Gabriel Casoni

Gabriel Casoni

Uma importante questão teórica esteve presente no pensamento político-social mundial durante boa parte do século XX: a análise e a caracterização da formação sócio-econômica em desenvolvimento nos países atrasados do sistema capitalista. Em outras palavras, conhecer a fundo a realidade social e econômica em construção nos chamados países subdesenvolvidos era chave para a proposição de políticas que objetivassem a transformação dessa mesma realidade. Por conseguinte, os variados projetos políticos que visavam desenvolver, reformar ou revolucionar esses países se traduziam num esforço teórico que pretendia apreender os traços distintivos dessa complexa realidade histórico-social. Neste artigo, as elaborações de Celso Furtado, de Caio Prado Jr. e de Francisco de Oliveira acerca das características fundamentais do caráter e do desenvolvimento das estruturas sociais dos países periféricos, ou em particular do Brasil, serão abordadas e relacionadas, bem como, serão postas em confronto com a teoria do desenvolvimento desigual e combinado do intelectual e revolucionário russo Leon Trotsky.

Caio Prado Jr. não via as condições objetivas para a revolução socialista brasileira: era necessário desenvolver o mercado interno e a industrialização. Para ele, a transformação social ainda estava nos marcos do capitalismo, mesmo que se tivesse preparando nesse ínterim as condições necessárias para a ruptura revolucionária. Celso Furtado não se enquadrava dentro da perspectiva socialista, apostava antes na política do desenvolvimentismo: era preciso um amplo desenvolvimento industrial articulado com uma contundente distribuição de renda que rompesse com a dependência externa e com o setor arcaico dentro da economia brasileira.

Se na política a derrocada do desenvolvimentismo se deu com a queda do populismo, no terreno teórico Chico de Oliveira abala suas teses centrais: a existência do “moderno” (o crescente processo de industrialização/urbanização) e o “atrasado” (a arcaica estrutura agrária/rural) na realidade econômica brasileira não significa mais uma barreira ao desenvolvimento nacional capitalista, essa combinação dialética é vista agora como a própria condição para o estabelecimento de um regime de acumulação de capital satisfatório para a burguesia nacional hegemônica.

Mas se Chico de Oliveira compreende a interdependência orgânica entre o “moderno” e o “arcaico” na formação da estrutura socioeconômica dos países subdesenvolvidos, não poderíamos deixar de chegar à teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky. Buscando apreender as características gerais do desenvolvimento dos países atrasados, o revolucionário russo advoga a tese segundo a qual diversos tempos históricos se combinam engendrando uma estrutura social qualitativamente distinta das formas clássicas de desenvolvimento: o “moderno” e o “atrasado” se articulam em proporção desigual numa formação altamente contraditória e exibindo acentuadas peculiaridades, mas de forma absolutamente compatível com necessidades do modo de produção capitalista e com seu desenvolvimento em geral.

Celso Furtado, Caio Prado Jr. e Chico de Oliveira e as (im)possibilidades da Nação
Caio Prado Jr. diagnosticava com precisão a coexistência de várias situações características de tempos históricos distintos em nossa formação social-econômica; indicava brilhantemente a contradição do que prometia a ordem jurídica-política com a estrutura econômica vigente; da impossibilidade da “cidadania” frente ao quadro social existente; de como não seguimos a via de desenvolvimento capitalista clássico, acumulando, assim, anacronismos e combinando elementos distintos e contraditórios; no entanto, Caio Prado viu a possibilidade de emancipação econômica do país nos quadros do capitalismo. Defendeu, assim, a passagem do Brasil “Colônia” para o Brasil Nação – enquanto um desenvolvimento autônomo e progressivo do país, com um profundo processo de industrialização, voltando a economia para o mercado interno, possibilitando a cidadania, as melhorias nas condições sociais e econômicas do país, tudo isso ainda nos marcos do capitalismo.

O raciocínio estabelecido por Caio Prado, de perspectiva de desenvolvimento capitalista autônomo no Brasil, tem muito a ver com política estabelecida pela III Internacional a partir de Stálin (essa conexão é importante uma vez que Caio Prado era membro ativo do Partido Comunista Brasileiro, dirigido pela III Internacional de Stálin). Política que se expressava no apoio à burguesia nacionalista (apoio a Getúlio Vargas, João Gualart, Aliança Nacional Libertadora), programa econômico desenvolvimentista, frentes únicas com partidos burgueses “progressistas”, etc. Em síntese o projeto político de Caio Prado era: primeiro completar e implementar “as revoluções burguesas pendentes” para depois pensar na revolução socialista, ainda pretensamente imatura para as condições existentes (RICUPERO, 1998).

