Eduardo Almeida
Estamos vivendo momentos históricos. Infelizmente históricos, provocados pela combinação entre pandemia e crise econômica. A brutal polarização social resultante dessa situação está levando a mudanças bruscas, tanto na consciência como na ação das massas em países muito diferentes no mundo, e abrindo a possibilidade de maiores enfrentamentos entre revolução e contrarrevolução.
Não por acaso, estamos vendo ascensos como na Colômbia, com enfrentamentos brutais contra a repressão do governo Duque há mais de dois meses, assim como vimos nos EUA no início de 2020. Não por acaso, ocorreram resultados eleitorais como na Constituinte chilena, em que os grandes partidos da direita sofreram uma enorme derrota.
Essas modificações na consciência podem chegar também ao repúdio ao capitalismo e melhor aceitação das bandeiras socialistas. Alguns indícios nesse sentido são o crescimento do DSA nos EUA (organização reformista) e algumas pesquisas que indicam isso. A pesquisa da Edelman, em 28 países, concluiu que 56% da população entrevistada opinam que “o capitalismo, em sua forma atual, está fazendo mais mal do que bem para a sociedade”.
É importante ter em conta que isso pode ser- ou não- um início de reversão do retrocesso causado pela gigantesca campanha de propaganda pós-leste europeu na década de 90 da “morte do socialismo”.
Caso se confirmem, essas mudanças podem estar relacionadas a essa brutal situação objetiva causada pela combinação entre os milhões de mortos da pandemia e a miséria produto da crise econômica. Existe fome crescendo fortemente nos bairros populares de todo mundo, mesmo nos países imperialistas.
Essa polarização social objetiva nos obriga a uma defesa mais enfática do socialismo como única alternativa à barbárie capitalista. Isso está colocado, exista ou não nesse momento, essas mudanças na consciência.
Socialismo ou barbárie
A defesa do socialismo implica em um retorno à estratégia defendida por Marx e Engels, desde o Manifesto Comunista. O Manifesto foi escrito há 173 anos (baixe aqui), mas é mais atual que nunca em seus aspectos centrais. Em uma de suas partes, fala da tendência ao empobrecimento crescente dos trabalhadores causada pelo capitalismo. Hoje, a miséria cresce brutalmente no mundo, com centenas de milhões de desempregados pela crise econômica e a pandemia.
Mas a verdade inclui também o outro lado, o enriquecimento de um punhado de bilionários donos das grandes empresas multinacionais. Jeff Bezos, por exemplo, ganhou 12 bilhões de dólares em um único dia, o que corresponderia a pagar o auxílio-emergencial de 600 reais para metade da população brasileira.
O capitalismo transforma cada passo do avanço na tecnologia em uma ameaça para a humanidade. Avanços como a rede 5.0, a inteligência artificial, a indústria 4.0 poderiam ser grandes progressos para a humanidade, produzindo mais artigos com menos tempo de trabalho, possibilitando a redução das horas de trabalho para o conjunto dos trabalhadores. Ao contrário, vão significar um aumento qualitativo do desemprego e da miséria.
A expropriação das grandes empresas e a planificação da economia possibilitaria que se produzisse para satisfazer as necessidades da humanidade e não para garantir lucros gigantescos para o pequeno grupo dos grandes burgueses. Basta lembrar que, durante a mais grave crise econômica do capitalismo, a depressão de 1929, enquanto os países imperialistas retrocediam 20% no PIB por ano, a URSS crescia sua indústria a 16% por ano entre 1928 e 1940.
Hoje, seria possível que a humanidade trabalhasse de 4 a 6 horas por dia, ninguém passasse fome, houvesse educação e saúde gratuita e de qualidade para todo o mundo.
A pandemia atual é uma expressão dos desequilíbrios ecológicos provocados pela expansão das fronteiras agrícolas de maneira predatória pelas grandes empresas. O desenvolvimento de novas fontes de energia limpa, que poderiam significar um avanço na relação da humanidade com a natureza, estão bloqueados pela dominação do capital. A humanidade está à beira de uma catástrofe ambiental, com o aquecimento global e a poluição dos ares, dos rios e mares. A pandemia atual pode ser o anúncio de outras semelhantes ou piores no futuro, assim como de novas catástrofes ambientais.
