Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Francisca Xavier Queiroz de Jesus, a atriz Chica Xavier, morreu na madrugada deste 8 de agosto, aos 88 anos, no Rio de Janeiro, vítima de um câncer no pulmão descoberto há poucos dias. Nascida em Salvador, em 22 de janeiro de 1932, Chica dedicou 64 anos de sua vida à arte da interpretação. E o fez com dignidade, dedicação e talento que não só deixarão saudades, como também marcaram a história do teatro, do cinema e da TV em nosso país. Principalmente, é preciso dizer, por se tratar de uma atriz negra.

Não deixa de ser triste, por exemplo, que a maioria dos artigos que estão sendo publicados, hoje, comecem com algo como “a atriz conhecida em papéis marcantes como na novela Sinhá Moça…”. Não porque seu papel, também nesta novela, não tenha sido memorável; mas, sim, porque é parte de uma longa história em que atrizes a atores negros têm suas carreiras limitadas a de coadjuvantes.

Uma situação que, em vários sentidos, é reflexo do local que a classe dominante reserva, desde sempre, àqueles e àquelas que descendem de africanos(as) que chegaram a este país na condição de escravos. Contudo, Chica Xavier é um exemplo de como, muitos de nós, lutando contra tudo isso, se tornaram senhores e senhoras de suas próprias histórias, ao mesmo tempo em que contribuíram para escrever a história de todo o povo brasileiro.

Estréias em grande estilo

Filha de uma “mãe solo”, nascida na miséria, Chica começou a trabalhar muito cedo e, aos 14 anos, tornou-se aprendiz de encadernadora na Imprensa Oficial do Estado da Bahia. Mas, aos 21, em 1953, começou a correr atrás de seu sonho e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a estudar teatro com Phascoal Carlos Magno, diretor, agitador cultural, fundador, em 1937, do “Teatro do Estudante do Brasil” e que foi um dos responsáveis pela renovação do teatro brasileiro, tendo sua carreira interrompida pelo golpe militar em 1964.

Com esta formação, atípica pra época, três anos depois, Chica estreou nos palcos num espetáculo fundamental de nossa história: “Orfeu da Conceição”, a transposição para os morros cariocas do mito grego, escrita por Vinícius de Moraes, com músicas compostas em parceria com Tom Jobim e cenografia de Oscar Niemeyer.

Nele, Chica Xavier interpretou a “Dama Negra”, que ronda os personagens e é fio condutor da história. Contudo, a “grande” novidade, de fato, foi ver o palco do Municipal do Rio de Janeiro, o teatro mais prestigiado do país, transformado num quilombo, tomado por corpos e vozes negras, atabaques e samba. Uma ousadia levada a cabo pelo Teatro Experimental do Negro, dirigido por Abdias do Nascimento e um elenco formado por verdadeiras pérolas negras, como Haroldo Costa, Léa Garcia e Clementino Kelé (com que Chica Xavier se casou e manteve, até a morte, um relacionamento por 64 anos, tendo com ele três filhos e três netos).

Neste mesmo período, Chica desempenhou outro papel que ela própria considerava fundamental para a atriz e pessoa que se tornou, trabalhando como funcionária pública em órgãos como Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e Centro Latino Americano de Pesquisas em Ciências Sociais. Experiências que lhe permitiram, como declarou em sua biografia, começar a ver o Brasil a partir do ponto de vista sociológico, ganhando um entendimento que era negado a muitos de sua origem e raça.

Em 1962, a atriz estreou no cinema se envolvendo em outro projeto marcante: o filme “O assalto ao trem pagador”, dirigido por Roberto Farias. Baseado num episódio ocorrido em junho de 1960, quando uma quadrilha dinamitou os trilhos próximos à Estação Central do Brasil e roubou 27 milhões de cruzeiros, o filme, contudo (inserido no conturbado contexto do período e refletindo as propostas do Cinema Novo), parte desta história para discutir conflitos de classe, racismo, pobreza e umas tantas outras mazelas que motivaram os seis assaltantes

Presa à telinha, mas sempre fiel às suas raízes

Nos anos 1960, a TV já estava se consolidando como principal produto cultural e fonte de entretenimento entre nós e, apesar de apaixonada pelo Teatro, como muitos outros atores e atrizes negros que precisam garantir sua sobrevivência, Chica Xavier viu no veículo a possibilidade de alguma estabilidade, mesmo se tivesse que pagar um razoável preço por isso: ver seu talento limitado a papéis secundários e ter sua mente permanentemente atormentada pela consciência de que boa parte de suas personagens reproduziam estereótipos distorcidos sobre as mulheres e a história de nosso povo.