Celso Furtado não pensava numa possível revolução socialista, seu projeto político se pautava por uma perspectiva nacional-desenvolvimentista. Compreender a estrutura econômica brasileira então era a premissa necessária para um projeto de desenvolvimento do país. Furtado antes de querer escrever teses acadêmicas estava interessado nas possibilidades da nação. Nesse sentido seu conceito de subdesenvolvimento foi absolutamente fundamental. O subdesenvolvimentismo não era visto numa perspectiva evolucionista, que via diversas etapas obrigatórias de desenvolvimento para o atrasado atingir o ápice do desenvolvimento. O autor se afastava tanto do etapismo stalinista como do evolucionismo clássico. Antes, tratou o subdesenvolvimento como uma singularidade histórica, a forma pela qual o desenvolvimento capitalista se efetuou e se estruturou nas ex-colônias – as quais tinham a função histórica de serem elementos subordinados na cadeia de acumulação de capital.

Assim, o fenômeno do subdesenvolvimento constituía um lugar próprio da periferia na divisão internacional do capitalismo, exprimia uma relação de dependência e subordinação em relação aos países centrais do sistema. Na estrutura subdesenvolvida se misturam formas econômicas arcaicas (o amplo setor agrário/rural pré-capitalista, por exemplo) como os elementos modernos (expansão industrial/urbana como motor da economia). Em relação à penetração das economias centrais do sistema na periferia e à formação da estrutura subdesenvolvida, esclarece Furtado:

O efeito do impacto da expansão capitalista sobre as estruturas arcaicas variou de região para região, ao sabor de circunstâncias locais, do tipo de penetração capitalista e da intensidade desta. Contudo, a resultante foi quase sempre a criação de estruturas híbridas, uma parte das quais tendia a comportar-se como um sistema capitalista, a outra, a manter-se dentro da estrutura preexistente. Esse tipo de economia dualista constituiu, especificamente, o fenômeno do subdesenvolvimento contemporâneo (Elementos de uma teoria do subdesenvolvimento).

Essa coexistência em uma mesma estrutura econômica de duas dimensões – uma advinda do sistema capitalista e outra pré-capitalista – é o elemento chave do fenômeno do subdesenvolvimento para Furtado. O autor compreendia, por conseguinte, que o subdesenvolvimento então seria um processo histórico autônomo, ou seja, não era uma etapa pela qual tenham passado obrigatoriamente todas as economias capitalistas desenvolvidas. Um elemento importante do trabalho diz respeito ao fato de que na formação das economias híbridas em que o núcleo capitalista passava a coexistir de forma pacífica com a estrutura arcaica, o núcleo capitalista não modificou as condições preexistentes, o que foi acontecer somente quando as atividades capitalistas necessitavam de uma absorção em grande em grande escala de mão-de-obra (como no Brasil).

Mas se a teoria do subdesenvolvimento construída por Furtado trouxe grandes contribuições para compreensão da realidade dos países periféricos, suas debilidades não eram menores. Chico de Oliveira tratou de colocá-las em relevo. O autor fará uma leitura crítica da teoria do subdesenvolvimento em Furtado, bem como, traçará um novo quadro analítico para a compreensão da estrutura socioeconômica brasileira.

No que toca as reflexões centrais da abordagem do Chico de Oliveira em relação aos traços fundamentais da realidade socioeconômica brasileira, o eixo central é que por de trás da aparente oposição formal entre o “moderno” e o “atrasado” existe uma integração dialética. A agricultura “arcaica” cumpre um papel fundamental no regime de acumulação: ao invés de se opor ao setor industrial, o alimenta. Por conseqüência, o modelo da estrutura econômica desenvolvida por Chico não poderia conter a tese de Celso Furtado da separação dual e antagônica entre os setores. O setor agropecuário atrasado e o setor industrial conformavam uma unidade de contrários, uma totalidade por assim dizer. Uma totalidade que tinha um sentido claro, qual seja o de estabelecer um regime de acumulação conveniente, extrair mais lucro. Logo, os diversos setores constituíam uma estreita imbricação entre eles, uma dependência recíproca, um organismo coerente que se compunha de elementos desigualmente desenvolvidos e combinados. Assim, a dimensão “arcaica” da economia não podia ser entendida com uma “excrescência”, um pólo “marginal” indesejado das estruturas subdesenvolvidas, mas antes como parte coerente e funcional do modelo característico de acumulação nos países periféricos. Este modelo, combinando um intenso processo de industrialização com uma estrutura agrária basicamente atrasada, produzia taxas fabulosas de acumulação por um lado, e por outro incríveis níveis de exploração da força de trabalho. Aí se encontrava a racionalidade dessa integração dialética.

