Eduardo Almeida
Eduardo Almeida Neto, da direção nacional do PSTU
Morreu Zé Celso. Não era apenas um ator, um diretor de teatro. Morreu um ícone da cultura brasileira.
Há figuras que expressam, em sua linguagem artística e no fazer cultural, a sensibilidade de um povo e de uma época. E, assim, marcam de forma indelével essa época, esse povo.
Zé Celso era assim. Como Tom Jobim marcou uma mudança na música brasileira, trazendo a influência do jazz para a Bossa Nova. Como Gal Costa e Rita Lee ajudaram a mudar a MPB e o rock brasileiro e, ainda, incorporam a luta das mulheres contra o machismo e a ditadura militar. Como Elza Soares trouxe a voz das mulheres dos morros para os palcos e dialogou com gerações e estilos dos mais diversos.
Um ousado e rebelde antropófago
Nos anos 1920, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral adotaram a revolucionária ideia da Antropofagia como forma essencial da Arte e da Cultura brasileiras.
A ideia é que, para produzirmos algo em um país de herança colonial e com a presença de diversas etnias e culturas como o nosso, precisamos nos comportar como “canibais indígenas”, se alimentando do “outro” não “pela fome”, mas para nos impregnarmos de sua “força vital”, que mesclada com nossas referências, seja capaz de produzir algo novo e único. Nacional e universal.
Tudo isto foi sintetizado no quadro “Abaporu”, que, literalmente, quer dizer “homem que come gente”, e no Manifesto escrito pelos dois, em 1928. E foi exatamente esta perspectiva que Zé Celso trouxe para os palcos, revolucionando o teatro brasileiro, detonando o estilo clássico e formal, com o “Rei da Vela”. Assim como trouxe a sátira, o deboche, em rituais tropicalistas contra a ditadura, como “Roda viva”.
Tudo isto, evidentemente, não passou sem ser percebido pela moral tacanha e autoritária da ditadura militar. Zé foi preso e torturado, em 1974, e teve que se exilar. Mas sobreviveu e mudou o teatro e, por tabela, todo o fazer artístico-cultural em nosso país. Hoje morreu parte da cultura brasileira.
A Arte aliada à luta pela liberdade
Eu o conheci no início da década de 70. Eu era estudante da Universidade de Brasília. Nos enfrentávamos com a ditadura e seu representante na universidade, o vice reitor Jose Carlos de Azevedo, capitão da Marinha e membro de seu serviço de informações.
Honestino Guimarães, maior líder da UnB foi preso, torturado e morto em 1971. O movimento estudantil estava se reerguendo, com a mobilização dos estudantes da Medicina e, depois, de toda a universidade. Eu mesmo fui expulso da universidade por Azevedo. Como parte das lutas, trouxemos o Oficina para se apresentar no campus, em Brasília. Não foi só um apoio à nossa luta. Foi um choque cultural.
Eles se apresentaram de forma completamente distinta de tudo o que eu já tinha visto, em pequenos esquetes, em distintas partes do campus. O pequeno grupo de teatro do qual eu participava mudou e passou a se apresentar de surpresa nos bares da cidade. Cantávamos uma música, atraindo a atenção das pessoas, falávamos contra a ditadura e saíamos correndo, antes que a polícia chegasse.
Depois, já em São Paulo, como parte da Convergência Socialista, fomos ver Zé Celso, apoiando sua luta contra Sílvio Santos, que queria construir três torres de edifícios no terreno do Teatro Oficina. Zé Celso tinha o apoio não só do pessoal do Teatro, mas de toda a vanguarda cultural e de esquerda do país.
Valeu, Zé Celso!
Ele era uma personalidade exuberante, fascinante, hiperbólica, exagerada. Um Maiakosvisky no Teatro e na vida. Seu casamento, há um mês, com o ator Marcelo Drummond, com quem já vivia há 37 anos, foi uma celebração da vida. E mais um capítulo numa bela história também construída na luta contra a LGBTIfobia (que vitimou seu irmão, o também dramaturgo Luiz Antônio Martinez Correa, em 1987).
Agora morre de forma trágica, depois de ter o corpo queimado no incêndio em seu apartamento. Vida e morte, morte e vida.
Adeus Zé Celso. Você ajudou a mudar o Teatro brasileiro e nossas vidas. Hoje estamos mais pobres e tristes.