Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Léa Garcia, que faleceu nesse dia 15 de agosto aos 90 anos, foi e sempre será uma das principais atrizes negras de nossa história. Por isso mesmo, o fato de ter saído de cena, vítima de um infarto agudo, poucas horas antes de receber uma homenagem, pelo conjunto de sua obra, no Festival de Gramado (RS), ao lado da também gigante Laura Cardoso, é significativo em muitos sentidos.

Dona de uma garra e de uma força só comparáveis ao seu talento, Léa nos deixou no universo ao qual dedicou sua vida e cercada dos seus, como comentou o ator Caio Blat. “Acho que os gigantes da nossa profissão gostam de partir em movimento. Gostam de viver o cinema até o último instante. Ela é imortal, inesquecível, abriu caminhos, precursora da representatividade que hoje ainda se busca”, declarou Blat, que é um dos curadores do Festival de Gramado este ano.

A premiação foi mantida (foi recebida por seu filho Marcelo) e a cerimônia foi transformada em uma bela homenagem à atriz. E esta não foi a primeira vez em que Léa foi premiada em Gramado. No decorrer da carreira, marcada por mais de 100 produções no cinema, no teatro e na TV, recebeu quatro “Kikito” (o prêmio máximo do Festival), por sua participação nos filmes “Filhas do Vento”, “Hoje tem Ragu” e “Acalanto”.

Premiações que, assim como todas as demais que recebeu, também no Teatro, nunca farão jus, de fato, ao papel importantíssimo que Léa Garcia cumpriu em relação à história das artes e da cultura no Brasil, em particular do povo negro e, de forma muito especial, das mulheres negras e aqueles e aquelas que se dedicam ao fazer artístico e, para isto, enfrentam e combatem o racismo.

Uma poeta que explodiu as paredes dos palcos

Nascida no Rio, em 1933, filha de um bombeiro hidráulico e uma costureira (que morreu quando ela tinha 11 anos), Léa foi criada pela avó, uma empregada doméstica. Como sempre dizia em entrevistas e depoimentos, sua primeira paixão foi a escrita, particularmente a poesia, algo que cultivou a vida inteira.

Era profunda conhecedora das obras de gente como Langston Hughes, o poeta negro e gay que esteve no centro da Renascença do Harlem (um movimento político e cultural que explodiu no bairro negro de Nova York, nos Estados Unidos, nos anos 1920) e de Cruz e Sousa, o Dante (ou Cisne) Negro, principal poeta simbolista do Brasil, cuja vida e obra foram profundamente marcadas pelo racismo, algo que sintetizou no magnífico “O emparedado”.

“Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça”, diz um trecho do poema, constatando uma realidade que, apesar de vivida até hoje pela quase totalidade de negros e negras, foi brava e constantemente desafiada por Léa Garcia.

Apesar de não ter se feito escritora, Léa levou, ainda muito jovem (aos 16 anos), sua veia poética para os palcos, descobertos através de uma das mais importantes realizações na história das Artes Cênicas no Brasil: o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944 pelo militante e agitador cultural Abdias do Nascimento, com quem Léa foi casada entre 1951 e 1958 e ao lado de quem participou de montagens como “Rapsódia negra” (1952), “O Imperador Jones” (1953), “O Filho Pródigo” (1953), “A Alma que Volta Para Casa” (1956) e “Sortilégio” (1957).

Todos elas literalmente revolucionárias e por motivos que seriam “simples”, caso não vivêssemos num país de herança colonial e racista: produções feitas e interpretadas por negros e negras; a utilização de trilhas, figurinos, cenários e temas sintonizados com as tradições e culturas afro-brasileiras ou, ainda, a “ousadia” de montar e dar novas roupagens para clássicos da dramaturgia mundial com atores e atrizes negros.

Nas décadas se seguiram, Léa colocou seu talento a serviço dos principais nomes da dramaturgia brasileira, como Nelson Rodrigues (em “Perdoa-a por me traíres”, em 1959, e “Anjo Negro”, em 1994); Bibi Ferreira (“Piaf”, 1983/85); Sérgio Brito (“Romeu e Julieta”, 1995); Cacá Diegues (“O maior amor do mundo”) e Naum Alves (“Pequenas raposas”, 2004/05), dentre vários outros.

