Palácio do Supremo Tribunal Federal destruído após invasão de bolsonaristas
Pablo Biondi, de São Paulo (SP)

 

Como parte do PAS (Programa de Ação na Segurança), o governo Lula apresentou o “Pacote da Democracia”, que consiste num projeto de recrudescimento das punições legais contra os participantes dos “movimentos antidemocráticos”. Sem definir com precisão quais seriam esses movimentos, a não ser pela noção geral de oposição ao “Estado Democrático de Direito”, o projeto elaborado pelo Ministério da Justiça pretende reformar o Código Penal, estipulando penas de 6 a 12 anos para os organizadores de tais movimentos, de 8 a 20 anos para os financiadores, de 6 a 20 anos para agentes que atentem contra a integridade física dos membros da cúpula do regime político (presidente, vice-presidente, presidente do Senado, presidente da Câmara dos Deputados, Procurador-Geral da República e ministros do STF), e de 6 a 40 anos para aqueles que atentarem contra a vida das autoridades citadas. No caso, serão considerados como atentados contra a integridade física e contra a vida, para os fins da lei, as condutas nesse sentido que forem praticadas com o objetivo de “alterar a ordem constitucional democrática”.

Tomando como referência os atos ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023, o governo sustenta que há necessidade de uma defesa penal mais severa dos poderes da República e do patrimônio público, como forma de assegurar o funcionamento das instituições democráticas, dos serviços públicos essenciais e da soberania nacional. E segundo aqueles que elaboraram o Projeto de Lei, ele teria o papel de “fortalecer tanto a finalidade retributiva da pena (repressão proporcional à gravidade do ilícito penal), quanto o caráter preventivo, reforçando seu poder intimidativo sobre os destinatários da norma, bem como reafirmando a existência e eficiência do direito penal brasileiro”.

Vale acrescentar que o “Pacote da Democracia” ainda pretende, com a inserção de novos dispositivos legais, possibilitar medidas de apreensão de bens e de bloqueio de contas bancárias dos suspeitos de participação em crimes contra o Estado Democrático de Direito. Isso significa que, na eventualidade de uma aprovação do projeto proposto, o Poder Judiciário poderia determinar, conforme requerimentos do Ministério Público ou da União, a aplicação das referidas medidas em qualquer fase do processo penal, até mesmo antes de uma denúncia formalizada.

Algumas contradições ideológicas

Como se observa, o projeto traz em si a finalidade de ampliação dos poderes de persecução penal do atual regime político, uma espécie de defesa do “Estado Democrático de Direito” contra seus inimigos. No entanto, apesar de se apoiar no repúdio generalizado à investida golpista do 8 de janeiro, o projeto tem se mostrado divisivo em sua recepção pela comunidade dos juristas. Com efeito, os especialistas do direito divergem: alguns entendem que a “democracia” é um bem fundamental a ser protegido com uma legislação mais enérgica, alegando que a tolerância de um regime de liberdades não poderia salvaguardar a atuação dos intolerantes; outros, ressentindo-se do tom punitivista adotado, reivindicam a bandeira do direito penal mínimo, argumentando que a “democracia” não é compatível com um ambiente de intimidação dos dissidentes, sobretudo diante da vagueza dos termos utilizados na proposta.

Toda essa discussão é balizada pelo ponto de vista da “democracia pura”, conforme dizia Lênin em sua obra “A revolução proletária e o renegado Kautsky”. Quando se fala pura e simplesmente em democracia – ou seja, na democracia sem predicados, sem qualificativos, na democracia como um conceito que se basta –, o que se tem é uma apologia de um regime político específico, e cujo caráter de classe permanece oculto, como se o conceito pudesse pairar sobre as classes sociais. Como bem observou Lênin em sua crítica a Kautsky, falar genericamente em “democracia” significa enaltecer a democracia burguesa, que é a forma dominante de regime político que se tem na atualidade. E louvar a democracia burguesa significa prestar idolatria às formas políticas que a dominação capitalista observa sob esse regime político: o dogma da separação dos poderes, o atomismo do sujeito proprietário, a representatividade do sufrágio.