Nos dias de hoje, já existem elementos de barbárie na realidade. Isso não é somente uma possibilidade, uma perspectiva. Já começa a se tornar realidade, e pode se ampliar muito.
O socialismo não é uma utopia, é a única estratégia realista. Socialismo ou barbárie. Essa afirmação nunca foi tão atual.
Socialismo significa revolução socialista
O Manifesto Comunista não apenas defende o socialismo como alternativa. Expressa uma compreensão científica da realidade, que aponta o proletariado como a classe que pode ser a base para uma revolução, que destrua o estado burguês, e possibilite avançar para o socialismo.
Marx e Engels, corretamente não viam a possibilidade de chegar ao socialismo em um processo evolutivo parlamentar, por dentro do Estado burguês. Por isso defendiam uma revolução socialista.
Depois da Comuna de Paris (1871), em que o proletariado tomou o poder pela primeira vez na história, Marx e Engels precisaram a proposta de que não era só necessário tomar o poder, mas destruir o estado burguês, e construir um novo tipo de Estado, proletário e democrático, a ditadura do proletariado.
Todo Estado burguês é uma ditadura da burguesia. Por que? Porque ela se apoia em alguns mandamentos sagrados, o principal dos quais é: a propriedade privada dos meios de produção nas mãos de um punhado de bilionários é inviolável. O Estado burguês, seja ele uma monarquia, uma ditadura ou uma república, é controlado pelas grandes empresas. Por isso, em todas as vezes, em quase dois séculos em que os partidos reformistas tentaram “mudar o Estado por dentro” fracassaram. Eles partem de um pressuposto equivocado: quando o regime desses Estados fosse uma república democrática, ele poderia ser mudado pela via parlamentar, ou seja, via o ganho gradativo nas eleições de uma maioria no Congresso. Mas o que ocorreu, foi o inverso: foram os próprios partidos reformistas que mudaram passando a administrar o Estado burguês aceitando a ditadura burguesa sobre o Estado. Mesmo quando participaram de governos de coalizão em maioria ou até sozinhos, governaram segundo os interesses estratégicos da burguesia capitalista.
A estratégia do Manifesto nega toda a retórica dos partidos eleitorais, reformistas, tanto na versão europeia socialdemocrata, como também o PT e o PSOL, que por vezes falam em socialismo, mas nunca em revolução socialista, nunca defenderam a destruição do Estado burguês.
A socialdemocracia era conhecida no século passado por só falar em socialismo nos dias de festa, deixando de lado a estratégia socialista nas lutas concretas dos trabalhadores. Todas as vezes em que se tentou avançar por uma “via parlamentar” para o socialismo, houve um fracasso, como mostra a tragédia chilena em 1973, em que um golpe militar de direita acabou com o governo reformista de Allende.Depois da restauração do capitalismo no leste europeu que foi encabeçada pela própria burocracia de Gorbachev, o capitalismo passou a proclamar a “morte do socialismo”, os partidos reformistas passaram a falar menos de socialismo, dizendo que era um sonho distante, ou diretamente pararam de falar, pois deviam ser “realistas”. A estratégia deixou de ser o socialismo pela via parlamentar para ser a “radicalização da democracia” e de reformas para “humanizar o capital”.
Essas “reformas humanizantes” se demonstram um fracasso ainda maior como se pode ver pelos governos petistas no Brasil, ou pelo governo Syriza na Grécia. Syriza era um partido anticapitalista como o PSOL, e fez um governo neoliberal, exatamente como a socialdemocracia europeia.
A única via realista para o socialismo é a defendida por Marx e Engels no Manifesto: a revolução socialista.
