Somente em 2022, no Brasil foram mortas 131 travestis e transexuais | Foto: Mídia Ninja
Secretaria Nacional LGBT

Secretaria Nacional LGBTI+ do PSTU

29 de janeiro, “Dia Nacional da Visibilidade Trans”, foi marcado por marchas, lutas e debates em todo o país, exigindo o fim da transfobia.  A data, criada depois de um imenso protesto realizado em Brasília, em 2004, como parte da campanha “Travesti e Respeito”, é extremamente importante, principalmente para chamar a atenção para as muitas formas de violência que marcam as vidas de milhões de pessoas cujas identidades de gênero não condizem ao gênero imposto no nascimento (ou seja, as identidades cisgênero).

O sistema capitalista — que sempre usa da opressão como forma de marginalizar e superexplorar enormes parcelas da população — desdobra essas formas de violências em questões muito concretas, como o desemprego crônico, a expulsão das escolas , a segregação no mercado de trabalho, a negação do acesso ao sistema de saúde, a imposição da prostituição como única forma de sobrevivência, além de agressões físicas, psicológicas e simbólicas, como denunciamos no artigo “Brasil é o país onde uma LGBTI+ é assassinada a cada 34 horas e, pelo 14º ano, mais transexuais são mortas”.

Exatamente por isso, diante da enorme gravidade desta situação, e da necessidade de encararmos este debate com seriedade e responsabilidade, ficamos indignados com uma postagem feita no Twitter pela Unidade Popular pelo Socialismo (UP), em pleno dia “Dia da Visibilidade Trans”, onde, dentre vários outros problemas, sob o pretexto de se solidarizar com esta luta, o partido desenvolve uma concepção cientificamente ultrapassada e essencialmente transfóbica.

“(…) Devemos coletivamente lutar para que as pessoas transgêneros e transexuais tenham uma vida digna e acesso aos meios de resolverem sua condição (de não se identificarem com o corpo no qual nasceram), diz um trecho da postagem que, na verdade, é parte de um artigo publicado, em 2019, no portal da UP, sob o título “Por que lutar ao lado das pessoas Trans?”.

Compartilhamos da indignação de muitas pessoas que se manifestaram no Twitter. Indignação essa expressa por pessoas trans, mas também por ativistas de diversos setores e organizações), que inclusive levou a UP a apagar e alterar a postagem. Mas, de forma alguma, ficamos surpresos com o caso.

Como também não vemos, como defenderam alguns apoiadores e militantes da UP, que o texto é um “deslize” ou que é fruto de um “problema de redação”. Muito menos aceitamos que qualquer problema pode ser “relevado”, porque além de ter sido escrito por uma militante trans, é um texto recente e reivindicado em seu conjunto e integridade pela organização. Ou seja, havia conhecimento de causa e intenção de reivindicá-lo em todos os seus aspectos, inclusive porque seus trechos foram repostados. Para nós, o problema de fundo é outro: o texto só confirma e reforça que a UP (encabeçada pelo PCR, Partido Comunista Revolucionário), apesar de suas tentativas falhas de “revisionismo” sobre o tema, continua ecoando o pior da tradição stalinista sobre gênero e sexualidade.

Identidade de gênero não é uma “condição a ser resolvida” 

Antes de apontar porque o texto da UP é fundamentalmente transfóbico e reflete uma concepção política enraizada no stalinismo, vale ressaltar que, inclusive, não é por acaso que Jones Manoel, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tenha sido um dos primeiros a se manifestar para, de forma profundamente enviesada, “passar pano” para o UP, tentando afastar as críticas em relação à história de traições e crimes que o stalinismo cometeu também no que se refere à luta LGBTI+.

Assumindo seu papel à frente do revisionismo stalinista, Jones Manoel, apesar de ter ignorado completamente o “Dia da Visibilidade Trans” e sequer ter entrado no mérito da postagem, apressou-se em contra-atacar com uma de suas costumeiras generalizações (“Conservadorismo nas organizações marxistas é um problema seríssimo”) e tentar, mais uma vez, atacar o trotskismo.

