Foto: PCB/Divulgação
Júlio Anselmo

Como toda militância de esquerda, fomos surpreendidos pelas notícias e discussões públicas nas redes sociais e na imprensa sobre uma crise no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Queremos, com todo respeito, compartilhar algumas reflexões sobre a questão, na medida em que nossa militância é indagada. E, em muitos lugares e ações, temos militado em unidade de ação, ombro a ombro, como nos recentes atos contra o Arcabouço Fiscal de Lula e o Marco Temporal. E, também, porque a questão suscita um debate mais amplo sobre concepção de partido e projeto político estratégico, que transcende a crise específica.

Jones Manoel anunciou em suas redes sociais que foi expulso dos organismos de direção do PCB [Comitê Central (CC) e Comitê Regional (CR) de Pernambuco). Denunciou tal medida como fruto de perseguição política por parte do CC e Comissão Política Nacional (CPN), uma espécie de executiva do CC, que dirige o partido entre uma reunião e outra do CC.

Esta medida da direção do PCB não foi isolada. Na verdade, tem sido publicada uma série de denúncias sobre diversas outras expulsões e perseguições de vários militantes. Jones Manoel denunciou ainda o próprio processo disciplinar que culminou com sua punição, como sendo viciado, não havendo garantias de sua defesa, nem ao menos o conhecimento prévio da acusação.

Na nossa tradição, somente a prática da expulsão de organismo por diferenças políticas sem debate, para impedimento de discussões políticas, e processo disciplinar viciado feito a toque de caixa é um absurdo burocrático, uma metodologia que não se apoia nas tradições revolucionárias de Lênin: de democracia operária e do centralismo democrático.

Foram divulgados publicamente vários documentos, troca de e-mails e diversas informações sobre os conteúdos da punição e da crise. Independentemente da avaliação que se possa ter sobre as motivações políticas, pelas informações existentes até aqui, o regime partidário do PCB não tem a ver com o centralismo democrático de Lênin.

O método de demissão sumária de organismo de direção e expulsões, julgamentos viciados, crimes de opinião, exigência de autocrítica, proteção de alguns dirigentes, deturpação dos fatos, são práticas bastante conhecidas e utilizadas ao longo da história pelos Partidos Comunistas (PCs) após o processo de bucrocratização e degeneração stalinista.

Este foi o método utilizado, em um grau muito maior e mais perverso, contra a maioria do CC do Partido Bolchevique, que dirigiu a Revolução de Outubro de 1917, assassinada sob falsas acusações e processos forjados. Esse método foi usado contra os operários revolucionários e marxistas, como os trotskistas, que lutaram contra a casta burocrática que se apoderou da URSS e a degenerou.

Centralismo democrático é um regime partidário que proporciona a mais ampla liberdade e democracia na discussão interna e possibilita a mais ampla unidade na ação do partido, para poder enfrentar a burguesia e o imperialismo e ter papel dirigente na revolução. Parte fundamental do centralismo democrático é o respeito às deliberações congressuais, que devem ser precedidas de livre, democrático e amplo debate interno. É também o respeito aos organismos e seu funcionamento, e à direção eleita democraticamente em Congresso. Mas, principalmente, sem organização democrática e condução saudável dos debates políticos, programáticos e teóricos, o centralismo democrático fica impossível de ser aplicado, assim como sem centralismo é impossível democracia. O centralismo democrático pressupõe direitos à minoria e à maioria, amplo debate, mas definida democraticamente uma política, aplicação por todo mundo do que foi decidido.  Na verdade, quanto mais centralismo, mais democracia e quanto mais democracia, mais centralismo.

Esse regime leninista serve a um propósito político: à estratégia revolucionária destinada à derrubada da burguesia nacional e internacional.

Por outro lado, os partidos institucionais, como o PT e o PSOL,  forjados para mera disputa eleitoral e gestão progressista ou supostamente reformista do capitalismo, são os partidos das frações permanentes, que prescindem do centralismo democrático e exercem a falta de democracia na forma de que as figuras públicas fazem o que bem entendem, mesmo contra a vontade ou decisão das bases, ao mesmo tempo em que o centralismo não se faz necessário, já que o objetivo não é fazer uma revolução.

