Foto Alberto Maraux / SSP-BA
Zé Maria

Metalúrgico e presidente nacional do PSTU.

O Brasil vive o momento mais dramático até agora da pandemia de coronavírus, com a média de mortes diárias chegando a quatro mil pessoas. Os efeitos da pandemia na economia, e desta nas condições de vida da população são também devastadores, especialmente para a população mais desprotegida, pobre e negra, que vive na periferia dos grandes centros urbanos.

É neste cenário que ganhou repercussão nacional a morte de um policial militar em Salvador na noite de domingo (28). Um episódio trágico onde o soldado da PM, Wesley Soares, ao que tudo indica em meio a um surto psicótico e armado com um fuzil com o qual efetuava disparos, acabou sendo morto a tiros por policiais do BOPE do estado da Bahia.

Imediatamente circularam pelo país muitas versões sobre o ocorrido, nenhuma delas desinteressada, obviamente. Neste espaço quero expressar a minha opinião que, espero, ajude a jogar luz sobre o ocorrido e, especialmente, a entender os elementos que levaram àquela situação e tornaram praticamente inevitável aquele desenlace. Porque há lições importantes que devemos extrair daí. Todos nós, os trabalhadores de maneira geral, e também os policiais militares e demais forças policiais do país.

Um sistema que massacra os trabalhadores e o povo pobre…

É uma realidade já bastante conhecida de todos nós, a violência sistêmica da Polícia Militar sobre a população pobre e negra da periferia dos grandes centros urbanos, que ceifa a vida de milhares de jovens todos os anos. Em Salvador mesmo, ainda está em nossa memória o assassinato de 12 jovens no Bairro Cabula, em fevereiro de 2015, praticado por policiais militares. Trata-se de um cenário inominável, desumano, que precisamos combater e denunciar todos os dias.

No entanto, também é fundamental compreendermos que, mais do que abusos e excessos de policiais (que também há), esse cenário é resultado de uma política consciente do Estado, determinada pelos governos e orientada a partir do comando das corporações. O objetivo não é garantir segurança para o público. A meta é conter, pela violência, o descontentamento de uma população imensa que é excluída de praticamente todos os seus direitos – sociais, políticos/jurídicos, a uma vida minimamente digna – o que escancara a hipocrisia do tal “Estado Democrático de Direito” no capitalismo.

A chamada “guerra às drogas”, política adotada pelo governo federal e governos estaduais, é a doutrina em que se baseia a atuação das polícias que, na verdade, não passa de uma justificativa oficial para a práticas destes desmandos, pois se sabe muito bem que a violência que cresce a cada dia contra as comunidades em nada afeta o comércio de drogas ilícitas. O completo desprezo a direitos mínimos e à humanidade destas populações fica evidente no comentário feito à época da chacina do Cabula pelo governador da Bahia, Rui Costa (PT): “um PM de arma em punho é como um artilheiro na cara do gol”.

E há ainda uma outra dimensão onde vemos a utilização das forças policiais pelas elites do país, não para garantir segurança pública, mas sim os interesses dos donos do dinheiro: é no papel dessas instituições na repressão sistemática contra as lutas e organizações da classe trabalhadora e do povo pobre. Dessa situação sabemos todos, somos testemunhas e vítimas dela todos os dias. E isso só piora, o governo federal está tentando aprovar, neste momento, mudanças na legislação do país para tratar as lutas e organizações dos trabalhadores como “terrorismo”, justamente porque quer aumentar ainda mais esta repressão.

…e massacra também os próprios policiais

As informações que circulam sobre o soldado Wesley é que se tratava de um soldado aplicado e disciplinado prestando serviço em cidade do interior da Bahia. Recentemente foi humilhado pelo Comando da Corporação para impedir que ele levasse adiante o cumprimento do seu dever (autuar o filho de uma autoridade da região que estava transgredindo a lei). Chegaram ao ponto de dar-lhe “voz de prisão” e ainda transferi-lo de cidade. Aparentemente foi aí, neste episódio, que começou a se manifestar o transtorno mental que acabou no quadro de surto psicótico e no desfecho trágico que vimos em Salvador. Consta inclusive que seu primeiro discurso ao chegar no Farol da Barra foi para protestar contra os baixos salários, as condições precárias de trabalho, as injustiças e humilhações… pedia providências contra tudo isso ao governador…

