Secretaria Nacional LGBT
Secretaria Nacional LGBTI+ do PSTU
Dia 29 de janeiro é Dia Nacional da Visibilidade Trans. Em função disto, nos últimos dias, foram divulgados dois estudos que dão a dimensão da opressão que atinge todos os setores incluídos na sigla LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos, com o “+”, indicando outras variações da identidade de gênero e orientação sexual), mas particularmente aqueles e aquelas representados pela letra “T”: as pessoas cuja identidade de gênero (masculino ou feminino) não é determinada pelo sexo biológico (registrado no nascimento).
Em 26 de janeiro, foi lançado o “Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras“, elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), onde se constata que, somente em 2022, foram mortas 131 travestis e transexuais e, ainda, houve 20 casos de suicídios (13 de travestis/mulheres trans, seis de homens trans e uma pessoa não-binária, ou seja, que não se enquadra em nenhum dos dois gêneros).
O total de 151 mortes violentas concede ao Brasil uma vergonhosa posição num macabro “raking” mundial: somos o país onde mais pessoas trans e travestis são mortas. E isto pelo 14º ano consecutivo e com uma enorme margem de diferença. Segundo a ONG Transgender Europe, que monitora 171 nações, em 2022, no mundo inteiro, foram contabilizadas 327 mortes de pessoas trans.
Depois do Brasil, vêm, respectivamente, os Estados Unidos e o México. Mas, para se ter uma ideia da intensidade da transfobia em nosso país, basta citar um trecho do outro relatório, “Mortes violentas de LGBT+: Observatório do Grupo Gay da Bahia/2022”, lançado uma semana antes, também com dados de 2022: “No ano passado, nos Estados Unidos, com 100 milhões de habitantes a mais, foram assassinadas 32 transexuais, enquanto no Brasil, houve 114 mortes violentas, uma a cada três dias”.
A discrepância nos dados (vide abaixo) é fruto da própria opressão e, particularmente, de uma de suas facetas mais cruéis: a “invisibilização” que cerca tanto nossas vidas quanto nossas mortes.
Abaixo, além de apresentar alguns dados das duas pesquisas, iremos discutir o porquê somente através da destruição do capitalismo e numa sociedade socialista seremos capazes de por um ponto final e definitivo nesta situação. De imediato, contudo, para conhecer mais sobre o tema e o que o PSTU defende, também recomendamos a leitura do artigo “Entendendo gênero e transexualidade sob uma perspectiva marxista e revolucionária”.
Somente a ponta de um iceberg feito de sangue
Segundo o relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), 256 LGBTI+ foram vítimas de mortes violentas: 242 homicídios (94,5%) e 14 suicídios (5,4%), o que faz com que o Brasil continue sendo o país onde mais LGBTI+ são assassinados no mundo, com uma morte a cada 34 horas. Destes, 134 (52,3%) eram gays; 110 (42,9%), travestis/transexuais; cinco (1,9%), bissexuais; quatro (1,6%), lésbicas; dois eram heterossexuais “confundidos” com LGBTI+ e um era um homem trans.
Apesar de que neste levantamento os gays sejam a maioria, é importante ressaltar que o relatório também aponta que as trans, proporcionalmente, têm um risco 19% maior de serem alvos de crimes letais em relação aos demais setores da comunidade LGBTI+.
Essa desproporção também foi identificada pelo dossiê da Antra, que identificou que mulheres trans e travestis têm até 38 vezes mais chance de serem assassinadas em relação aos homens trans e às pessoas não-binárias.
O pior é que estes números são apenas a ponta de um sangrento iceberg, já que os próprios levantamentos assumem que há uma enorme subnotificação nos casos, tanto em função da ação de familiares, que tentem a omitir a motivação da violência, quanto pelo descaso das autoridades policiais e das instituições (pública e privadas) do sistema que invisibilização LGBTI+ em suas pesquisas.
O levantamento do GGB, por exemplo, é feito apenas através do que é noticiado nos meios de comunicação. Já o da Antra, além de consultar as reportagens, analisa dados governamentais, processos judiciais e dos órgãos de Segurança Pública, além de fontes secundárias, como instituições de Direitos Humanos, redes sociais e relatos de testemunhas.
“O Estado insiste em não monitorar a violência homotransfóbica e o resultado não poderia ser outro, a subnotificação: esses números representam apenas a ponta de um enorme iceberg de ódio e sangue”, ressalta o relatório, destacando, ainda, o descaso das autoridades policiais, o que faz com que apenas 35,9% dos casos de homicídios tenham sido elucidados.
Ser LGBTI+, negra, jovem e pobre pode ser uma sentença de morte
No relatório do GGB foi constato que a maioria das vítimas se concentra na faixa etária entre 18 e 29 anos (43,7%), sendo que a mais jovem foi um menino gay com apenas 13 anos. No ano passado, 83% delas morreram entre os 15 e 39 anos.