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A falta de um regime centralista democrático leninista no PCB fica mais evidente ao se constatar que sequer existe condição para que a militância possa conhecer e se apropriar dos debates políticos de fundo ou até identificar quais existem realmente. Não é possível hoje, apesar de todo debate público nas redes sociais, ver com nitidez, em profundidade qual a real diferença política, teórica e programática que dá base para tal nível de crise interna e divisão da militância. O centralismo burocrático stalinista não apenas persegue, expulsa e violenta os militantes que pensam diferente, como, de antemão, impede que os debates sejam feitos.

Os motivos políticos utilizados pela direção para perseguir Jones Manoel, segundo sua denúncia, teria sido o compartilhamento de críticas sobre a posição do PCB de compor a Plataforma Mundial Anti-imperialista, que é um órgão burguês, capitalista, integrado e impulsionado por várias organizações ligadas ao governo da Rússia, Venezuela e China. Assim como, aparentemente, foram as críticas proferidas por ele no CR de Pernambuco sobre a falta de política para a sua segurança pessoal e de sua família.

Sobre isso, nos últimos dias foram divulgados diversos artigos polemizando entre si. Haviam debates sobre que caminho devia seguir o movimento comunista internacional, críticas à direção do PCB por ter frequentado as reuniões da “Plataforma Anti-imperialista”, em torno à China e à Rússia, na velha tradição campista (dos campos burgueses progressivos e não da independência de classe) e também debates sobre a posição em relação ao governo Lula.

Mesmo com esses apontamentos, o método de debate, ou a falta de um método de debate, impede com que se tenha nitidez sobre as diferentes posições nas duas alas em disputa. Por isso, há coisas bastante confusas e incompletas no debate.

A direção do PCB não vem tendo uma política de oposição de esquerda ao governo Lula. Na verdade, a maioria de seus posicionamentos políticos simplesmente ignora a existência do governo, ou apenas defende uma política contra suas medidas capitalistas. Mas não tem uma política de explicar que este governo é burguês, que os trabalhadores não podem confiar em Lula e precisam construir uma oposição de esquerda.

Apesar da troca de artigos e acusações de ambos os lados, ambos setores em disputa, de fato, não se apresentam como oposição de esquerda ao governo Lula. Apesar de Jones Manoel dizer ultimamente que luta contra aqueles que apenas se apresentam como independentes do governo e não como oposição, na atuação da União da Juventude Comunista (UJC) no próprio Congresso da UNE (CONUNE), que Jones Manoel reivindica, não se reflete uma política de oposição de esquerda a Lula, mas sim a forma da independência, criticada por ele agora, mas antes praticada por ele próprio. Ou ainda podemos ver isso na sua atuação permanente no Twitter elogiando o papel de parlamentares do PSOL, que também não constroem uma oposição de esquerda e são inclusive de um partido que compõe o governo. Até mesmo sua relação com dirigentes do PT em Pernambuco.

Mesmo na questão internacional, apesar da divergência sobre a Plataforma Mundial Anti- imperialista, por mais que critiquem corretamente a posição equivocada da direção do PCB de participar deste espaço, continuam concordando em temas como a defesa do atual regime ditatorial e capitalista cubano que prende e persegue jovens, trabalhadores, socialistas opositores e LGBTs. No tema da guerra da Ucrânia, Jones Manoel no início da guerra tinha uma posição que parecia mais com a da atual direção do PCB. Ou mesmo sobre China que Jones Manoel já apresentou diversas posições muito próximas de Elias Jabour, do PCdoB. Defendeu diversas vezes a China em seu programa e disse que tinha dúvidas se a China era ou não socialista, após argumentos pró e contra.

O próprio Ivan Pinheiro alerta para o fato da direção do PCB apontar os limites do “etapismo estratégico”, fazendo um jogo de palavras e dando a entender que talvez caiba um certo “etapismo tático”.

Independente das diferenças reais existentes entre as alas do PCB, nenhuma delas rompeu com certa visão etapista de mundo. Apenas alguns consideram que o problema é que não há um setor burguês disponível para aplicar o etapismo, mas não que isso seja impossível pela dinâmica da luta de classes e do sistema capitalista como totalidade. Ou seja, não descartam que possa estar colocado em algum momento. Não romperam de forma acabada com certa visão etapista, dado que também não romperam até o final com a visão de socialismo num só país e em última instância uma visão campista, que permite sacrificar a independência de classe.