Contudo, uma de suas atuações mais marcantes continua vinculada à primeira fase de sua carreira, como a personagem Serafina, em “Orfeu da Conceição” (1956), escrita por Vinícius de Moraes e Tom Jobim, transpondo o mito grego de Orfeu e Eurídice para os morros do Rio de Janeiro, com canções inesquecíveis como “Se todos fossem iguais a você” e “Manhã de Carnaval” (na versão para o cinema, “Orfeu Negro”).

Em cena do filme Orfeu Negro

Inundando as telas de negritude

Foi exatamente com a versão cinematográfica de “Orfeu”, lançada em 1959 e dirigida pelo francês Marcel Camus, que Léa estreou no cinema. E em grande estilo. O filme ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro e Léa foi indicada ao prêmio de melhor atriz no renomado festival de Cannes, na França.

No decorrer da carreira, Léa se envolveu em algumas das principais produções que resgataram a história negra neste país e problematizaram o racismo.

No teatro, além dos espetáculos do TEN, participou de montagens como “Os tesouros de Chica da Silva” (1972); “Noites negras: Mixmemória” (1996); “De coragem, suor e glória: poemas negros/panorama da palavra” (2000). No cinema, atuou em filmes como “Ganga Zumba” (1963) e “Quilombo” (1983), ambos dirigidos por Cacá Diegues; e “Cruz e Sousa, poeta do Desterro” (Sylvio Back, 1995).

A partir da década de 1970, tornou-se figura frequente nas telenovelas; mas, como a enorme maioria de nossas atrizes e atores negros, sua carreira também foi bastante marcada pela interpretação de empregadas e escravas, algo que Léa encarnava com seu gigantesco talento e enorme dignidade, como foi o caso da maldosa Rosa, personagem de “A escrava Isaura” (1976), ou a Bastiana, de “Chica da Silva” (1996)

Léa, contudo, não deixou se limitar pelo “emparedamento” em personagens estereotipados. Como em tudo que fez, cumpriu um papel de pioneira e questionadora da “ordem”, causando, por exemplo, uma enorme polêmica, em 1971, ao interpretar o primeiro casal interracial em uma telenovela (ao lado do ator Paulo Araújo, em “O homem que deve morrer”).

Um legado inestimável para a cultura e o cinema negros brasileiros

Extremamente consciente do racismo em nosso país, Léa nunca se calou diante da marginalização, da discriminação e dos preconceitos. Como também lutou, com todas as armas que tinha, para questionar e combater a opressão.

Em 1980, quando os movimentos negros estavam em pleno processo de reorganização, em meio à luta contra a ditadura, Léa Garcia literalmente fez História, ao interferir no roteiro de uma novela da Globo (“Marina”) para adequá-la às nossas reivindicações e debates.

Léa interpretava uma professora de História, numa escola de elite, onde sua filha (papel de Íris Nascimento) era a única aluna negra e, consequentemente, constante alvo de discriminação, uma situação que, quase invariavelmente, passava literalmente em branco nas novelas. Mas, não tendo Léa no elenco.

O roteiro já previa que a personagem de Léa daria uma aula sobre Zumbi dos Palmares como parte da trama. Contudo, ao lê-lo, a atriz se recusou a interpretar o texto. “Era uma visão do Zumbi dos Palmares que não era a nossa, era uma visão eurocentrista. Eu não podia falar aquilo na televisão”, declarou a atriz em uma entrevista para a tese de Doutorado “As Filhas do vento e o Céu de Suely: sujeitos femininos no cinema da retomada” (2010), de Sumaya Machado Lima, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Na época, Léa, que atuava no Instituto de Pesquisa da Cultura Negra (IPCN), convocou uma discussão com os membros da entidade para revisar o texto e modificá-lo, o que resultou em uma cena em que sua personagem deu sua aula não só colocando negros e negras como protagonistas de sua própria história (no passado e no presente), como também fortaleceu os movimentos negros, que estavam em plena luta para instituir o “20 de novembro” como Dia Nacional da Consciência Negra (o que só se consolidou em 2003).

Léa Garcia, em cena da novela “Marina” (1980), na qual interpretou uma professora que questiona o racismo através de uma aula sobre Zumbi dos Palmares, numa cena escrita por ela própria, em consulta com o movimento negro

Como roteirista, adaptou para as telas textos de autores negros e, há muito, colocava seu talento e generosidade a serviço do trabalho de cineastas, muitos jovens e/ou no início de carreira, que valorizam o debate sobre a questão racial.