Já no dossiê da Antra, considerando que dentre os 131 casos foi possível identificar a idade de apenas 94 deles, cinco vítimas (5,3%) tinham entre 13 e 17 anos; 49 (52,1%) tinham entre 18 e 29; 30 (32%) estavam na faixa entre 30 e 39; sete (7,4%), entre 40 e 49; duas (2,1%), entre 50 e 59; e uma vítima (1,1%) com 60 anos. Em suma, dentre as pessoas trans assassinadas em 2022, 89% delas tinham entre 15 e 39 anos, o que em muito contribui para que, há anos, a expectativa de vida de uma mulher trans seja, no máximo, 35 anos.
Numa sociedade com herança escravocrata, o racismo também é um fator determinante quando se é LGBTI+. E como até mesmo este dado é invisibilizado pelas reportagens, o GGB é obrigado a adotar um método não muito recomendável: a atribuição da raça/etnia através das fotos (não pela autodeclaração).
De qualquer forma, considerando todos setores LGBTI+, 120 das vítimas foram identificadas como pardas (46,8%) e pretas (14,8%) – ou seja, 61,6% eram negras –, 37,1% brancas e 1% indígenas. Quando considerada apenas a população trans, não ser branca aumenta ainda mais a possibilidade de ser assassinada. Em 2022, segundo a Antra, nada menos que 76% delas eram negras.
Também não é um acaso que em ambos os estudos o Nordeste, a região mais maltratada pela xenófoba burguesia brasileira, seja a que concentre o maior número de mortes violentas; seguida pelo Sudeste, caracterizada pela enorme desigualdade social.
No estudo do GGB, o Nordeste registrou 43,3% das mortes (111) de LGBTI+, com a Bahia à frente, (27 mortes, ou 10,5%); seguido pelo Sudeste, com 63 mortes (24,6%). O Norte vem em terceiro lugar, com 14% (36 mortes), depois o Centro Oeste, com 31 vítimas (12,1%), e, por fim, o Sul com 15 casos (5,8%). Uma situação bastante semelhante à detectada pela Antra. No Nordeste, 52 trans foram assassinadas (40,5%); no Sudeste houve 35 casos (27%); no Centro-Oeste, 17 (13%); no Norte, 16 (12,5%) e no Sul, nove (7%).
O estudo do GGB não traz dados sobre a situação socioeconômica. Contudo, o dossiê da Antra é bastante preciso ao identificar o profundo caráter de classe, cavado pela desigualdade social que, no capitalismo, faz com que a opressão seja um fator a mais na “alienação” das pessoas, separando-as não só dos meios de produção e acesso à riqueza, mas também tentando “coisificá-las”, quando também são vitimadas pela marginalização histórica e, assim, acirrando as diversas formas de violência.
“Geralmente, ocorrem contra pessoas trans empobrecidas que têm pouco acesso às tecnologias de gênero, à saúde, à educação e/ou as políticas públicas, sejam os direitos básicos comuns a toda população ou específicos alcançados pela comunidade trans. Vemos ainda que vivem com poucos recursos financeiros ou estão completamente fora do mercado formal de trabalho, especialmente quando fazemos um recorte sobre pessoas trans negras, com deficiência e/ou periféricas”, constata o dossiê da Antra, destacando que dentre aquelas em que foi possível identificar a atividade, 54% das assassinadas atuavam como profissionais do sexo, a única opção que lhes resta diante da extrema marginalização.
A extrema crueldade contra as LGBTI+
Os dois estudos trazem terríveis relatos sobre os requintes de crueldade que cercam os assassinatos, quase sempre acompanhados por prolongada tortura. Apesar de dolorosos e terríveis, é preciso socializá-los, para que se entenda do que estamos falando e também porque nós, do PSTU, infelizmente, compartilhamos esta dor e indignação com os familiares e amigos do nosso militante Neylson Oliveira da Silva, brutalmente assassinado em Açailândia (MA), em agosto passado
No relatório do GGB são citados os caso de um homem do Distrito Federal, morto, em julho de 2022, “com 59 facadas e dois golpes de enxada na cabeça”, e da travesti Jerry, 45 anos, assassinada “com mais de 40 tiros quando estava sentada em frente à casa de familiares em Coreaú, Ceará”, em novembro passado. O estudo da Antra traz a história da menina trans Ester, de 15 anos, cujo assassino (de 26 anos, que está respondendo o crime em liberdade), decepou um de seus dedos antes de decapitá-la, em outubro passado.