Enquanto representantes oficiais da ideologia jurídica, os juristas são fortemente inclinados a abraçar o ponto de vista da “democracia pura”. Aliás, o “democratismo” de Kautsky nada mais era do que uma manifestação da presença da ideologia jurídica nas concepções reformistas: só seria legítimo o poder exercido de maneira “democrática”, sendo que por “democrático” se entende aquilo que está em consonância com os padrões liberais burgueses que dão forma ao regime político (padrões que sacralizam o sujeito proprietário, convertendo-o na razão de ser de toda e qualquer autoridade).

Pois bem. A divisão dos juristas sobre o “Pacote da Democracia” parece expressar um impasse da própria ideologia jurídica: por um lado, ela quer fazer crer que o “Estado de Direito” provê “democracia” ao fixar um terreno de liberdades em que cada um busca promover seus valores políticos particulares sem ser tolhido ou direcionado pelo poder público; por outro, essa coexistência entre os indivíduos com valores diferentes exige uma ordem pública a ser preservada, e que seja capaz de assimilar os conflitos e a dissidência às suas estruturas institucionais. Para fazer reinar a liberdade formal da sociedade civil burguesa, portanto, a “democracia” precisa ser imposta coercitivamente. Daí o contraste entre um “punitivismo democrático” (a defesa do endurecimento penal contra os “inimigos da democracia”) e um garantismo ultratolerante (a tese de que a “democracia” não pode ter inimigos, razão pela qual a intervenção penal no campo político deveria ser minimizada).

No que diz respeito aos interesses do proletariado, há que se demarcar que nenhuma dessas duas posições são adequadas. Elas apenas expressam contradições da ideologia jurídica, sem incorporar as necessidades próprias da classe trabalhadora. De um lado, o punitivismo contido na legislação proposta pelo governo Lula pode ser perfeitamente utilizado para aprofundar a criminalização dos movimentos sociais no Brasil, dando continuidade às leis antiterrorismo do governo Dilma Rousseff. De outro, o garantismo liberal dos juristas que se opõem ao projeto não oferece soluções para o indispensável combate à extrema direita, já que apregoa um certo abstencionismo diante dos perigos que o golpismo oferece. A resposta que interessa aos trabalhadores, nessa ordem de considerações, não reside nem no fortalecimento do poder punitivo de um regime burguês e nem na leniência liberal perante as movimentações bonapartistas. Ela reside na própria independência política dos trabalhadores.

A autodefesa da classe trabalhadora e a saída por fora da conciliação e do direito

O combate à extrema direita, segmento que expressa a putrefação do capitalismo em larga escala – e que realça a urgência de uma revolução socialista para se superar a atual forma de sociedade –, não pode ser confiado à democracia burguesa ou a um governo de plantão, em especial quando se trata de um governo especialista em conchavos conciliatórios. O governo Lula jamais poderia capitanear seriamente uma iniciativa consequente de repressão contra as forças bonapartistas que se aglutinaram em torno de Bolsonaro, dado que o cerne da sua política é atrair para si a base aliada da gestão anterior. Para alcançar a governabilidade exigida pelo capitalismo brasileiro, Lula irá compor politicamente com setores que alimentaram o bolsonarismo por muitos anos, e que agora tendem a se realinhar por razões de conveniência. A tendência, portanto, é a de uma anistia generalizada (ainda que informal, assinada apenas nos bastidores) aos golpistas, e provavelmente dissimulada pela condenação de algumas figuras isoladas e mais conhecidas (como o ex-deputado Daniel Silveira, utilizado recentemente como bode expiatório em favor de Bolsonaro).