Essa pode ser uma parte da realidade menos conhecida da sociedade, e mesmo da classe trabalhadora, mas a situação que levou o soldado Wesley a este extremo está longe de ser uma exceção. O massacre cotidiano a que são submetidos os soldados e a baixa oficialidade (cabos, sargentos) dentro dessas instituições vai desde os baixos salários, péssimas condições de trabalho, até o absurdo regime disciplinar das corporações militares que submete os soldados e a baixa oficialidade a todo tipo de perseguição, humilhação e exclui os soldados de qualquer direito democrático. O resultado pode-se ver e um sem-número de estudos existentes sobre o adoecimento mental de policiais militares. Na PM encontramos senão a maior, uma das mais altas taxas de suicídio numa categoria profissional em nosso país. Na chamada “guerra às drogas” morrem aos milhares jovens pobres e negros mortos por policiais… Mas morrem também muitos policiais, em sua maioria, também negros e pobres. A Polícia Militar no Brasil é uma das que mais mata no mundo, mas também é das que mais morrem policiais.

E não pensem que há preocupação ou (menos ainda) alguma atitude concreta por parte dos Comandos das PMs, dos governos estaduais ou do governo federal para debelar essa situação. Não há. Pelo contrário, os soldados são submetidos a um treinamento (doutrinação), que é um verdadeiro adestramento, que desumaniza o policial para que cumpra o papel repressor que o Estado espera dele. E a penúria imposta pelos baixos salários e péssimas condições de trabalho são conscientemente utilizadas pelo Comando para aumentar a raiva do soldado contra os demais trabalhadores e contra as pessoas pobres da periferia, como se deles fosse a culpa pela sua situação. Assim impele os soldados a agir com mais violência e sem vacilação. Os governos estaduais, das mais diferentes colorações partidárias, tratam muito bem os Comandantes, que ganham altos salários e têm inúmeras regalias. Já a tropa é tratada à pão e água, sujeita a todo tipo de desrespeito, injustiça e humilhação.

Bolsonaro mente aos policiais, quer apenas jogá-los contra os trabalhadores

Bolsonaro faz muitos acenos e promessas para as forças policiais do país. Mas na verdade ele não quer acabar com a penúria dos soldados. Quer é agravar este quadro. A tentativa de seus apoiadores de usar essa tragédia na Bahia a favor da sua cruzada contra os cuidados para proteger a saúde da população, num momento que o número de mortes diárias pela pandemia chega a 4 mil pessoas (aqui estão incluídos muitos policiais e familiares), mostra até onde vai a desumanidade desse governo.

O que Bolsonaro quer, de fato, é implantar uma ditadura no país, acabar com as liberdades democráticas da população, e para isso precisa de força. Por isso insiste o tempo todo no apoio das Forças Armadas aos seus objetivos (como se viu na recente crise gerada pela troca do Ministro da Defesa e dos comandantes das três forças). E quer também usar os policiais, especialmente os policiais militares, para esse fim. Atirá-los como bucha de canhão contra a classe trabalhadora e o povo pobre, usar os soldados para sufocar qualquer resistência do povo pela violência. E ninguém deve se enganar, a ditadura que ele quer implantar não vai melhorar a vida dos policiais ou da baixa oficialidade. Bolsonaro quer implantar um regime de força no país para permitir aos banqueiros e grandes empresários espoliarem ainda mais o nosso povo sem que haja possibilidade de resistência. E os soldados, os cabos, sargentos e seus familiares são parte do povo.

Para quem tem dúvida sobre isso, basta ver que Bolsonaro não titubeou em impor o congelamento dos salários dos servidores públicos, policiais inclusive, na PEC emergencial que acaba de sancionar. Esse cenário tende a se repetir e se agravar cada vez mais. Por ele precisa acabar com qualquer possibilidade de resistência, o que vai afetar também os soldados e a baixa oficialidade. Não haverá menos disciplina militar nos quartéis. Haverá mais. Para impedir qualquer reclamação ou mobilização como a que os policiais fazem hoje, seja para protestar contra a referida PEC, seja em busca de melhores salários e condições de trabalho. Haverá mais desrespeito, mais abusos e mais brutalidade. E nem mesmo possibilidade de denunciar tudo isso haverá num regime em que Bolsonaro possa acabar, como pretende, com a liberdade de imprensa.