Um perfil bárbaro que se repetiu nas demais mortes, 29,6% realizadas com armas de fogo e 25,7% com “armas brancas”, incluindo ações como asfixia, espancamento, apedrejamento, esquartejamento, atropelamento proposital.
Já a Associação Nacional de Travestis e Transexuais revelou que, dentre os assassinatos notificados em 2022, em 11 notícias (9%) não havia informações sobre o método; mas, dos 120 casos restatnes, 41% foram cometidos por armas de fogo; 24% por “arma branca”; 16% por espancamento, apedrejamento, asfixia e/ou estrangulamento e 10% com outros meios, como pauladas, degolamento e corpos carbonizados.
Por fim, cabe destacar que há uma importante diferença em relação aos assassinatos cometidos contra lésbicas, gays e bissexuais e as pessoas transgêneros. Segundo o GGB, 108 das vítimas (42,1%) foram mortos em suas casas, 38% na rua e espaços externos (98) e 17 em estabelecimentos públicos; com o destaque que a maioria das travestis (57%) foi assassinada na rua, muitas em situação de prostituição.
Uma tendência comprovada pela Antra, cujo estudo revelou que, com exceção de seis casos não especificados, 61% dos assassinatos (80 casos) aconteceram em espaços públicos e 34% em locais privados (45 casos).
Bolsonaro foi um genocida LGBTIfóbico, mas nenhum governo anterior conseguiu barrar as mortes
Em ambos os relatórios, chama a atenção o fato de que, aparentemente, houve uma diminuição no número de assassinatos nos últimos quatro anos. No caso das trans, depois de um aumento contínuo desde o primeiro relatório – em 2008, quando houve 58 mortes, até o registro de 179 mortes em 2017 –, foram registrados 163 casos em 2018; 124 (2019); 175 (2020); 140 (2021) e 131 assassinatos em 2022. Contudo, este é um daqueles típicos casos em que as aparências enganam.
A suposta diminuição de mortes nos anos correspondentes ao racista, machista, LGBTIfóbico e xenófobo governo Bolsonaro se deve a uma série de fatores combinados, a começar pelas dificuldades decorrentes de tudo que envolveu o auge da pandemia de Covid-19 ao puro e simples descaso do governo com o tema que, assim como em relação ao meio ambiente e ao racismo, desmantelou as instituições que acompanhavam os casos e, ainda, ao impulsionar seu discurso de ódio, incentivou autoridades judiciais, municipais, estaduais e setores da Segurança Pública a invisibilizarem a violência.
Contudo, mais significativo que a pretensa queda é o fato (pouco destacado em ambos os estudos) de que nenhum dos governos anteriores foi capaz de conter a violência. Por mais que tenham feito promessas ou até mesmo tomado medidas pontuais e, nem de longe, terem praticado a política de “terra arrasada” do candidato a ditador, a violência resultante em mortes não parou de aumentar.
Segundo o relatório do GGB, considerando “os cinco últimos governos, foram mortos anualmente uma média de 127 LGBT nos oito anos da presidência de Fernando Henrique Cardoso, 163 nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, 360 nos governos Dilma Rousseff e MichelTemer, e 251 nos quatro anos de Bolsonaro, perfazendo um total de 1.122 mortes”. Em relação às trans, o grande salto, inclusive, se deu no decorrer do governo Dilma, indo de 100 casos, em 2011, para 144, em 2016.
No dossiê lançado em 2021, com dados de 2020, a Antra fez uma observação que nos ajuda a entender o porquê de nenhum governo, mais ou menos democrático, de caráter “progressista/reformista” ou “miliciano/protoditatorial”, foi capaz de deter os assassinatos.
Nele, a Associação destacava que 94,8% da população trans havia sofrido algum tipo de violência motivada por sua identidade de gênero, fazendo uma observação muitíssimo importante, quando perguntadas sobre quais eram suas maiores necessidades, não apenas para sobreviver, mas para viverem digna e plenamente: “o direito ao emprego e renda aparece com 87,3%, seguido de acesso à saúde (em termos gerais e, também, em questões específicas de transição), educação, segurança e moradia”.
E o problema é exatamente este. O que as pessoas trans precisam, assim como todos os demais setores incluídos na sigla LGBTI+ são, em primeiro lugar, as mesmíssimas coisas que o conjunto da classe trabalhadora, da população periférica e demais setores marginalizados precisam: emprego, renda, acesso à saúde, moradia, educação. Tudo o que poderíamos chamar de direitos humanos básicos, caso não (sobre)vivêssemos em um sistema desumano, que realimenta a exploração através da opressão.
E evidente que, tudo isto, no caso das LGBTI+ teria que ser obrigatoriamente acompanhado de políticas específicas, assim como no caso de negros(as), mulheres cisgêneras, indígenas, quilombolas, pessoas portadoras de deficiências e todos aqueles e aquelas cuja existência também é historicamente marcada pela opressão e pela discriminação e, consequentemente, necessitam “reparações históricas” contra as múltiplas formas de violência a que foram expostos.
