29 de janeiro é Dia Nacional da Visibilidade Trans | Foto: Agência Patrícia Galvão/Reprodução
Secretaria Nacional LGBT

Secretaria Nacional LGBTI+ do PSTU

O debate sobre as demandas e direitos da população lésbica, gay, bissexual, travesti, transgênero, transexual e intersexos (LGBTI+, em referências às demais possibilidades de orientação sexual e identidade de gênero) conquistou mais espaço nas últimas décadas.

Hoje, vemos mais jovens “saindo do armário”, mais pessoas e personagens LGBTIs na mídia, como candidatos, levantando esse tema nas eleições, e as ruas sendo tomadas por bandeiras do arco-íris. Apesar disso, ainda há muita incompreensão sobre quem é a população representada pela letra “T” (transgêneros, transexuais e travestis) e quais são suas reivindicações.

Essa invisibilização não é por acaso. A população trans e travesti é excluída das políticas públicas, do mercado de trabalho e da enorme maioria dos espaços sociais. Além disso, há setores conservadores que se dedicam a garantir que a Educação sobre gênero seja banida das escolas e universidades. Tudo isso faz parte de um projeto de manutenção da opressão, que já existe há muito tempo no capitalismo.

Nesse artigo, em ocasião do Dia Nacional da Visibilidade Trans, criado em função de uma manifestação que ocorreu em Brasília, em 29 de janeiro de 2004, queremos explorar alguns conceitos, tirar dúvidas sobre a transexualidade e discutir o combate à transfobia sob uma perspectiva marxista e revolucionária.

O que é gênero?

Para entender o que é ser trans (termo que engloba travestis e transexuais), precisamos primeiro entender o que é gênero. Muitos podem dizer: “Isso é simples! Antes mesmo do nascimento, os médicos identificam a genitália do bebê, o que define se vai ser menino ou menina e, aí, os pais já sabem se devem comprar carrinhos ou bonecas, roupinhas azuis ou rosa, se vai gostar de esportes ou de cuidar da casa, e uma série de outros comportamentos naturais de cada um”. Nós discordamos dessa ideia.

Do ponto de vista biológico, é um equívoco dizer que existem apenas duas possibilidades de “gêneros”, determinadas pelas características físicas relacionadas ao sexo, como cromossomos, órgãos genitais, gônadas (ovários e testículos), hormônios e características secundárias da puberdade.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), entre 0,05% e 1,7% da população pode ser considerada, ao nascer, como “intersexo”. Ou seja, existem muitas distintas combinações e variações no que se referem aos padrões estabelecidos, até hoje, para definir as características que determinam o que é ser “homem/mulher” ou “macho/fêmea” na espécie humana.

Com os avanços da biologia molecular, inclusive, sugere-se que a identificação do pênis, ou a ausência dele, ou até mesmo os cromossomos sexuais são insuficientes para definir o sexo de um bebê. Em contrapartida, propõe-se uma definição não-binária, na qual um espectro mais fluído entre “masculino” e “feminino” seja incluído. Hoje, contudo, mesmo quando bebês e crianças apresentam alguma ambigüidade fisiológica nos genitais são submetidas, obrigatoriamente, há procedimentos cirúrgicos para se enquadrarem em categorias binárias.

Mesmo entre pessoas enquadradas no sexo feminino e do sexo masculino, ainda que as diferenças físicas existam, as maiores diferenças são ditadas pela Cultura (entendida como a relação de um indivíduo com “modo de vida” e as relações sociais de sua época), não pela Biologia. É isso que é explicado por Sherry Wolf, em “Sexualidade e Socialismo”.