Diga-se de passagem, muito já se disse e escreveu sobre como TV e, particularmente, a teledramaturgia no Brasil quando não tentaram nos coisificar, humilhar e diminuir descaradamente, sempre estiveram a serviço da reprodução do mito da democracia racial, em qualquer uma de suas muitas vertentes: o “apagamento” ou invisibilização do nosso povo e nossas lutas; a pregação de uma (desde sempre) relação cordial e harmoniosa entre brancos e negros ou de uma passividade à beira do masoquismo por parte da população negra.

Para quem quiser se aprofundar no tema, ficam duas dicas: o livro e filme “A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira” (Editora Senac, 2000), frutos de uma extensa pesquisa feita por Joel Zito Araújo e a obra da qual “emprestamos” o título deste artigo, “Damas negras: sucesso, lutas, discriminação: Chica Xavier, Léa Garcia, Ruth de Souza, Zezé Motta” (Maud, 1995), com entrevistas e análise de Sandra Almada.

Seja como for, o fato é que Chica Xavier se viu obrigada a incorporar muito disso em sua longa carreira televisa desde sua estréia oficial em “Os ossos do Barão”, de 1973. De lá até seus últimos trabalhos no início da década de 2010, somente na televisão, foram mais de 50 personagens, a maioria na Globo, mas, também, no Canal Futura e nas redes Bandeirantes, Manchete e Educativa.

Muitas delas estavam presas à senzala, ao serviço doméstico (tratada como “se quase fosse da família”), como a Marlene, de Dancing Days (1978); subservientes ao ponto de idolatrar seus patrões (como a Inácia, de “Renascer”, em 1993) ou, ainda, destinadas a suportar todos sofrimentos e abusos, ao mesmo tempo em que protegem heroínas brancas, como a Virgínia (Bá), de “Sinhá Moça” (1986).

Consciência pra lavar nossa “alma”

Contudo, seria uma injustiça afirmar que Chica Xavier só interpretou papeis assim. Até mesmo porque sempre foi uma mulher consciente e orgulhosa de suas raízes, como declarou sua neta, a também atriz Luana Xavier, ao portal do jornal “Extra” (08/08/2020): “Ela sempre levantou a bandeira dela pela negritude, principalmente dentro do trabalho dela como uma artista. Ser uma artista negra no Brasil foi sem dúvidas a maior bandeira que ela pôde carregar, e sempre exaltando a importância de termos outros artistas pretos na TV”.

Uma postura que acabou a transformando em uma espécie de porta-voz de todos nós, negros e negras, num episódio impar na história do combate ao racismo nas telenovelas e, também, exemplar de como os meios de comunicação de massas são sacudidos pelas lutas.

Em 1994, o debate racial estava acirrado. Afinal, enquanto o racismo rolava solta, como sempre, nossa memória era cutucada, permanentemente, pela lembrança da destruição do Quilombo dos Palmares, exatos 300 anos antes. Protestos aconteciam por todos os cantos, o debate sobre cotas pegava fogo nas universidades, num processo que desembocaria, um ano depois, na realização de um dos protestos mais memoráveis de nossa história recente: a Marcha Zumbi dos Palmares, que levou 30 mil negros e negras, além de nossos aliados, a Brasília.

Insensível a tudo isso, em 7 de novembro daquele ano (ou seja, às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra), a Globo colocou no ar uma cena, na novela “Pátria Minha”, que extrapolou todos os limites possíveis, quando um dos protagonistas, o empresário Raul Pelegrini (Tarcísio Meira), acusou o jardineiro Kennedy (Alexandre Moreno) de roubo, disparando uma metralhadora giratória de insultos racistas.

A fala começava com um berro (“Você abriu meu cofre, negro safado.”) e, diante da negativa do jovem negro, continuava com frases como “Você pensa que acredito em crioulo?”, “Vocês, quando não sujam na entrada, sujam na saída. Foi vingança? Vingança porque não deixei você estudar? Você pensa que conseguiria aprender alguma coisa? Não sabe que o cérebro de vocês é diferente do nosso?

Na época, quando os protestos começaram, Gilberto Braga e sua equipe de autores tentaram se defender afirmando que só queriam denunciar o racismo e rejeitavam a “patrulha ideológica” que estava tentando censurar sua liberdade de expressão. E, se não bastasse, assumindo a arrogante postura de querer nos ensinar a nos revoltarmos, o autor ainda declarou (textualmente), que as “palavras fortes” eram para “revoltar os telespectadores e mobilizá-los contra a discriminação”.  Como se nós nunca as tivéssemos escutado ou não soubéssemos reagir diante delas.

