecimento novo e pioneiro – bem como formação de pesquisadores que mantenham, reproduzam e ampliem esse sistema de inovação” (Moraes e Ghisolfi, 2002, p. 5-6). A própria denominação da Secretaria expressa a dissociação entre ensino e pesquisa que visa promover.

Essa concepção limitada das funções das universidades ganha contornos precisos no art. 21 do Decreto que a instituiu. Por meio desse artigo foi criada, como parte da estrutura da Secretaria, uma Unidade de Promoção do Desenvolvimento do Ensino Superior que não tem entre suas atribuições a pesquisa e a extensão. Tal unidade seria responsável por “sugerir políticas e executar programas, projetos e ações relativos à formação de profissionais qualificados em todos os níveis do ensino superior, de modo a atender as necessidades da população e as demandas do mercado.” Quando o desenvolvimento do ensino superior se encontra reduzido à “formação de profissionais” as universidades estaduais são confundidas com o ensino “pós-secundário” que caracteriza as faculdades e universidades particulares.

Os problemas institucionais referentes à criação da Secretaria de Ensino Superior foram ressaltados em artigo por Dalmo Dallari. O Decreto n. 51.460 de 1 de janeiro de 2007 simplesmente alterou a denominação da Secretaria de Turismo, que passou a se chamar Secretaria de Ensino Superior. Embora o Decreto n. 51.461 tenha fixado a estrutura organizativa da nova Secretaria, seu corpo de funcionários e sua estrutura material permanecem os mesmos da antiga Secretaria de Turismo. A nova Secretaria do Ensino Superior não terá, desse modo, as condições materiais de exercer as funções para as quais supostamente foi criada. Carece completamente de recursos humanos especializados e de infra-estrutura material para tal.

Outros problemas são decorrentes da permanência da Fapesp e do Centro Paula Souza na Secretaria de Desenvolvimento. Também aqui houve uma mudança que renomeou a antiga Secretaria da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico. A alteração do nome implica na supressão da ciência e da tecnologia do âmbito dessa Secretaria? Não parece ser esse o caso, já que as Fatecs, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e a Fapesp permanecem nessa Secretaria. A mudança de nome indica, entretanto, uma concepção de desenvolvimento que reduz este à expansão das oportunidades de negócios, ao mesmo tempo em que concebe a ciência e a tecnologia como meios para tal. Em seu site a Secretaria de Secretaria de Desenvolvimento (SD) se autodefine do seguinte modo:

“é o órgão do Governo do Estado de São Paulo responsável pela promoção do desenvolvimento sustentável. Articulação, planejamento estratégico e coordenação das políticas estaduais na área econômica são suas atividades principais. Atua nos elementos essenciais do desenvolvimento: educação superior, técnica e tecnológica; pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico; infra-estrutura de tecnologia industrial; e inovação. Busca a competitividade de São Paulo em harmonia com ganhos de competitividade para o Brasil. A política adotada promove a harmonização do desenvolvimento de todas as regiões, trazendo o incremento das exportações, na busca de novos mercados para a retomada da produção nacional. Concentra suas ações no apoio aos setores com maior capacidade competitiva a fim de contemplar empresários e trabalhadores. Realiza um esforço em prol da regionalização para devolver ao interior sua capacidade de geração de trabalho e renda.”

Essa definição, provavelmente remanescente da antiga Secretaria da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico, incorpora a educação superior como um instrumento desse desenvolvimento. Mas é apenas uma pequena parcela da educação superior estadual, aquela representada pelas Fatecs, que encontra sua sede nessa Secretaria. Em compensação, os principais pólos de desenvolvimento científico e tecnológico do estado – as três universidades estaduais – não estão incorporados a ela e, portanto, não participarão diretamente da articulação, planejamento e coordenação das políticas estaduais de desenvolvimento. Mas a permanência da Fapesp no âmbito da Secretaria de Desenvolvimento lhe fornece o instrumento para coagir as universidades a se incorporarem na realização dessas políticas.