“É a sociedade, entretanto, não a Biologia, que impõe a capacidade de nutrir e cuidar unicamente às mulheres, como resultado da gestação da criança. Até mesmo as diferenças na musculatura feminina e masculina foram moldadas, ao longo de milhares de anos, por nossos papéis de gênero, dietas, e preferências culturais mutáveis. A antropóloga Eleanor Burke Leacock destacou que Neandertais [ancestrais primitivos dos seres humanos] masculinos e femininos tinham a mesma musculosidade e só com a ascensão da divisão social do trabalho dentre os primeiros humanos modernos, milhares de anos atrás, a musculosidade de mulheres e homens se desenvolveram de forma diferente” (p. 231), escreveu a escritora e militante LGBTI e socialista.

Concluímos que muitas das características que são tratadas como “naturais” aos homens e às mulheres são, na verdade, definidas pela sociedade. Ideias como a de que homens são mais fortes e as mulheres são submissas ou de que mulheres têm “instinto maternal” e homens são mais racionais não são determinadas pela natureza. Tudo isto é construído socialmente. É imposto a nós ao longo da nossa vida.

Assim, começamos a compreender o que é gênero: tudo aquilo que diferencia, cultural e socialmente, homens e mulheres, definido pelo contexto histórico, político, socioeconômico e cultural. Não pela Biologia.

O Brasil é líder em assassinatos de transsexuais no mundo | Foto: Divulgação

Gênero e História

Considerar que o gênero é construído socialmente, significa dizer que diferentes sociedades, ao redor do mundo e ao longo da História, tiveram definições bastante distintas sobre homens, mulheres e pessoas que não se encaixavam como nenhum dos dois. Alguns casos podem exemplificar como as características que são consideradas femininas ou masculinas não têm nada de natural.

“A variedade global de expressões de gênero é prova de que, no mínimo, nossas naturezas [no sentido de características em relação ao tema] são ‘incrivelmente maleáveis’, como foi destacado pela antropóloga pioneira Margaret Mead. Na ilha de Nova Guinea, Mead encontrou culturas sem nenhum conceito de naturezas sexuais distintas entre homens e mulheres, ambos os quais expressavam comportamento maternal, até a metade do século 20, quando ela os estudou. Na cultura Arapesh [um dos povos da ilha], Mead descobriu que esperava-se que ambos (homens e mulheres) dividissem as responsabilidades de criação das crianças e as crianças (masculinas e femininas) eram criadas para serem completamente iguais. Em outra comunidade, a Mudugmor, ela encontrou agressividade extrema entre ambos os sexos, e em uma terceira, a Tchambulo, Mead descobriu papéis de gênero completamente opostos aos da nossa própria tradição. As mulheres, lá, eram dominantes e os homens eram emocionalmente submissos.” (p. 220), escreveu Sherry Wolf.

Enquanto a sociedade capitalista atual pune as pessoas que fogem dos papéis de gênero que lhe foram atribuídos no nascimento, como veremos adiante, isso também nem sempre foi assim. Temos exemplos de sociedades que aceitavam abertamente pessoas que não se encaixavam em uma das duas categoriais fixas, homem ou mulher.

“Muitas comunidades indígenas norte-americanas aceitavam homens e mulheres travestis, conhecidos como ‘berdaches’, que adotavam papéis de gênero do sexo ‘oposto’ e, às vezes, nos dias de hoje, são chamados de pessoas ‘com dois espíritos’ (…). Alguns ‘berdaches’ tinham relações sexuais exclusivamente com outros homens, enquanto outros ‘berdaches’, não; ao mesmo tempo alguns permaneciam celibatários, tinham parceiros de ambos os sexos ou, ainda, exclusivamente sexo heterossexual. A variação de gênero, não a orientação sexual, definia o/a ‘berdache’, e ao invés de ridicularizá-los por sua inconformidade de gênero, as comunidades indígenas norte-americanas viam os/as ‘berdaches’ como membros valiosos de sua sociedade. Um ancião Crow [um dos povos originários da América do Norte] explica: ‘Nós não desperdiçamos as pessoas da forma que a sociedade branca o faz. Cada pessoa tem seu dom’” (p. 22), escreveu a autora de “Sexualidade e Socialismo”.