Defender o socialismo significa negar o stalinismo
A revolução russa de 1917 foi a primeira vez na história em que o proletariado tomou o poder e conseguiu mantê-lo, dando um exemplo histórico para a humanidade. Infelizmente, esse exemplo foi varrido da memória dos trabalhadores pelo stalinismo.
A burguesia mundial fez e faz uma campanha permanente para identificar socialismo com stalinismo. Os partidos comunistas no mundo, como o PCdoB e o PCB no Brasil, falam a mesma coisa: o stalinismo é a continuidade do partido bolchevique de Lenin.
Isso é uma gigantesca falsificação histórica. O stalinismo foi uma contrarrevolução que transformou o estado operário dirigido por Lenin e Trotsky em uma ditadura burocrática.
Toda a estratégia de Marx e Engels era de um Estado em que a classe operária, como classe, estivesse no poder e o exercesse democraticamente.
Mesmo com as limitações da guerra civil, os primeiros sete anos do Estado operário russo foram a experiência mais rica da história moderna de uma democracia proletária, dos explorados.
A democracia burguesa, na verdade, é uma ditadura do capital. A burguesia controla a economia, financia as campanhas eleitorais dos partidos da “situação” e da “oposição”, controla os meios de comunicação (TVs, jornais, canais de internet). O capital pode assim controlar, na maior parte das vezes, a consciência das massas e as eleições. O resultado é que, independentemente de quem ganhar a eleição, os planos econômicos são semelhantes: se trata de manter os bilionários cada vez mais ricos baseando-se na exploração dos trabalhadores.
Nos sete primeiros anos da revolução russa, os trabalhadores debatiam cotidiana e democraticamente nos sovietes os assuntos de estado. Eles discutiram e decidiram em seus sovietes os rumos da economia russa, da paz e da guerra.
Existia plena liberdade para os partidos nos sovietes. Isso incluía os bolcheviques e socialistas revolucionários de esquerda que estavam no governo, os mencheviques e socialistas-revolucionários de direita, e até os partidos burgueses, até que eles passaram à luta armada contra a revolução aliados aos generais brancos tzaristas e aos imperialistas europeus e foram ilegalizados.
Com a revolução russa, a burguesia perdeu o controle da economia e dos meios de comunicação. Os partidos burgueses não tinham atrás de si a força do dinheiro. O que pesava na discussão era a força das ideias e não do capital. Imaginem o que seria hoje uma discussão democrática nacional, sem a influência do dinheiro das grandes empresas, das mídias burguesas e das fake news para decidir o que fazer com a economia, a pandemia, etc.
Os mandatos dos representantes nos sovietes podiam ser revogados a qualquer momento. Os cargos públicos eram eleitos e os salários dos funcionários não podiam ser maiores que os de um operário médio.
O novo Estado era, como todo Estado, uma ditadura. Mas era uma ditadura do proletariado, dos trabalhadores e não da burguesia. Ao contrário da ditadura capitalista (da minoria sobre a maioria) era uma ditadura da maioria sobre a minoria.
Assegurava ampla democracia para os trabalhadores, e também sua defesa como Estado contra os ataques inevitáveis da burguesia e do imperialismo. A URSS foi atacada pelo exército da burguesia e tropas de 14 países, incluindo as maiores nações imperialistas. E venceu.
Mesmo nessas condições de guerra civil, foi o regime mais democrático para a classe operária e para o povo que a história já conheceu.
A revolução russa demonstrou como se pode derrotar radicalmente as opressões. As mulheres conquistaram o direito ao divórcio, ao aborto e salário igual aos homens. Os restaurantes, lavanderias e creches comunitárias atacaram as bases da escravidão do trabalho doméstico. As leis contra os homossexuais foram completamente abolidas, e o casamento entre homossexuais foi aprovado pelas cortes soviéticas. A opressão sobre as nacionalidades da Rússia tzarista de transformou em uma união livre, a URSS.
A efervescência artística nasce com a liberdade. Não por acaso, dessa democracia nasceu uma arte crítica e muitas vezes genial que marcou a história da arte em vários terrenos. Nas palavras do genial poeta Mayakovsky: “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”. Eisenstein e Dziga Vertov, no cinema, quebraram a narrativa linear hollywoodiana.