Então, ocorre que não há uma ruptura completa, mesmo da ala opositora ou de Jones Manoel, com o que foram os pilares da teoria, concepção estratégica e o programa stalinista, que levou à restauração capitalista na ex-URSS e demais ex-Estados operários burocratizados e foi responsável pela derrota de tantas revoluções.

O PCB apenas em 2005 chegou à conclusão, ainda incompleta, de que a burguesia brasileira não era progressiva e não tinha como se aliar com o proletariado para desenvolver o capitalismo no país, numa primeira fase da revolução. Mas ao não fazer um acerto de contas profundo com o passado, inclusive ignorando o debate que os trotskistas brasileiros fazem desde os anos 1930, ao não entender a dinâmica desigual e combinada do desenvolvimento da luta de classes, deixam permanentemente uma brecha para um etapismo mais à esquerda ou mais à direita, a depender da conjuntura.

Mesmo a ala que se reivindica mais à esquerda na crítica ao etapismo tático tem uma visão retrógrada em relação às LGBTIs, por exemplo, ignorando a LGBTIfobia histórica (e todos problemas no terreno das opressões) da tradição stalinista e a herança que esta deixou, desconsiderando sua importância fundamental na elaboração de um programa comunista e no que deveria ser um resgate de Lênin e uma superação dos erros dos partidos da tradição stalinista. Tanto é que em Cuba até hoje há repressão às LGBTIs. Ou na defesa que Ivan Pinheiro faz do KKE (Grécia) e demais PCs do mundo, que reivindicam abertamente o legado de Stalin, sendo este o principal responsável e teórico do etapismo, do estrangulamento das revoluções entre o final dos anos 1920 até todo o pós-Segunda Guerra, e também o responsável pela dissolução da Terceira Internacional.

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A chamada “reconstrução revolucionária” do PCB busca rever em parte problemas da sua história de etapismo, nacionalismo e de capitulação a setores da burguesia.  Mas, por ser um processo incompleto e não levar às últimas consequências o balanço sobre essa visão equivocada, termina por manter a velha lógica de pensamento promovido pelo stalinismo, que não tem nada a ver com o marxismo ou com o leninismo.

O próprio Jones Manoel se afirma como não stalinista, mas comemorou o aniversário de Stalin. E reivindica em seu canal o historiador italiano Domenico Losurdo, grande referência do neostalinismo hoje, que justifica o stalinismo como se tivesse sido uma inevitabilidade das circunstâncias históricas. Mas, como diz o historiador Rogovin, havia alternativa.

Sabemos e respeitamos os militantes e quadros do PCB que querem honestamente a revolução. Mas a verdade é que não vigora uma concepção leninista de partido no PCB. A direção agride o centralismo democrático com medidas burocráticas. Mas tampouco a luta contra esse centralismo burocrático está sendo realizada de forma a defender a concepção revolucionária de partido de Lênin de centralismo democrático

A rigor, no nosso modo de ver, é impossível que o PCB consiga resgatá-la, porque tal concepção está ao serviço e é conectada a um projeto político: fazer a revolução socialista, o que pressupõe organizar a luta da classe com independência política contra todos os setores da burguesia e do reformismo, ou seja, romper completamente com a herança stalinista.

O que chamamos à reflexão é que nenhuma das duas posições em debate rompe de forma completa e de conjunto com o projeto stalinista. Esta crise no PCB mostra os limites do seu processo de “reconstrução revolucionária” ao não romper com certa visão de mundo ainda muito contaminada pelo etapismo, socialismo num só país, conciliação de classes, falta de incorporação e combinação das lutas contra as opressões como parte da luta socialista.

É absurda as ações burocráticas da direção do PCB e merecem ser repudiadas. Mas ambos os setores, ao não romper a fundo com um determinado projeto stalinista, acabam por atacar o centralismo democrático e não conseguem expor um programa de fato revolucionário e comunista.

Sem uma ruptura completa com o legado stalinista, sem um projeto revolucionário, o centralismo democrático e leninista é impossível no PCB. Será burocrático ou será questionado a partir de concepções de partidos institucionais e não leninistas.

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