Essas definições estão em constante mudança. Desde pequenos aspectos, como a vestimenta (se pensarmos, por exemplo, que, na Europa, até no século 17 o salto alto era comumente utilizado por homens da nobreza, mas passou a ser associado à moda feminina), até aspectos centrais da dinâmica familiar. No século 21, ainda delegamos a criação dos filhos e as tarefas domésticas majoritariamente às mulheres, contudo, hoje, pode ser mais comum do que no início do século passado encontrarmos homens que dividem as tarefas da casa e de cuidado com as crianças.

Afinal, quem são as(os) travestis, as pessoas transgênero e transexuais?

Compreendemos, então, que o gênero não é algo definido biologicamente, antes mesmo de nascermos, mas é “moldado” por cada contexto socioeconômico, cultura e histórico. Assim, algumas pessoas podem não se identificar com as características e formas de se relacionar com a sociedade que lhes foram impostas ao nascimento.

Uma pessoa que foi designada por suas características físicas, como homem, mas que se identifica com o gênero feminino, se apresenta ao mundo conforme o gênero feminino, adota um nome feminino e etc.. Essa é uma mulher trans. Já no caso oposto, alguém que nasceu com características femininas, mas se identifica como homem, e assim vive, é um homem trans.

Há ainda aqueles e aquelas que não se identificam nem como homem nem mulher, que não se encaixam confortavelmente em uma das duas categorias, chamadas de pessoas trans não-binárias. Importante reforçar que essas pessoas não precisam fazer mudanças cirúrgicas ou hormonais nos seus corpos para definir seu gênero. Essa é uma escolha individual e deve ser respeitada e apoiada.

Uma ou um travesti também não se identifica com o gênero que foi designado ao nascer, podendo se assumir como mulher ou homem, ou mesmo negar o binarismo de gênero, ainda que adote a feminilidade ou masculinidade. Na América Latina, travesti tornou-se uma identidade política, muitas vezes reivindicada pelas pessoas trans do continente.

Por outro lado, uma pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído – por exemplo, alguém que nasceu com o sexo masculino e se entende enquanto um homem ao longo de sua vida –, é chamado de pessoa cisgênera.

Cabe ressaltar que essas definições têm nada a ver com a orientação sexual; ou seja, com por quem essa pessoa sente atração afetivo-sexual. Uma mulher trans pode se sentir atraída apenas por homens e, assim, ser heterossexual. Pode se sentir atraída apenas por mulheres e, assim, ser lésbica. Ou mesmo por mais de um gênero, sendo bissexual. Ela ainda é uma mulher trans, independente de com quem ela se relacione.

Marcha no Dia Nacional da Visibilidade Trans | Foto: Divulgação

Manifestações da transfobia: exclusão e violência

Se, no exemplo citado por Sherry Wolf, algumas comunidades indígenas norte-americanas (e, também, da América Central ou latinoamericanas) aceitavam pessoas que rompiam com os papéis de gênero como membros importantes da sua sociedade, a sociedade capitalista não podia ser mais diferente.

Chamamos de transfobia a opressão contra pessoas transgênero, trans e travestis. Ou seja, a exclusão, o desrespeito e a violência (física, política, emocional e psicológica) por conta de sua identidade de gênero. Situações que, na sociedade capitalista, sempre estão a serviço (ou se combinam) com a superexploração econômica e social, já que as pessoas trans encontram expressões dessa opressão em todas as esferas de suas vidas, desde o interior da família até a busca por emprego ou moradia, além da violência urbana.

A realidade cotidiana da transfobia pode ser constatada no “Dossiê de Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021”, publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no ano passado, que revela, por exemplo, como a exclusão muitas vezes tem início na infância e implica num processo de evasão escolar.