Além das produções já mencionadas, vale citar “As Filhas do Vento” (2005), dirigida por Joel Zito Araújo (cujo excelente documentário “A negação do Brasil”, que resgata a história de negros e negras nas telenovelas, tem Léa como um de seus principais personagens), e “Aconteceu no Rio de Janeiro”.

Neste último filme, Léa adaptou quatro contos de ficção de autores negros: “O batizado” de Cuti (um dos fundadores, em 1980, do “Quilombhoje”, um coletivo e editora dedicados a autores e autoras negros); “O cobrador e o deus vaca” e “Aconteceu no Rio de Janeiro”, de Cidinha da Silva e “Vovó veio para jantar”, de Muniz Sodré. Também de Cidinha da Silva, adaptou, em um média-metragem, o belíssimo “Dublê de Ogum”, no qual os vínculos de um garoto com as religiões de matriz-africana são confundidos com um problema de saúde mental.

Para além da interpretação e do trabalho como roteirista, Léa também se envolveu nas lutas de sua categoria, tendo sido eleita, em 2010, como diretora artística do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Direções (SATED).

Uma guerreira digna da herança e tradição das mulheres negras quilombolas

A importância de Léa Garcia, particularmente para as mulheres negras que são artistas, pode ser sintetizada em uma postagem feita, hoje, por Zezé Mota, outra de nossas Damas Negras. “Eu estou até agora sem saber como dimensionar a gravidade de como essa notícia chegou em mim. Eu acabo de me dar conta que, na data de hoje, a minha última referência viva se foi”, escreveu Zezé, lembrando que foi vendo Léa nas telas e nos palcos que ela própria, nos anos 1960, concebeu que era possível ser uma mulher negra e atriz.

Uma dificuldade que sempre esteve presente nas entrevistas e depoimentos de Léa Garcia. Em uma delas, para o projeto de “Memória da Globo”, a atriz foi categórica. “O negro dentro da televisão e do teatro luta com muita coisa, ele conquista seu espaço com unhas e dentes”, declarou a atriz.

Dona de uma disposição invejável, demonstrada inúmeras vezes nos dias que antecederam sua morte em Gramado, por onde circulou, falando com o público, debatendo com colegas de profissão e prestigiando os filmes em exibição, Léa continuava ultra ativa.

Nos últimos anos, trabalhou em séries como “Assédio” (2018), “Carcereiros” (2019), “Arcanjo renegado” (cuja terceira temporada foi ao ar no ano passado) e na ainda inédita “Vizinhos”, do Canal Brasil.

Também em 2022, atuou em três longas: “Barba, cabelo e bigode”, “Pacificado” e “O pai da Rita”, este último sob a direção, de novo, de Joel Zito Araújo e no qual Léa interpretou Tia Neguita, uma personagem enraizada no Bixiga, um bairro paulistano de forte tradição negra, e vinculada à Escola de Samba Vai-Vai.

Exemplar de sua vitalidade guerreira e sua incansável dedicação à Arte também foi sua última atuação no teatro, em “A vida não é justa”, dirigida por Tonico Pereira, que fez uma longa temporada no ano passado com Léa interpretando nada menos que quatro papéis diferentes.

Aliás, um dos motes desta peça, segundo Andréa Pacha, a autora dos contos que a inspiraram, com certeza serve para finalizarmos nossa homenagem à grande Léa Garcia. “Compreender nossa humanidade nos faz mais responsáveis pelo nosso destino”, escreveu Pacha.

Léa se fez gigante e imortal exatamente por compreender o que é ser uma mulher negra num país como o nosso e ao ousar não só resgatar e defender sua própria humanidade através da Arte e da luta, mas também por ter escolhido viver seu ofício com dignidade e sempre tendo em vista a valorização e reflexão sobre aquilo que realmente nos faz humanos (e não deturpação e rebaixamento da humanidade, tão popularizados por aí).

E foi exatamente por isso que Léa foi senhora de seu destino e influenciou o de tantos outros e outras. Inegavelmente, deixara saudade. Mas, viveu em plenitude e, acima de tudo, cumpriu um papel inestimável, transformando-se em referência, fonte de reflexão e inspiração para uma infinidade de artista e o público em geral, fazendo-se imortal.

Por isso tudo, obrigado Léa! Temos certeza que seu “axé” continuará pulsando forte nos palcos, nas telas e nas vidas de muitos e muitas que tocou com sua presença e talento e, particularmente, nas novas gerações de negras que sonham em aquilombar os palcos e as telas.