A luta pela desmilitarização das PMs é uma luta de toda a sociedade…

Eu ouvi meses atrás uma frase bastante emblemática de um sargento da PMMG: “os policiais militares, cuja função deveria ser proteger os direitos da população previstos nas leis, não têm, eles mesmos, acesso a nenhum dos direitos democráticos garantidos na própria Constituição Federal”. A população precisa de mais, e não menos liberdades democráticas. E os policiais também. A disciplina militar que rege a organização e a atuação das polícias militares é ruim para os soldados e baixa oficialidade, mas não só para eles. É ruim também para a população, pois é através deste mecanismo que se eterniza esse controle ditatorial que os Comandos e Governos têm sobre a tropa e facilita sua utilização para defender os interesses econômicos e políticos dos grandes empresários e dos próprios governantes, ao invés de garantir efetivamente a segurança da população.

A luta pela desmilitarização das Polícias Militares deve, em primeiro lugar, ser assumida pelos próprios soldados e pela baixa oficialidade. Trata-se de uma luta por direitos democráticos. Para que possam se libertar do desrespeito, dos desmandos e abusos a que são submetidos pelo código disciplinar das PMs. Para que tenham acesso a uma coisa básica: direito de lutar por seus direitos (construir seus sindicatos, fazer greve, como qualquer trabalhador), incluído aí o direito de se recusar a cumprir ordens absurdas e ilegais do seu Comando.

A desmilitarização também é uma luta que deve ser assumida por toda a sociedade, pois vai no sentido de fazer com que as instituições policiais estejam a serviço de garantir a segurança pública efetivamente, e não da defesa de interesses políticos e econômicos de governos e grandes empresários. Deve vir acompanhada da defesa de outras medidas, como o direito de a população eleger os delegados e comandantes da polícia, por exemplo.

…e interessa também aos trabalhadores

Enquanto houver capitalismo, os aparelhos policiais, assim como o Estado, vão sempre estar a serviço da proteção dos interesses da classe dominante, dos donos do dinheiro. Não há reforma da polícia que dê jeito nisso. No entanto, nós sabemos também que no momento em que o povo do nosso país se levantar contra toda essa injustiça, desigualdade e violência em que vivemos, não vai ser indiferente para nossa luta que pelo menos uma parte dos homens e mulheres que trabalham nas instituições policiais, assim como das Forças Armadas, estejam ao lado da classe trabalhadora lutando juntos para mudarmos nosso país.

É certo que a classe trabalhadora e suas organizações precisam manter e fortalecer a denúncia veemente de todo ato de violência da polícia contra a população e os trabalhadores, do verdadeiro genocídio contra a juventude pobre e negra da periferia dos grandes centros urbanos, assim com a exigência de punição de policiais (e seus comandantes) que cometerem crimes contra a população. Isso é fundamental. Inclusive, como já tratei em outro artigo publicado recentemente, é necessário que as organizações da nossa classe e movimentos populares encarem a discussão sobre a necessidade da organização da autodefesa da população em suas comunidades, das organizações dos trabalhadores e suas lutas.

No entanto, isso não é contraditório com defender, quando realizadas em defesa de reivindicações justas, a luta dos servidores das forças policiais por seus direitos, o que inclui seus direitos democráticos. Não só porque é justo. Mas também porque isso ajuda a estabelecer um diálogo que precisamos fazer com os soldados e a baixa oficialidade. Para que, ao invés de atacar os trabalhadores e suas lutas para defender interesse dos ricos, se unam à nossa luta, à luta da classe trabalhadora e do povo pobre do nosso país.

Já os soldados e a baixa oficialidade, por outro lado, precisam refletir sobre todo esse cenário em que vivem, e em que vive toda a classe trabalhadora e o povo pobre. Fazendo isso verão que os mesmos responsáveis pela exploração do povo, pela miséria de milhões que garante a fortuna de alguns poucos, são os mesmos responsáveis em última instancia pelas privações, humilhações, adoecimento e injustiças a que são submetidos dentro das instituições policiais. E que a única saída efetiva dessa situação está na sua unidade com a classe trabalhadora para lutar por uma sociedade livre de toda forma de exploração e opressão, uma sociedade socialista.

Leia também

Em crise e acuado, Bolsonaro não desiste de ameaça autoritária