Mesmo mantida a autonomia didático-científica, administrativa e financeira pode ocorrer o direcionamento da pesquisa e das atividades das universidades estaduais por meio do financiamento. Este risco não é novo, nem latente. Trata-se de uma ameaça que já existia antes mesmo da criação da nova Secretaria de Ensino Superior. As prioridades manifestadas pela Fapesp nos últimos anos revelam uma agenda na qual a pesquisa básica e as áreas que compõem as humanidades eram francamente subvalorizadas e subfinanciadas, em detrimento das áreas voltadas para o que se chama hoje de “pesquisa operacional” (ver tabelas 1 e 2) [1]. O anúncio dia 10 de abril de 2007 da criação do Instituto Microsoft Research-Fapesp para pesquisas em tecnologias da informação expressa essas prioridades. A Fapesp destinará US$ 400 mil para um projeto cujo maior beneficiário é a Microsoft, empresa que tem no conselho consultivo internacional de seu programa Partners in Learning o ex secretário adjunto da Secretaria de Ensino Superior, Eduardo Chaves.

O impacto dessas novas prioridades na Fapesp pode ser claramente verificado na Tabela 3. Nas universidades estaduais a variação dos investimentos seguiu trajetórias diferenciadas mas que, de qualquer modo, não permitem nenhum otimismo. Na USP o aumento dos investimentos em pesquisa pela Fapesp acompanhou o crescimento do volume total, enquanto na Unicamp o crescimento dos investimentos foi muito inferior ao aumento desse volume, o que implicou uma diminuição da participação dessa universidade no total de investimentos da Fapesp. O caso da Unesp é crítico, na medida em que houve forte retração dos investimentos, que diminuíram consideravelmente em termos absolutos. Em direção oposta caminham os investimentos em instituições particulares de ensino e pesquisa que viram os investimentos da Fapesp aumentarem 89,09% entre 1998 e 2002 e sua participação no total de investimentos subir de 2,98% para 4,60%. Também é evidente o grande crescimento dos investimentos dirigidos diretamente a empresas privadas, que tiveram um crescimento de 195,99% no mesmo período.

TABELA 1 – Dispêndios realizados pelo CNPq no Estado de São Paulo, por área do conhecimento (em R$ mil de 2003) – 2000-2002

Fonte: CNPq. Indicadores de CT&I em São Paulo – 2004, FAPESP

Tabela 2 – Dispêndios da FAPESP, por área do conhecimento (em R$ mil de 2003) – 1998-2002

Fonte: Fapesp. Indicadores de CT&I em São Paulo – 2004, FAPESP

Em suma, essa divisão do sistema de pesquisa e ensino superior estadual tem efeitos sobre os quais é importante refletir:

1. Promove a separação entre atividades de ensino e pesquisa, uma vez que a Fapesp, fonte insubstituível de financiamento encontra-se em secretaria diferente.

2. Separa a pesquisa básica da pesquisa aplicada (ou “operacional” no jargão do governo Serra) uma vez que importantes centros de ensino e pesquisa tecnológica não são incorporados à Secretaria (além das Fatecs, que são também instituições de ensino superior, poderia se destacar a não incorporação do Instituto de Pesquisas Tecnológicas).

3. Atrela a Fapesp a uma Secretaria que tem por objetivo justamente aquela “pesquisa operacional” que havia sido mencionada na primeira versão do Decreto.