O problema, contudo, é que o debate com a UP não é simplesmente sobre o “conservadorismo” das organizações de esquerda. É sobre uma visão de mundo e, particularmente, das questões que envolvem manifestações da sexualidade e gênero que não se enquadram na heterossexualidade e na cisgeneridade. Um debate no qual o stalinismo sempre esteve do lado errado da História.

Ao afirmar que as pessoas trans precisam “resolver sua condição”, uma vez que a identidade de gênero nada tem a ver com o “corpo biológico no qual nasceram”, a UP naufraga todo o debate numa concepção “naturalista” ou “biologizante” da questão, há muito ultrapassada ou “enterrada” pelas lutas ininterruptas e elaborações político-teóricas de travestis, transexuais e transgêneros. Mesmo sob um manto de solidariedade com as pessoas trans, resgatam a ideia absurda de que a transexualidade é uma “doença”, que necessita de uma intervenção cirúrgica e médica, para ser sanada.

Nós repudiamos completamente esta postura. Como discutimos recentemente no texto “Entendendo gênero e transexualidade sob uma perspectiva marxista e revolucionária”, em tudo que se refere às questões de gênero (inclusive dos que são héteros, cisgêneros ou não binários), “as maiores diferenças são ditadas pela Cultura (entendida como a relação de um indivíduo com ‘modo de vida’ e as relações sociais de sua época), não pela Biologia”.

Em outras palavras, sob uma perspectiva marxista e revolucionária, a compreensão sobre o “gêneros” é algo determinado pelo processo histórico, pelas características socioeconômicas em um determinado período, e, no capitalismo, está fundamentalmente associada ao papel que é dado às pessoas na divisão do trabalho e localização nas relações sociais. Não pela biologia. Não por questões “naturais”.

Discutir a transexualidade através da noção para além de equivocada de que “uma pessoa num corpo errado precisa ‘resolver sua condição'” significa não compreender que é a própria opressão transfóbica que impõe que esses corpos sejam marginalizados, oprimidos, violentados e tenham que ser “eliminados”.

O ser humano não existe fora das relações sociais existentes. Sua ideia de si mesmo e do mundo é condicionada pelo capitalismo. A necessidade dessas relações sociais se reproduzirem fomentam as ideologias transfóbicas que naturalizam os papéis sociais feminino e masculino. Assim como não é possível subverter esses papéis sem mudar as relações sociais que os mantêm, ou seja, combater as ideias no campo das ideias, como fazem os identitários, tampouco, é possível almejar uma nova sociedade sem derrotar os preconceitos que dividem a classe trabalhadora.

Visões vulgares do marxismo, como o stalinismo e até correntes que dizem trotskistas como o PCO (em recente texto publicado com polêmica conosco), ao enxergarem o ser humano como mero “fantoche” da história, sem vontade e sem individualidade, simplesmente invisibilizam a identidade das trans.

A única condição a ser resolvida, seja para pessoas trans, LGBTIs em geral, oprimidos e explorados no capitalismo é a derrubada desse sistema, que impede a livre expressão dos seres humanos em todos os seus aspectos, que nos divide, cataloga, marginaliza, construindo as bases da desigualdade e de todos os preconceitos e ideologias que reinam numa sociedade fundada na exploração e baseada na opressão.

Marcha no Dia Nacional da Visibilidade Trans | Foto: Divulgação

Patologização da transexualidade é mais que conservadorismo, é um discurso reacionário

O texto publicado pela UP, mesmo querendo assumir uma posição supostamente “progressiva” de não patologização (tratar como doença), vai exatamente por este caminho:

“(…) Por muito tempo a disforia de gênero foi tratada como uma doença, uma condição a se envergonhar, tudo isso devido a força da moral vigente, extremamente machista e lgbtifóbica, mesmo com a ciência tendo avançado a ponto de resolver este problema de forma mais razoável, através de reposição hormonal e cirurgia de resignação sexual. Se estas pessoas sentem-se mal como estão e existem os meios de resolver a situação, por que não deveriam? O problema, definitivamente, não está nelas, mas naqueles que se colocam em seu caminho (…)”, afirma a UP no artigo (com grifos nossos).