Seria também ingênuo imaginar que bastaria exigir o rigoroso cumprimento da legislação proposta pelo governo. A aplicação contundente das normas penais arquitetadas pelo Ministério da Justiça estaria condicionada pelos órgãos encarregados da persecução penal (como o Ministério Público) e pela discricionariedade dos juízes. As mesmas forças institucionais que realizam a histórica criminalização dos movimentos sociais no país estariam encarregadas de definir, juntamente à autoridade policial (cujo histórico dispensa maiores comentários), o que são e quais são os “movimentos antidemocráticos” a serem confrontados. No mais, é próprio da perspectiva do direito tratar golpes de Estado e revoluções como fenômenos similares, no sentido de que a diferenciação entre ambos não importa para fins de manutenção de uma ordem jurídica vigente. De acordo com Hans Kelsen, um dos principais representantes do pensamento jurídico burguês, é indiferente para o direito aferir se a derrubada de uma ordem jurídica e sua substituição por uma nova ordenação normativa se dá por um ato de força de uma minoria ou pela ação de massas populares. Em outras palavras, quando se assume o horizonte ideológico do “Estado democrático de direito” a ser protegido com todo o rigor da lei penal, tem-se que golpistas bolsonaristas e militantes socialistas revolucionários são igualmente opositores da “ordem constitucional democrática”, a qual só poderia ser legitimamente alterada segundo os seus próprios procedimentos normativos.

Vale acrescentar que, na tutela penal proposta pelo governo, vislumbra-se a pena máxima (40 anos de prisão) para crimes contra a vida dos membros da cúpula do Estado, sendo que, até agora, a violência da extrema direita não produziu tal resultado. O que ela produziu e ainda produz é o assassinato dos oprimidos, como foi o caso de pessoas como Marielle Franco e Mestre Moa do Katendê. No entanto, o que se coloca como vital para o tão festejado Estado democrático de direito não é a vida das mulheres e dos negros, mas antes as posições-chave na arquitetura institucional do regime. A extrema direita é um problema para o governo na medida em que ela pode afetar a segurança dos ocupantes de postos estratégicos do regime, pouco importando a ameaça que ela representa para os oprimidos em geral.

Cumpre destacar ainda que o “Pacote da Democracia” traz o autodeclarado propósito de reafirmar “a existência e eficiência do direito penal brasileiro”, o que já sinaliza que essa medida governamental transcende a questão da extrema direita. Ao fazer a apologia do direito penal, isto é, da forma jurídica em seu aspecto mais repressivo, o governo Lula endossa o modelo punitivista que produz o encarceramento em massa no nosso país e que jamais foi direcionado para punir corruptos e corruptores, milicianos, dentre outros. O que se quer é prestigiar e aperfeiçoar o direito penal como manifestação suprema (ou “extrema”) da autoridade que mantém a ordem social vigente.

Portanto, a luta contra a extrema direita, que é parte da luta mais geral contra a ordem capitalista, não é uma tarefa que possa ser resolvida juridicamente, com o auxílio de uma reforma legislativa. Podemos e devemos reivindicar a prisão e a expropriação dos golpistas enquanto plataforma política a ser abraçada pela classe trabalhadora, mas não como um programa para o governo de turno, o qual, sendo um governo burguês, inevitavelmente utilizará a legislação punitivista contra os revolucionários e os lutadores do movimento de massas. Cabe aos trabalhadores reivindicar punições para os golpistas, mas sem entregar uma carta branca ao governo e ao Judiciário para a defesa do regime político.

É a classe trabalhadora quem deve ser protagonista no enfrentamento contra a extrema direita, apoiando-se nos seus métodos de autodefesa, num programa político independente da burguesia e em formas de luta que rechacem expressamente a lógica conciliatória dos governos petistas. É preciso que as organizações dos trabalhadores (e não o Ministério Público e o Judiciário) definam quem é o inimigo a ser enfrentado e com quais meios. E, acima de tudo, esse enfrentamento deve se dar sem nenhum tipo de ilusão a respeito da democracia burguesa – esse regime que, por mais embelezado que se mostre nos discursos dos juristas, reproduz cotidianamente as condições da exploração capitalista, além de ser cúmplice das mais diversas modalidades de opressão no país (como o genocídio do povo negro, a violência persistente contra LGBTs, as variadas formas de discriminação contra as mulheres etc.).

Nesse sentido, combater a extrema direita numa perspectiva proletária é um caminho que deve propiciar a crítica da democracia burguesa, e não a sua exaltação. A estratégia de autodefesa dos trabalhadores favorece a sua independência organizativa e política, assumindo, portanto, um papel fundamental para a necessária revolução socialista – uma revolução que, para triunfar, deverá abolir o Estado democrático de direito e substituí-lo pelos órgãos de poder do movimento de massas, instaurando a democracia da classe que tudo produz.