No entanto, a derrota dos processos revolucionários na Europa (em particular na Alemanha) e na China, assim como o esgotamento do país com a guerra civil prolongada abriram o caminho para o isolamento da URSS e o crescimento de uma burocracia. Isso possibilitou a contrarrevolução stalinista.
Acabou a democracia operária e se impôs uma ditadura política da burocracia. Os sovietes foram transformados em peças decorativas do regime e a discussão de ideias foi proibida no próprio partido e as oposições passaram a ser perseguidas.
A liberdade artística foi suprimida e o “realismo socialista” se tornou a “arte oficial”, na verdade uma peça de propaganda do regime. A liberdade nas relações humanas foi substituída pela imposição novamente do casamento tradicional. O aborto foi novamente proibido. A homossexualidade foi criminalizada no Código Penal de 1934, e muitos homossexuais deportados para a Sibéria.
Para impor essa contrarrevolução política, foi necessário que Stalin massacrasse 700 mil bolcheviques, incluindo dois terços da direção que dirigiu a revolução. Mayakovsky suicidou-se em 1930. Trotsky foi assassinado no exílio em 1940.
Alguns partidos como o PC oB e o PCB (com Jones Manoel se apoiando em Domenico Losurdo) tentam justificar Stalin, dizendo que a repressão “foi necessária para manter o Estado”. Na verdade, a contrarrevolução stalinista transformou a URSS em uma ditadura burocrática, que acabou por levar a restauração do capitalismo. Os stalinistas hoje defendem a ditadura capitalista chinesa, como “uma espécie de socialismo”.
A necessária defesa do socialismo nos dias de hoje passa, mais uma vez, pela reafirmação da estratégia de Marx e Engels de um novo Estado operário que se baseie na propriedade coletiva dos meios de produção, que seja uma democracia operária, uma categórica negativa do stalinismo.
A estratégia socialista implica em defender um programa de transição
Trotsky sistematizou a experiência política e programática do processo revolucionário no século XX, com a defesa de um programa de transição. Esse programa deve fazer a ponte entre as reivindicações concretas que estão na consciência e nas lutas das massas com a luta pelo poder, incluindo palavras de ordem mínimas, democráticas e diretamente de transição.
Essa é uma necessidade presente nos dias de hoje, e deve ser formulada em base a realidade concreta de cada país e cada situação da luta de classes.
Isso tem importância porque muitas vezes, a expectativa de mudanças da miséria das massas se baseia em partidos, como o PT e o PSOL, que defendem a via eleitoral para um novo governo de Lula em aliança com setores fundamentais da burguesia, uma espécie de “unidade nacional contra Bolsonaro”.
A polemica envolve também grupos e organizações que se postulam como de esquerda radical. Hoje, por exemplo, existe um debate programático com o Bloco Esquerda Radical, que lançou a candidatura Glauber Braga como pré-candidatura à Presidência da República. Existe um elemento positivo nisso, por se apresentar como alternativa contra a adesão do PSOL a candidatura de Lula.
Um novo governo Lula anuncia a reedição em condições ainda piores que os governos anteriores do PT, todos nos marcos do capital. Mas o programa de Glauber Braga, que se anuncia como “anticapitalista”, para nos limites de um programa democrático e anti-neoliberal. Não ataca a propriedade das grandes empresas, seja dos bancos que controlam a economia, seja das multinacionais, seja das grandes empresas no setor de saúde. Mais uma vez, um programa de reformas do capital, que não enfrenta diretamente o controle da economia pelas grandes empresas.
A brutal polarização social presente no país e no mundo em função da pandemia e da crise econômica está começando a provocar mudanças profundas em muitos países. Isso necessita ser respondido com um programa de transição ao socialismo no Brasil, tanto nas lutas como nas eleições. As bandeiras vermelhas da revolução socialista devem ser levantadas com enorme orgulho por nós.