“Devido ao processo de exclusão familiar, social e escolar, como já mencionado em diversas ocasiões e em pesquisas anteriores, estima-se que 13 anos de idade seja a média em que travestis e mulheres transexuais sejam expulsas de casa pelos pais (ANTRA, 2017) – e que cerca de 0,02% estão na universidade, 72% não possuam o Ensino Médio e 56% o Ensino Fundamental (Dados do Projeto Além do Arco-íris/Afro Reggae). Essa situação se deve muito ao processo de exclusão escolar, gerando uma maior dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho e deficiência na qualificação profissional, causada pela exclusão social”, discute o relatório elaborado por Bruna Benevides e Sayonara Nogueira

A dificuldade em relação à inserção no mercado de trabalho é gritante. Segundo dados da mesma Associação, em função de serem rejeitadas nas vagas de emprego formal e, no geral, também não terem apoio emocional ou financeiro de suas famílias, 90% das mulheres trans estão na prostituição. É justamente nesse contexto que ficam mais vulneráveis à violência, o que resulta no fato de que a maior parte dos assassinatos de pessoas trans aconteça dentre as que estão em situação de prostituição.

A violência é o aspecto mais cruel da transfobia. O dossiê relata que, no Brasil, somente em 2021, 140 pessoas trans foram assassinadas e que a média anual, nos últimos 14 anos, é de 123,8 assassinatos. A maioria das vítimas tinha entre 18 e 29 anos, mas a mais nova tinha apenas 13. Uma realidade ainda mais preocupante quando consideramos a enorme subnotificação de casos, geralmente invisibilizados pelas próprias famílias ou distorcidos nos relatórios policiais.

Há, ainda, uma enorme e perversa interação entre a transfobia e o racismo. 81% das vítimas eram travestis e transexuais negras. São estes dados que mantêm o Brasil na vergonhosa posição do país que mais mata pessoas trans no mundo.

O dossiê também menciona graves violações dos direitos humanos, como diversos casos em que mulheres trans vítimas de agressão tiveram seu direito da aplicação da Lei Maria da Penha negado, simplesmente por serem trans. Outro direito que as pessoas trans não têm garantido é a possibilidade de usar banheiros que correspondam à sua identidade de gênero, o que acaba sendo outra forma de as expulsarem da escola e dos locais de convivência social.

A soma de tantas formas de violência, insegurança quanto à moradia, alimentação, saúde, além da falta de apoio emocional, resulta em um cenário de adoencimento mental dessa população. Segundo a Antra, somente em 2021, houve 12 casos de suicídio de pessoas trans. Além disso, de acordo ONG norte-americana “Gay and Lesbian Task Force”, 41% das pessoas trans, em algum momento de suas vidas, já tentaram suicídio nos Estados Unidos.

Coluna da CSP-Conlutas na Marcha do Orgulho LGBT em São Paulo, setembro de 2022 | Foto: PSTU-SP

Quem ganha com a transfobia?

A opressão das pessoas trans não existe por coincidência ou simplesmente por causa da incompreensão, da “ignorância”, “falta de Educação” ou más intenções dos indivíduos, como muitos acreditam. Evidentemente, é muito importante combater todos os mecanismos e formas de propagação das ideologias LGBTIfóbicas (geralmente alimentadas pelos meios de comunicação, setores religiosos, nas escolas etc.). Daí, inclusive, a importância de barrar qualquer iniciativa criar obstáculos ao debate, como querem os conservadores e a extrema-direita através de sua cruzada contra as “ideologias de gênero”.

Contudo, mesmo este combate fundamental acaba tento resultados parciais e suscetíveis a retrocessos já que a transfobia, assim como outras formas de opressão, tem suas raízes em algo que está por trás das ideologias e da própria opressão: o sistema em que vivemos.

A transfobia é mais uma face do capitalismo, um sistema baseado na exploração daqueles que trabalham para garantir o lucro de um punhado de burgueses. Uma exploração que também se apoia na transformação das muitas diferenças que caracterizam o ser humano em diferenças na localização no mercado de trabalho, nas condições de vida, no acesso a direitos e serviços etc.

Para o capitalismo e sua classe dominante, a burguesia, a opressão é um negócio lucrativo. Garante mão de obra mais barata, uma vez que aqueles que pertencem aos setores oprimidos são excluídos do trabalho formal ou localizados em postos mais precários, mais difíceis, mas com menores salários.