Tabela 3 – Dispêndios da FAPESP, por instituição receptora (em R$ mil de 2003) – 1998-2002

Fonte: Elaboração própria a partir de dados de Fapesp. Indicadores de CT&I em São Paulo – 2004, FAPESP

Pensar o futuro
Embora o Decreto Declaratório tenha afastado a ameaça real que existia à autonomia universitária, esta permanece como uma ameaça latente. A autonomia financeira e administrativa das universidades estaduais paulistas é muito mais desenvolvida do que aquela que, com base na Constituição de 1988, foi atribuída às universidade federais. Mas a autonomia das universidades paulistas foi construída sobre uma base extremamente instável desde que o então governador Orestes Quércia a instituiu por meio do Decreto n. 29.598, de 2 de fevereiro de 1989. Ao optar por essa via criava uma situação de instabilidade jurídica que só poderia ser resolvida por meio de promulgação de lei que afirme essa autonomia e os recursos necessários para sua viabilização.

A criação da Secretaria do Ensino Superior pelo governo do estado colocou para o movimento de docentes, funcionários e estudantes das universidades estaduais paulistas a necessidade de discutir uma proposta para a organização do sistema estadual de pesquisa e ensino superior. Ao que tudo indica o governo negociou com o Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) a abertura de discussões sobre esse tema. A afirmação de que o governo estadual não tem um plano para o ensino superior, corrente no movimento docente, é ingênua e perigosa. Há evidentemente uma concepção que norteou os decretos de Serra. Essa concepção é responsável pela fragmentação do sistema estadual de pesquisa e ensino superior, pelo veto na LDO ao aumento da cota-parte do ICMS destinada às universidades estaduais, pelos privilégios concedidos à “pesquisa operacional”, pela expansão de vagas nas universidades estaduais sem as contrapartidas orçamentárias, etc.

As ações do governo estadual tiveram um efeito inesperado. Elas colocaram o debate da autonomia universitária e da organização do sistema estadual de pesquisa e ensino superior na agenda pública. As associações docentes e de funcionários e o movimento estudantil acolhem hoje uma intensa discussão sobre temas que até então se encontravam fora da pauta. Na Universidade de São Paulo (USP) ganha força a proposta de realização de uma estatuinte universitária. Esta é uma oportunidade ímpar para a USP, a Unesp e a Unicamp acertarem contas consigo próprias, impedirem a privatização, ou seja, a orientação por interesses privados do ensino e da pesquisa e discutirem um projeto de universidade autônoma e democrática. A comunidade universitária não tinha como prever no início do ano, quando professores como Alcir Pécora e Francisco Foot Hardman começaram a denunciar na imprensa o conteúdo dos decretos de José Serra, até onde a resistência poderia ir. A fortuna bateu a nossa porta. Resta agora procedermos com virtù.

REFERÊNCIAS:
FAPESP. Indicadores de CT&I em São Paulo – 2004. São Paulo: Fapesp, 2004.
MORAES, Reginaldo C. e GHISOLFI, Juliana do Couto. Ensino superior não é universidade – e o que disso se pode extrair? Primeira Versão, Campinas, nº 110, p. 5-22, out. 2002.

NOTA:
1.
Mesmo esses dados devem ser tomados com cuidado, uma vez que a divisão em áreas de conhecimento é assimétrica. Enquanto áreas como Física, Química e Matemática são autoevidentes o mesmo não acontece com a área de Ciências Sociais e Humanas. Os anexos metodológicos dos Indicadores de CT&I em São Paulo – 2004, FAPESP apresentam a nova classificação por área do Inep/MEC e a da Capes, mas nenhuma delas agrupa Ciências Sociais e Ciências Humanas. Para ilustrar a arbitrariedade dessas classificações basta relatar que a nova classificação do Inep/MEC, de acordo com padrões da OCDE, inclui as Ciências Sociais na área “Ciências sociais, negócios e direito”. Desse modo, as Ciências Sociais integram uma área juntamente com “Ciências gerenciais, Emprendedorismo, Formação de executivos”, mas encontra-se separada da História e da Filosofia, que integrariam a área de Humanidades e Artes. Nas tabelas 1 e 2, a área de Ciências Sociais e Humanas inclui no mínimo Filosofia, Sociologia, Antropologia, Arqueologia, História, Geografia, Psicologia, Educação, Ciência Política e Teologia.