Esse era exatamente o “x” do problema. Como escrevemos numa edição do “Jornal do PSTU” (que recém havia sido fundado), o racismo não estava simplesmente em colocar um empresário dizendo o que, sabemos, toda burguesia acredita desde sempre. O inadmissível, mesmo, era a forma como o jovem negro se portou durante toda a cena: mesmo inocente, somente chorava, cabisbaixo, se submetendo à humilhação e à agressão sem a menor reação, sem uma única expressão de revolta.

Revolta que, no entanto, não faltou fora das telas, já que as entidades do movimento negro se mobilizaram por todo o país e exigiram uma retratação. E foi aí que Chica Xavier, que fazia Zilá, a madrinha do jovem agredido, protagonizou uma cena inédita em nossa história quando, duas semanas depois, os autores foram obrigados a criar uma cena em que ela chamava seu afilhado pra lhe ensinar “umas coisinhas”

É inevitável pensar que a atriz teve participação direta na construção do texto que começava denunciando os que acham nosso cabelo é ruim e era pontuado por frases como nunca podemos nos envergonhar de “pertencer à comunidade negra”, que os negros não são “menos inteligentes que os brancos” e que ninguém “deve se calar diante do preconceito racial”.

“Mãe do Brasil”, filha de Zumbi, ialorixá de seu povo

“Chica Xavier: mãe do Brasil” (Editora Eldorado, 2013) é o título de uma biografia da atriz, assinada por Teresa Monteiro. Um título adequado não por reproduzir estereótipos rasteiros vinculados à maternidade, principalmente quando se fala de mulheres negras (o papel de cuidadora ou da mulher que é capaz de agüentar todo e qualquer tipo de sofrimento), mas, sim, por lembrar seu papel semelhante a tantas outras mulheres negras, nas mais diferentes áreas: a de agregadora, de protetora e “griots” (contadoras de história, guardiãs e transmissoras do conhecimento, na tradição dos povos africanos) de nosso povo.

Mulheres como Acotirene, Aqualtune, Dandara, Luísa Manhin ou Teresa de Benguela. Ou como Tia Ciata, em torno de quem o samba surgiu. Como Carolina de Jesus. Ou, ainda, como as mães-de-santo, as ialorixás, assim como a própria Chica Xavier.

Muitos que se acostumaram a vê-la em trajes rituais das religiões de matriz afro-brasileira em interpretações sublimes como em “Quincas Berro D’Água” (1978) e, particularmente, como Magé Bassã, em “Tenda dos Milagres” (1985), desconhecem que Chica era mãe-de-santo na Irmandade do Cercado do Boiadeiro, terreiro que fundou, em Sepetiba (RJ) há quase 40 anos.

Aqui, mais do que significado puramente religioso deste papel desempenhado por Chica, queremos destacar o paralelo que isto mantém com sua atividade como atriz. Afinal, diante de sua morte, como foi repetido inúmeras vezes, no dia de hoje por artistas negros e negras, era é um exemplo da importância dos nossos ancestrais. Dos mais distantes no tempo aos mais recentes na História.

Num país onde, em pouco mais de 500 anos, durante quase 400 deles tentaram manter a história de nosso povo presa às correntes e imersa na dor, todos e todas que lutaram (sejam com quais forem as armas) pela nossa liberdade, pela igualdade e pela justiça são parte da história de cada um de nós.

E, com certeza, Chica Xavier tinha consciência disto e, por isso, manteve seu perfil altivo e a fidelidade às suas raízes mesmo nos papeis em que estava destinada a ser só a “sofredora” e “cuidadora”. Se manteve como uma “Dama” quando a queriam escrava. Não exemplo de gente esnobe, que assumir o papel da Sinhá, embraquecendo-se na ilusão de se tornar “igual”. Pelo contrário. Uma “Dama” por se sentir parte de uma linhagem “nobre”, de guerreiros e guerreiras.

Algo que ficou lindamente registrado num vídeo produzido pela CULTNE (Acervo Digital de Cultura Negra), realizado quando do relançamento do livro “Damas Negras”, em março de 2012.

Nele, além de vermos a imortal Ruth de Souza (1921 – 2019) lembrando como estas mulheres muitas vezes brigaram e arriscaram seus empregos para tentar mudar o “sentido” que era imposto às suas personagens, também vemos Chica Xavier em seus trajes rituais, agradecendo a Zumbi, por seu rei e entoando lindamente: “Zumbi, seu brado desceu a Serra, se espalhou pelas Alagoas (…) Seu brado vivo virou canto de libertação, cantado até hoje pelo povo irmão”.

Por essas e tantas outras, obrigado, Chica! Que seu axé continue vibrando nos corações e mentes de nosso povo!