Além disso, as opressões também dividem a classe trabalhadora, aqueles e aquelas que têm em comum a exploração, fazendo com que tenham maiores dificuldades para se organizar e lutar contra o sistema, já que os trabalhadores e trabalhadores uns contra os outros, por conta da nacionalidade, raça, identidade de gênero, orientação sexual ou qualquer outro fator.

A opressão, especificamente na forma da imposição de papéis de gênero e da heterossexualidade,  tem uma função social muito relacionado à família. O capitalismo se apoia na família nuclear tradicional, que é heterossexual e que implica em papéis diferentes para o homem e para a mulher, para fins reprodutivos e ideológicos.

Mantendo rígidos papéis de gênero, a mulher segue realizando um trabalho reprodutivo a mais, sem nenhum custo para o Estado, que é garantir os serviços domésticos, a alimentação, a criação da próxima geração de trabalhadores e etc. É muitas vezes dentro dessa estrutura que começamos a aprender que meninos fazem isso, meninas fazem aquilo. A existência de pessoas que transgridem as normas de gênero e sexualidade é vista como uma ameaça para essa estrutura, e punidas severamente por isso.

As saídas ilusórias oferecidas pela burguesia e o reformismo

Vale ressaltar, ainda, que diferentes setores da burguesia podem, na aparência, ter diferentes políticas para as pessoas LGBTI, ainda que de fundo todos ganhem com sua opressão. Alguns são mais abertamente conservadores, incentivando a violência transfóbica, no geral aliados ao fundamentalismo religioso, como o governo Bolsonaro deixou lamentavelmente evidente, assim como é o caso de Putin (Rússia), Viktor Órban (Hungria), Giorgia Meloni (Itália) ou Andrzej Duda (Polônia).

Outros podem parecer mais “progressivos”, oferecendo, quando em posição de poder político, uma ou outra concessão, com o objetivo de manter as pessoas LGBTIs satisfeitas o suficiente para não se organizarem e se rebelarem, mas que jamais questionarão as bases do sistema que possibilita e propaga a transfobia.

Há, ainda, uma política, conhecida como “cidadania de mercado”, desenvolvida por empresas, bancos e outros setores da burguesia que oferecem desde políticas pontuais e temporárias para “inclusão” de pessoas trans até festas exclusivas para LGBTIs, vestimentas, produtos e serviços inspirados na subcultura do setor.

Porém, além de estarem interessadas (e atingirem) apenas um minúsculo setor das transexuais que têm acesso a isto, estas políticas burguesas estão limitadas por seu interesse pelo lucro e, consequentemente, mantêm a maioria das LGBTIs, assim como negros e mulheres, à margem da sociedade. Por isso, não confiamos em nenhum desses caminhos para nossa libertação. Contudo, esta não é a mesma posição dos setores majoritários dos movimentos, inclusive os que organizam as pessoas trans.

Cada vez mais embalados pelas perspectivas reformistas ou da chamada “pós-modernidade” e, agora, alinhados com a defesa da conciliação de classes que caracteriza a Frente Ampla de Lula-Alckmin, ativistas e organizações de combate às opressões têm deixado se seduzir por propostas que pregam a possibilidade de acabar com a transfobia “por dentro” ou em aliança com o capitalismo.

As formas que esta postura assume são muitas. Desde o engajamento em projetos abertamente burgueses (inclusive em seus partidos, como vimos nas eleições passadas) até um discurso supostamente de esquerda, sintetizados em teses como a do “racismo estrutural” (defendida por Silvio de Almeida, atual Ministro dos Direitos Humanos), que também aplicado às LGBTI+, defende que a transfobia pode ser vencida caso conquistemos “postos de poder e prestígio” na sociedade capitalista, sejam em instituições públicas ou privadas.