A Lei Desenvolvimento Desigual e Combinado: É Possível uma Teoria Geral do Desenvolvimento dos Países Atrasados?
Caio Prado Jr. analisava que desde época colonial a realidade nacional já era marcada pela mistura de tempos históricos distintos. Elementos provenientes de diferentes etapas do desenvolvimento histórico se combinavam numa formação histórica, social e econômica singular. Era a estrutura agrária semi-feudal que se ligava à estrutura geral do modo de produção (que se orientava pela acumulação de capital no centro do sistema); as relações capital/trabalho atrasadas que garantiam acumulação de capital para as mais modernas inovações técnicas e para expansão do sistema em escala mundial; a combinação numa mesma formação econômica de setores oriundos das mais modernas formas produção com setores que representavam as relações de produção arcaicas.

Levando em consideração esses fatos, Celso Furtado viu brilhantemente a necessidade de uma teorização autônoma dessas estruturas singulares, bem como, descartou a hipótese evolucionista e etapista. No entanto, compreendia a existência numa mesma estrutura de elementos econômicos “arcaicos” e “modernos” como duas dimensões que não se encaixam e se separam. Chico de Oliveira, por sua vez, defendeu que a combinação desigual e combinada desses elementos contraditórios formava uma estrutura com sentido coerente, qual seja o de constituir um modo de acumulação própria dos países subdesenvolvidos. As partes agora se encaixam e se unem, se alimentam reciprocamente.

Mas algumas questões que se desdobram da análise das formações socioeconômicas dos países atrasados não foram suficientemente desenvolvidas pelos autores. È possível generalizar uma lei do desenvolvimento histórico-social que se aplique a totalidade dos países chamados “subdesenvolvidos”? A combinação dos elementos de etapas históricas distintas (abordada diferentemente pelos autores) implica em quais possibilidades de mudança, se levando em conta o desenvolvimento geral do modo de produção capitalista? Qual é sua dinâmica própria e as características gerais de seu desenvolvimento? Ao procurar respostas a essas questões nos parece valiosa a teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trostky (muita rica e ao mesmo tempo esquecida pela academia).

Levado pela necessidade de precisar as características gerais da Rússia e a dinâmica histórica, o revolucionário russo lançou mão de uma teoria que buscava compreender o desenvolvimento dos países atrasados (nos quais coexistiam estruturas modernas e arcaicas). Explicita sucintamente a lei Trotsky:

O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não se revela em parte alguma, com a evidência e a complexidade com que o demonstra o destino dos países atrasados. Fustigados pelo chicote da necessidade material, os países atrasados vêem a necessidade de avançar aos saltos. Dessa lei universal do desenvolvimento desigual deriva outra que, na falta de nome mais adequado, qualificaremos de lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho e à combinação de distintas fases, à mistura de formas arcaicas e modernas (TROTSKY, 2000, pg.49).

A lei do desenvolvimento desigual e combinado exprime as distintas proporções no crescimento da vida social e a correlação concreta destes fatores desigualmente desenvolvidos no processo histórico. Essas variações entre os múltiplos fatores da história dão a base para o surgimento de um fenômeno novo, no qual as características de uma etapa inferior de desenvolvimento social se misturam com as de outra, inferior. Essas combinações têm um caráter altamente contraditório e apresentam acentuadas peculiaridades.Elas podem desviar-se muito das regras e efetuar tal oscilação de modo a produzir um salto qualitativo na evolução social e capacitar os povos atrasados a superar, durante certo tempo, os mais avançados. No entanto, esse salto qualitativo para Trotsky era impossível dentro dos marcos do capitalismo, como defendiam – mesmo que diferentemente – Caio Prado Jr. e Celso Furtado. A análise de Trotsky também nos permite ir além de Chico de Oliveira – que mesmo negando a possibilidade do desenvolvimento capitalista na periferia do sistema não colocava a necessidade obrigatória da revolução.

A caracterização do revolucionário russo é de que o sistema social-econômico vigente – na época do imperialismo-, dado ao seu grau de maturação, expressado na destruição das forças produtivas em escala global (o homem e a natureza principalmente); na interdependência das economias; na divisão internacional do trabalho ditada pelas economias dominantes; pelo domínio de grandes monopólios, comandados principalmente pelo capital financeiro, que controlam parcelas inteiras da economia mundial; no papel reacionário das classes dominantes dos países subdesenvolvidos, que por estarem subordinados aos centros do sistema seriam incapazes de qualquer ação independente e sua ação seria no sentido de manter a ordem atual do sistema; não poderia oferecer a hipótese de um desenvolvimento econômico autônomo capitalista na periferia do sistema. A única a perspectiva aos países atrasados seria a da revolução socialista. Assim, a existência de formações social-econômicas atrasadas, que combinavam características de tempos históricos distintos e que mal tinham se desenvolvido do ponto vista capitalista clássico, e que necessitavam implementar as “reformas capitalistas pendentes”, só podiam ser superadas com a ruptura com o sistema. Em síntese, era preciso combinar, então, a partir da revolução socialista (estatização dos meios de produção, poder político nas mãos dos trabalhadores, etc) as tarefas pertinentes às outras formações históricas e as necessidades do novo regime. Essa era a aposta política de Trotsky.