Foto: Najara Araujo/Câmara dos Deputados
Eduardo Zanata, de Brasília (DF)

Eduardo Zanata, PSTU-DF

Em 1983, o regime militar, já decadente, editou a Lei de Segurança Nacional (LEI Nº 7.170, de 14 de dezembro 1983), que está em vigor até hoje. A Lei de Segurança Nacional (LSN) foi publicada pela primeira vez em 1935, por Getúlio Vargas, sofreu alterações posteriores, que previam inclusive a pena de morte (publicada em 1969), até o texto atual de dezembro de 1983.

A LSN é um entulho autoritário da ditadura militar brasileira, que voltou aos holofotes desde 2020, quando Bolsonaro e seus seguidores organizaram atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. A pedido do ministro do STF, Alexandre de Moraes, foi instaurado inquérito na Polícia Federal (PF), que levou a prisão de ativistas bolsonaristas como Sara Winter e Allan dos Santos, enquadrados na LSN. Já este ano, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) foi preso em flagrante, enquadrado na LSN, depois de publicar vídeo com ameaças aos ministros do STF.

Mais recentemente, Bolsonaro e seus seguidores moveram uma série de denúncias contra opositores de seu governo, usando uma tipificação penal da LSN que prevê a prisão de pessoas que difamem ou caluniem o presidente da República. Um grupo de manifestantes chegou a ser detido em Brasília e levado a PF por estender, na frente do Congresso Nacional, uma faixa chamando Bolsonaro de genocida, sob esse mesmo pretexto.

Foto: Arquivo Nacional

Mudar, mas dando continuidade a boa parte dos mecanismos autoritários

Historicamente, a LSN, sob o pretexto de defender a soberania nacional e as instituições do estado, sempre foi usada para criminalizar a luta dos trabalhadores. A tipificação penal genérica da LSN permite enquadrar praticamente qualquer tipo de manifestação pública como atentado à segurança nacional. O fato de que a crise institucional do país tenha levado a utilização dos mecanismos da LSN contra os seguidores de Bolsonaro, levando inclusive a prisão de um deputado federal, reascendeu um debate no STF e no Congresso Nacional sobre mudanças nessa legislação.

Atualmente, há várias ações no STF que questionam a constitucionalidade da LSN, que foi publicada antes da constituição de 1988. E, diante da possibilidade de que o STF declare a inconstitucionalidade desse dispositivo, deixando um vazio legal, o Congresso Nacional ressuscitou 14 projetos de Lei (PLs) anexados ao PL 2462/1991, que procuram revogar a LSN e criar uma nova tipificação de crimes “contra o estado democrático de direito”. O PL 2462/1991 foi aprovado na sessão de hoje, dia 04 de maio, na Câmara dos Deputados e segue para análise e votação no Senado.

É um absurdo que a Lei de Segurança Nacional esteja em vigor até hoje, dado seu caráter autoritário e antidemocrático. Nesse sentido, é fundamental e progressivo derrubar essa legislação herdada do regime militar, buscando ampliar e garantir as liberdades democráticas no país. Entretanto, o PL 2462/1991, aprovado pela câmara dos deputados, cumpre o papel de repaginar e dar continuidade a boa parte dos mecanismos autoritários da própria LSN.

A deputada Margarete Coelho (PP-PI) foi a encarregada de apresentar o substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados. O relatório aprovado não muda de forma significativa os dispositivos da LSN. Há, inclusive, trechos inteiros da LSN que permanecem iguais na nova proposta de texto aprovado.

O texto simplifica algumas tipificações penais e cria algumas novas como o “crime de insurreição” ou “abolição do estado democrático de direito” para quem “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Ou então, o crime “contra o funcionamento dos serviços essenciais” definido como “destruir ou inutilizar meios de comunicação ao público, estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional, com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito”.

Além disso, o relatório procura tipificar penalmente o crime de divulgação de fake news durante o processo eleitoral a quem “promover, ofertar, constituir, financiar, ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privada, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos capazes de colocar em risco a higidez do processo eleitoral, ou o livre exercício dos poderes constitucionais.”

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Um cavalo de Troia contra os trabalhadores

O Congresso Nacional e os deputados, inclusive dos partidos de esquerda (PT, PCdoB e PSOL), tentam apresentar esse projeto como algo progressivo para se livrar da LSN criada pelo regime militar. Contudo, ainda que o texto acabe com algumas tipificações penais, e coloque de enfeite alguns trechos para supostamente garantir o direito de organização e manifestação, esse novo projeto de lei tem potencial parecido ao da antiga LSN de criminalizar os movimentos sociais e a luta dos trabalhadores.  Piquetes, fechamentos de ruas e ou mesmo críticas aos governos e as instituições podem ser facilmente enquadradas como ameaças ao estado democrático de direito, deixando os trabalhadores sujeitos a processos criminais e prisões em flagrante.

Em certo sentido, essa nova proposta de lei, ao repaginar a antiga LSN, pode vir a ser mais perigosa ainda para os trabalhadores e ativistas. Uma nova legislação com mecanismos autoritários, mas que não carregue a pecha da LSN, de ser uma herança autoritária do regime militar, pode vir a ser mais fácil de ser usada para criminalizar os trabalhadores, os ativistas e os movimentos sociais.

Há quem acredite, que com essa nova legislação, ficará mais fácil de mover ações criminais contra as declarações e posturas autoritárias de Bolsonaro e seus seguidores, abrindo assim o caminho para o impeachment e até mesmo para a prisão de Bolsonaro. Ou, que a aprovação desse projeto de lei vai impedir ou dificultar as intenções golpistas de Bolsonaro. Mas isso é uma ilusão. São inúmeros os crimes cometidos por Bolsonaro durante sua gestão e o Congresso Nacional não leva adiante nenhuma das dezenas de pedidos de impeachment do presidente. Da mesma maneira, não há nenhuma iniciativa do STF de abrir um processo de investigação contra os inúmeros crimes cometidos por Bolsonaro.

Não há perspectiva de nenhum setor da burguesia, do STF ou mesmo do Congresso Nacional derrubar Bolsonaro nesse momento. Há um setor que quer ver o governo sangrar até as eleições de 2022 para se apresentar como uma alternativa de frente popular ou um governo de unidade nacional. E, outros que querem disciplinar Bolsonaro, negociando cargos e freando seus arroubos autoritários para garantir a governabilidade . Mas, não interessa a nenhum desses setores abrir um processo de derrubada do governo, paralisando o plano de ajuste fiscal e as contrarreformas que estão sendo gestadas por Guedes e Bolsonaro, como as privatizações dos Correios e a reforma administrativa.

Não será a publicação de uma lei para defender “o estado democrático de direito” que permitirá derrubar Bolsonaro. Somente a mobilização da classe trabalhadora e uma rebelião popular, como estão fazendo nesse momento os nossos irmãos sul-americanos da Colômbia, podem levar a queda do governo autoritário de Bolsonaro e Mourão.