Foto: PSTU-RJ

Para derrotar a transfobia é preciso destruir o capitalismo

Historicamente, as pessoas trans e travestis batalharam para se organizarem e resistirem em uma sociedade que as “aliena” (as separa de todos os aspectos da vida social e as trata como “coisas”) e só lhes reserva desrespeito e violência. Por exemplo, quando do surgimento dos principais centros urbanos, cavaram espaços de convivência e produção artístico-cultural, onde poderiam se apresentar e expressar da forma como queriam.

Mas, também, se fizeram presentes nas lutas LGBTI+, sociais e políticas desde os primórdios do movimento, como no Comitê Científico Humanitário (criado na Alemanha, por Magnus Hirschfeld, em 1897, com muitas pessoas trans) ou na linha de frente dos embates contra as forças repressoras do Estado, como na Revolta de Stonewall, em 1969, nos Estados Unidos.

Assim seguem hoje, lutando mundo afora por direitos, como o nome social, a inclusão do debate de gênero nas escolas, o emprego digno, cotas para pessoas trans na Educação e nos serviços públicos e, acima de tudo, pela própria vida.

Mas, para que estas lutas sejam vitoriosas e permanentes, acreditamos que é fundamental que as organizações de trabalhadores também levantem essas pautas e costurem uma forte aliança com os movimentos e ativistas trans. Tanto a libertação da comunidade trans quanto a unificação da classe trabalhadora passa por combater a transfobia onde ela existir, mesmo quando reproduzida no interior da própria classe.

Por isso, uma de nossas tarefas imediatas é nos colocarmos firmemente contra qualquer manifestação de opressão ou exploração imposta pelo capitalismo, o que, sem dúvida, inclui todas as expressões de transfobia aqui mencionadas.

Mas, travamos essas batalhas sabendo que são parte de uma guerra mais profunda, contra um sistema que se beneficia com a opressão contra aqueles e aquelas que rompem com suas normas de gênero e sexualidade. Não esperamos nada de presente da burguesia, pois se lucram com a transfobia, jamais abrirão mão disso voluntariamente.

Enquanto revolucionários, propomos a construção de uma nova sociedade, com a classe trabalhadora e seus setores oprimidos à frente. Uma sociedade que não seja baseada na exploração e onde haja espaço para a livre expressão da identidade de cada um.

Uma sociedade que seja controlada e organizada por todos(as) explorados e oprimidos, através de conselhos operários e populares. Com essa forma de poder direto, as pessoas trans terão, de fato, o poder de tomar decisões públicas de poder sobre as condições de emprego, moradia, estrutura familiar e identidade de gênero. E somente assim poderão viver em liberdade, com igualdade, justiça e direito à vida plena.

Uma possibilidade que, inclusive, já foi concretizada uma vez na História, não por acaso como fruto da destruição do capitalismo e quando as trabalhadoras e trabalhadores governavam através dos “soviets” (ou conselhos), no primeiro período da Revolução Russa e antes de que burocracia stalinista se encastelasse no poder, traindo também as LGBTI+ e fazendo retroceder suas conquistas.

“Mulheres que usavam roupas masculinas que serviram no Exército Vermelho, geralmente assumindo um papel masculino, receberam postos de autoridade (…). Nos anos 1920, Lev Rozenstein, convidou ‘lésbicas que atuavam nas milícias e como Combatentes Vermelhas’ a relatar a ele suas histórias de vida’ e reivindicou que ‘mulheres, na Rússia Soviética, deveriam, legalmente, assumir nomes masculinos e viver como homens”. Além disso, ainda “em 1917, todas as leis contra a homossexualidade foram derrubadas pelo novo governo revolucionário, juntamente com o resto do código criminal czarista. Sexo consensual foi declarado como uma questão privada e as pessoas gays [todas as LGBTI+] não somente eram livres para viver como eles/elas quisessem sem a intervenção do Estado, mas as cortes soviéticas também aprovaram o casamento entre homossexuais e, de forma extraordinária, foram reportadas até operações para mudança de sexo nos anos 1920” (págs. 89 e 97), escreveu Sherry Wolf.