Eram 4:00 da manhã, o dia de Greve Geral mal começava, mas já era possível saber como seria a cobertura jornalística sobre os fatos do dia 28. Pelo menos a cobertura feita pela grande imprensa. No rádio, que tradicionalmente se pauta pela prestação de serviço, a cobertura se resumia aos transportes. Se os metrôs, trens e ônibus estavam funcionando e quais trajetos evitar para fugir das barricadas. E só.
Ao longo do dia, a tônica se repetia. Aos poucos a situação dos transportes era atualizada. Conforme iam se desenrolando as atividades da greve, cenas de violência eram incorporadas ao noticiário. Brigas entre manifestantes, confronto com a polícia, bancos depredados, mascarados, tumulto em frente a casa de Michel Temer.
De noite, como era de se esperar, a cobertura da grande imprensa foi coroada com a do Jornal Nacional. Basicamente, o mesmo que se viu durante o dia: o problema dos transportes e o drama de seus afetados. Com a diferença que, ao terminar a matéria, o JN reservou espaço para exaltar a sua própria cobertura, elogiando o esforço de seus repórteres. Na ocasião, publicamos um texto do Wilson H. Silva sobre o papel da Globo.
Na manhã seguinte, a Greve Geral foi capa de praticamente todos os jornais. O mínimo que se podia esperar, já que até quinta-feira imperava um silêncio sepulcral sobre o assunto por parte da grande imprensa. Mas o fato é que, praticamente todos os jornais, seguiram a mesma receita em suas coberturas: os transportes parados e as rodovias interditadas, o drama de quem queria trabalhar ou estudar mas foi cerceado pelas manifestações, cenas de violência, quebra-quebra e repressão.
A grande imprensa não é imparcial
A verdade é que ninguém esperava outra coisa da grande imprensa. Uma cobertura tacanha para reduzir um importante dia de Greve Geral a um dia com clima de feriado e cheio de transtornos para a população.
Já discutimos em outro momento o caráter de mercadoria da notícia no capitalismo, a impossibilidade de um jornalismo imparcial e também como o monopólio da mídia é usado como moeda de troca entre políticos, coronéis e empresários.
O que deve ser discutido então é como a mídia consegue sistematicamente distorcer esses fatos, tal como fez na cobertura da Greve Geral do dia 28. Dizer que “a mídia mente” é muito pouco. Afinal, se fosse uma mentira escandalosa ficaria evidente e as pessoas simplesmente não acreditariam. A construção do discurso ideológico no jornalismo é mais sofisticado do que isso, e a cobertura da Greve Geral está cheia de exemplos.
O mito do fato jornalístico
Não é difícil de entender que toda a realidade do mundo não cabe em um noticiário. Ou seja, é preciso escolher o que vai ser publicado e o que não vai. Isso significa que deve-se decidir sobre o que se falará e sobre o que se manterá o completo silêncio. É o que os empresários da área e jornalistas chamam de fato jornalístico. O que cabe à imprensa é cobrir os fatos jornalísticos e ignorar os fatos não-jornalísticos.
O problema é que a realidade não é divida em fatos jornalísticos e não-jornalísticos. A realidade é um todo complexo e dinâmico e, por quaisquer que sejam as características jornalísticas, elas não estão no fato em si. Pelo contrário, estão nos olhos de quem observa. São subjetivas. Isso significa que, em última instância, é a empresa jornalística que decide qual a relação que ela terá com a realidade.
Assim, o que vimos impresso nas capas de jornais no sábado de manhã não era bem a Greve Geral, mas as consequências paralelas dela. Basta olhar as manchetes. A Folha de S. Paulo disse que “Greve atinge transportes e escolas em dia de confronto”. Já o Estadão disse que Greve afeta transportes e comércio e termina com atos de vandalismo”. O Globo estampava que “Protesto de centrais afeta transportes e tem violência”.
Ou seja, a Greve Geral não foi o fato jornalístico. Os fatos foram os impactos no transportes e os atos de violência. O próprio termo “Greve Geral” foi diminuído no noticiário, que se referia à data como “um dia de paralisações e manifestações”. O que se dúvida tira o caráter unitário da data. Em alguns casos, como na TV Globo, a ordem veio de cima, orientando os jornalistas a usarem termos como “protesto”, “sindicalistas”,“manifestantes” e evitar o temor “greve geral”. O caso foi denunciado por Rodrigo Ratier, da revista Nova Escola.