Contudo, até mesmo para que isto aconteça é preciso atacar a raiz do problema: o capitalismo. É preciso destruir um sistema cuja lógica é exatamente explorar a gigantesca maioria da população, inclusive confiscando seus direitos básicos, para garantir a monstruosa riqueza acumulada por um pequeno punhado de gente.
Gente cuja falta de escrúpulos e humanidade só não são maiores que a ganância. Não por acaso homens brancos, héteros e cisgêneros, em sua enorme maioria, que não medem esforços para transformar as diferenças que caracterizam a humanidade em “justificativas” para aumentar ainda mais as desigualdades.
Não há como “reformar” ou “humanizar” o capitalismo
A razão para as mortes e a violência contra LGBTI+ só terem aumentado nos últimos governos é o fato de que, independentemente de suas boas ou más intenções, todos eles, serviram, em primeiro lugar, aos mesmos senhores: os banqueiros, empresários, latifundiários e agentes do imperialismo internacional. Inclusive os governos de Lula que, sempre que, pode enfatiza “que nunca na História” banqueiros, empresários e o agronegócio lucraram tanto quanto sob suas administrações.
Por isso mesmo, ao contrário dos setores majoritários dos movimentos contra as opressões, não alimentamos ilusões em relação ao atual governo, mesmo tendo lhe dado nosso voto crítico, como parte da luta para derrotar Bolsonaro, apesar de todas promessas que têm sido feitas e, inclusive, ter nomeado uma travesti, a ativista Symmy Larrat, como secretária de Direitos da População LGBTQIA+.
Na cerimônia realizada para a entrega do dossiê da Antra, no dia 26, com a presença dos ministros dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, e da Igualdade Racial, Anielle Franco, Almeida afirmou que este governo irá “mudar a realidade” da população trans.
“É possível construir um país com esses números que a gente viu agora? É possível construir alguma coisa que se chama nação suportando assassinatos de pessoas apenas porque elas são como elas são? (…) Se nós não formos capazes, se não tivermos a decência de mudar essa situação, nós nunca seremos um país e nós não mereceremos ser um país. Então, é um compromisso deste governo, que é um governo decente, e de todo e qualquer governo decente, mudar a realidade estampada nesse relatório”, discursou o ministro.
Concordamos com o Ministro no que se refere à impossibilidade de construir uma sociedade com uma situação como esta. Contudo, pra começo de conversa, o combate à LGBTIfobia está longe de ser um problema “moral”. Decência (termo já bastante complicado numa sociedade que insiste em apontar nossa “indecência e amoralidade” por sermos quem somos) é, de qualquer forma, o mínimo que se espera de um governo que se diga democrático. E a História, lamentavelmente, tem comprovado que “decência” está a anos-luz de ser uma característica do sistema democrático burguês.
Mas, ainda mais importante, é que a incapacidade de um governo com o caráter da Frente Ampla em combater a LGBTIfobia esta em sua própria gênese. Se não bastasse ter a conciliação de classes como marca registrada, Lula-Alckmin já deixaram evidente seu “compromisso” com mercado e o apoio aos seus representantes e agentes no cenário político.
Além disso, Lula, por exemplo, também assinou a Carta Compromisso aos Evangélicos, um ato sintomático sobre sua disposição a repetir os erros de Dilma e suas alianças com setores conservadores e fundamentalistas, em nome da tal “governabilidade”.
No mesmo sentido, por mais que reconheçamos o significado simbólico de ter uma travesti no governo, somos obrigados a lembrar que a realidade, lamentavelmente, não pode ser mudada através de símbolos.
Ao receber o dossiê, Symmy declarou: “A gente quer fazer um pacto de que nós, junto com vocês, vamos transformar essa secretaria em ações e entregas importantes para essa população e importante para sociedade brasileira”. Não temos motivos para duvidar de suas intenções.
Mas, lamentavelmente, o que vemos pela frente é uma enorme possibilidade de frustração. Por uma razão bastante simples: maior e mais forte que o pacto que Symmy pretende fazer com o movimento é o pacto que o governo do qual era participa já fez com aqueles que promovem e se beneficiam com a opressão e nunca, jamais, estarão conosco nas ruas dizendo: “Vidas LGBTI+ importam! Vidas trans importam!”.
E só poderemos viver com dignidade, plenitude e liberdade quando, juntamente com os trabalhadores e trabalhadoras heterossexuais e cisgêneros, de todas as etnias e regiões, tomarem o poder e governarem através de conselhos populares que representam nossa humana diversidade.