Mário de Andrade, em pintura de 1927
Lasar Segall

Há 60 anos, em 25 de fevereiro de 1945, morria Mário de Andrade, um dos mais importantes e complexos intelectuais brasileiros. Autor de uma obra multifacetada, o autor de Macunaíma também foi um personagem cheio de contradiçõesA multiplicidade de Mário de Andrade foi cantada por ele próprio em um de seus versos mais conhecidos: “eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”. Além de escritor, Mário foi musicista, professor universitário, dirigiu o Departamento de Cultura de São Paulo, entre 1934 e 1937, e o Patrimônio Histórico Nacional (1940). Também escreveu artigos para a imprensa – como na revista Klaxon, o ninho literário dos modernistas –, percorreu o Brasil, coletando imagens e sons, com o objetivo de estudar a pluralidade étnica e cultural do país, e foi um polêmico ensaísta, autor de textos como Uma Escrava que Não Era Isaura (1925), uma provocação ao estilo romântico que prevalecia na literatura da época.

Nascido em uma aristocrática família paulistana, em 9 de outubro de 1893, Mário estreou na poesia em 1917, com o livro Há uma Gota de Sangue em Cada Poema que, inspirado na tragédia da I Guerra Mundial, já dava sinais de seus estilo rebelde.
Um estilo que, em 1922, com o lançamento de Paulicéia Desvairada, determinou as diretrizes do Modernismo: o uso do verso livre, a valorização da fala brasileira e a abordagem de temas tidos como tabu. Características todas elas presentes em Ode ao burguês, que, declamado na Semana de Arte Moderna, foi recebido com uma estrondosa vaia pela fina flor da burguesia paulista.

Um “escândalo literário” que se repetiu com o lançamento de Amar, verbo intransitivo (1927). Primeiro, por contar a história de uma senhora alemã que tem como profissão iniciar sexualmente os jovens burgueses. Segundo, por ser um romance escrito de forma telegráfica, que abusa das técnicas modernistas, utilizando uma linguagem coloquial que rompe os padrões da “norma culta”, sem respeitar sequer a continuidade temporal ou a estrutura em capítulos.

O anti-herói complicado
Dentre seus muitos escritos, Macunaíma (1928) – que tem uma excelente versão cinematográfica, dirigida por João Pedro de Andrade, em 1969 – é uma verdadeira obra-prima. Radicalizando nas técnicas modernistas e apoiando-se livremente em lendas brasileiras, Mário escreveu a saga de seu “herói sem nenhum caráter”, criando um personagem que navega pelo pantanoso universo do que é “ser brasileiro”. Um anti-herói que, mergulhado em contradições, em muito faz lembrar a própria figura do escritor.

Mestiço, suas duas avós eram descendentes de negros, Mário, ao mesmo tempo em que celebrava a mestiçagem dos brasileiros em suas obras, usava pó-de-arroz para atenuar seu tom de pele.

Libertário e destemido em sua escrita – famoso por protagonizar desvairadas noitadas boêmias –, manteve, durante toda a sua vida, uma penosa batalha contra sua própria sexualidade, fato que, vez ou outra, transbordava em sua obra ou nos comentários preconceituosos de seus contemporâneos.

Na literatura, a homossexualidade latente e sufocada é o tema central do conto Frederico Paciência – escrito durante quase 20 anos, entre 1924 e 1942, mas somente publicado em 1946, no livro Contos Novos, após a morte do autor –, que narra a relação de dois estudantes que trafegam entre a sensualidade e a mais devastadora culpa.

Na poesia, a passagem mais explícita de seus desejos está em versos publicados em 1937: “Tudo o que há de melhor e mais raro / Vive em teu corpo nu de adolescente / A perna assim jogada e o braço, o claro / Olhar preso no meu, perdidamente”.
Sobre a discriminação, a nota lamentável fica por conta de Oswald de Andrade. Numa demonstração de que genialidade e homofobia podem caminhar lado a lado, Oswald, com quem Mário rompeu relações em 1929, afirmava, por exemplo, que Mário se “parecia com Oscar Wilde, por detrás” ou referia-se a ele como “Miss São Paulo”.

Vivendo em uma época em que a homossexualidade era um misto de crime e doença, não foram poucas as vezes que o próprio Mário se depreciava, definindo-se como um “indivíduo infame, diabólico” ou como um “vulcão de complicações”, possuidor de “uma assombrosa, quase absurda sensualidade”, uma “espécie de pansexualismo”, cujo aspecto heterossexual, ao que tudo indica, só se manifestou em amores platônicos, ou seja, nunca concretizados.

Segundo muitos críticos, essas contradições, por mais terríveis que fossem, acabaram se tornando um elemento fundamental na obra de um autor que tomou a busca da conturbada identidade de nosso povo como seu foco central.

O fato é que caminhando, como Macunaíma, num mundo imerso, simultaneamente, em prazer e sofrimento Mário – que também foi autor de uma obra extremamente sintonizada com seu tempo, tendo, inclusive, dedicado muito dos seus últimos meses à denúncia do fascismo, do nazismo e da ditadura Vargas – deixou, ao morrer de enfarte, aos 51 anos, uma obra fundamental para nossa cultura.

Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps“ com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
“Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
Um colar… Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!“

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu!
Fora o bom burguês!…

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