A realidade recortada
Além de escolher sobre o que se falará e sobre o que não, existe um outro aspecto na construção do discurso jornalístico que é chamado de enquadramento. Isso significa que, escolhido o fato jornalístico, decide-se qual aspecto dele será mais relevante dentro do que os jornais chamam de linha editorial.
Assim a realidade é fragmentada e reduzida a estilhaços desconectados uns dos outros. Com muita facilidade, os fatos são descontextualizados, desconectados de seus antecedentes e de seus consequentes, o que dá ao jornalista a possibilidade de reconectar os fatos da realidade. Com isso, uma outra realidade é construída.
Na cobertura do Jornal Nacional, por exemplo, uma mulher é entrevistada dizendo que queria ir trabalhar mas foi prejudicada pela greve. Depois, o repórter fala do trancamento de rodovias e da falta de transportes. Logo em seguida, diz que bancos e escolas não abriram. O que não se diz, no entanto, é o que bancários e professore aderiram à greve e por isso bancos e escolas não abriram, e não por que funcionários não puderam chegar por falta de transporte, como ficou sugerido.
A realidade invertida
Com a realidade dividida e depois fragmentada, fica fácil inverter a relevância dos aspectos. Ou seja, apresentar o secundário como principal. Assim, de todos os aspectos, o preferido dos editores foram os atos de violência, depredação e confronto, como ficou estampado em todos os grandes jornais. O Estadão chegou a dizer que houve uso de “tática de guerrilha urbana”.
Ainda na questão dos transportes, que a grande imprensa tanto valorizou, em nenhum momento se entrevistou um empresário para saber de seu prejuízo. Nem tampouco algum motorista de ônibus ou um cobrador. O aspecto mais relevante para a grande imprensa foram os“milhões de cidadãos impedidos de chegar ao trabalho”.
Como se não existissem empresários e trabalhadores, apenas cidadãos prejudicados, as manifestações foram reduzidas a “grupos de sindicalistas”. Isso foi muito usado para deslegitimar a data. Inclusive silenciando e fingindo que grandes atos não aconteceram em muitas capitais do país.
Ora, mas mesmo assim, uma Greve Geral não se mede pelo números de pessoas em manifestações. Uma Greve Geral se mede pelo impacto na produção. Pelo prejuízo da patronal. E sobre isso, nem uma vírgula, nem um empresário sequer para comentar seu prejuízo. Aliás, a Folha de S. Paulo disse que o dia de produção foi normal, sem apresentar dados.
Por fim, tratou-se de uma greve contra os ataques do governo. Toda a mobilização foi para impedir o governo de prosseguir com as reformas. No entanto, esse aspecto passou longe das grandes redações. Não se ouviu ninguém do Planalto nem houve um comentário seque sobre se isso afetaria ou não as votações em Brasília.
A lição número um do jornalismo, de ouvir todas as partes, foi completamente esquecida. E isso, obviamente, para proteger o governo. Na realidade retratada pela grande imprensa, existiam apenas os sindicalistas e a população prejudicada. Não existia patrão nem governo. Como se os ataques não existissem e a ideia de Greve Geral tivesse saído da cartola de alguns poucos sindicalistas.
Nem uma confiança na mídia burguesa
Claro, esses são só alguns aspectos dessa cobertura vergonhosa da grande imprensa nacional. Mas não temos nenhum tipo de esperança ela. Assim como qualquer outra, são grande empresas controladas por empresários burgueses. Não poderia ser diferente.
A grande imprensa não é mentirosa. Dizer isso é pouco pois não se trata de um problema moral. O que ela faz, não é mentir. O que ela faz é discurso político. E discurso político contrário aos nosso interesses. A grande imprensa atua como um verdadeiro partido burguês, defendendo os interesses da burguesia.
Por isso, é muito importante que as organizações operárias sem preocupem com suas respectivas imprensas. Assim como são importantes também as mídias alternativas. Essa também é uma dimensão da luta de classes e a batalha pela consciência também passa pelo nosso jornalismo, não só pelas cartilhas e cursos de formação.