O termo “disforia”, empregado insistentemente no texto, é usado para designar um sentimento de “insatisfação, angústia, ansiedade e inquietação” em relação ao próprio corpo e, mais importante, é utilizado pelo Código Internacional de Doenças (CID-10) para enquadrar a transexualidade como uma “Disforia de Gênero”, o que, historicamente, tem servido para impor às pessoas trans e travestis uma série de procedimentos médicos e cirúrgicos como requisito para que suas identidades sejam reconhecidas.

O mesmo acontecia com lésbicas, gays e bissexuais, até 1990, quando ainda eram considerados doentes pela Organização Mundial da Saúde. As consequências deste tipo de classificação foram as mais nefastas: lobotomias, internações, castrações químicas, desemprego, tratamentos impossíveis e dolorosos para readequação da orientação sexual, “curas gays” e até prisões em manicômios psiquiátricos.

No caso, por exemplo, das mulheres trans que queiram realizar a cirurgia de redesignação sexual, é necessário que se enquadrem num “protocolo transexualizador” como “transexual verdadeira”: uma grande farsa e uma das maiores crueldades da Medicina e da Psiquiatria. Além disso, apesar do Sistema Único de Saúde (SUS), depois de muita luta, disponibilizar o acesso à terapia hormonal e às cirurgias para as mulheres trans, desde 2008, e para os homens trans, a partir de 2013, ainda estamos muitíssimo longe de que isto seja uma realidade em todo o país. Seja pela falta de clínicas que apresentem estes serviços, pela enorme fila de espera, pela ausência ou omissão dos profissionais de saúde ou pela insistência dos médicos na recusa dos procedimentos ou em tratar pessoas trans e travestis como doentes mentais.

E, se isto não bastasse, muitos profissionais da saúde, alinhados às teses fundamentalistas religiosas ou da extrema-direita, simplesmente continuam defendendo que a única forma para “resolver a condição” seja a conversão (“cura”) para a heterocisgeneridade.

Além disso, as identidades trans e travesti não estão associadas a qualquer cirurgia ou a qualquer procedimento médico, já que são completamente dispensáveis para que uma pessoa se identifique como homem trans ou mulher trans ou travesti e realizá-los ou não é uma escolha que só deve caber às pessoas.

E pior, a imposição de cirurgias e procedimentos médicos como condição para que as pessoas trans e travestis possam assumir sua identidade de gênero, numa sociedade onde são completamente marginalizadas, exploradas e segregadas do sistema público de Saúde, além de servir como fonte de lucros para gente inescrupulosa, expõe as pessoas trans e travestis a clínicas clandestinas, o que é um dos fatores que elevam o índice de mortalidade na comunidade.

Diante de tudo isto, só há uma pergunta a ser feita: “Por que pessoas cisgêneras não têm suas disforias patologizadas e não precisam de laudos para realizarem procedimentos em seus corpos, enquanto isto é imposto às trans?”. E a resposta só pode ser uma: “Porque isto é uma forma de opressão e transfobia”.

E, por isso mesmo, o texto da UP é inaceitável. Queiram ou não, a postura publicada fortalece esta perspectiva. O que exigiria muito mais que a retirada da postagem. Seria necessário uma autocrítica coerente. Uma coerência, contudo, que está aprisionada à tradição histórica à qual a Unidade Popular se filia e continua ecoando.

O marxismo revolucionário é capaz de abranger as demandas das LGBTIs?

No debate nas redes sociais, muitos comentários diziam que “a esquerda não tem programa para as pessoas trans”. E isso, infelizmente, reflete o que foi disseminado pelo maior aparato contrarrevolucionário da história: o stalinismo. Nessa deturpação do marxismo revolucionário, não cabe a diversidade, seja de corpos, de culturas ou de opiniões políticas.

Na segunda parte do nosso artigo, nos debruçamos sobre as diferenças programáticas e políticas entre o marxismo revolucionário e o stalinismo. Leia aqui.