André Deusvelho, da Secretaria LGBT-RJ
Em fevereiro de 2017, Dandara, travesti, foi assassinada covardemente por um grupo de pessoas ainda não identificado, a pedradas, pauladas, golpes e tiros, largada na rua e ainda por cima com o crime sendo gravado e distribuído nas redes sociais. Em maio, a busca pelo baiano Thadeu Nascimento acabou tragicamente no Instituto Médico Legal de Salvador, quando encontraram seu corpo. O impacto e a dor foram inomináveis: ele havia sido estuprado, espancado e morto com tiros na cabeça. O motivo? Têu, como era conhecido, era um homem trans e negro.
Morremos de maneira absurda, principalmente se pertencemos à classe trabalhadora ou estamos entre os mais explorados. Nos estupram, nos espancam, nos enchem de tiros e facadas. Não sabemos quem são os que nos agridem, violentam e matam. Muitas vezes são muitos, que também não sabem quem somos. E ninguém é punido.
Morremos como “desconhecidos (as)” ou “não identificados(as)”. Morremos com um nome que rejeitamos. Morremos no feminino quando somos homens. Morremos no masculino quando somos mulheres. Morremos como “viados” e “sapatões”, e não como transexuais e travestis. Se não morremos nas mãos dos outros, somos sufocados (as) de tal forma pela opressão e pela exclusão social que atentamos contra nossa própria vida. Vivemos uma vida cruel e morremos cruelmente.
Somos invisíveis, e ao mesmo tempo os (as) “bobos da corte”. Nos enxergam para nos “comerem”, nos zoarem, nos discriminarem e nos excluir… Até ficarmos novamente invisíveis. O nosso sangue escorre pelas calçadas, nosso país é campeão em nos massacrar, e continuamos invisíveis.
Poucos e poucas de nós conseguem terminar a escola. Quase ninguém fez ou faz faculdade. Somos expulsos e expulsas de casa. 90% de nós não têm emprego formal. Muitas de nós são jogados (as) para a prostituição para poder sobreviver.
E se somos negros (as), se vivemos nas periferias e quebradas, se não nos enquadramos nos padrões estéticos televisivos, tudo isso é ainda pior.
Sentimos medo o tempo todo, em casa, na rua, em ir ao banheiro público… Em qual devo ir?… Somos vistos e vistas como uma aberração. Querem nos esconder. Querem nos calar. Nos sentimos como uma farsa quando temos que passar pela identidade que nos foi imposta. Temos que nos fantasiar, interpretar um papel, usar outro nome. E sentimos pavor quando assumimos nossa verdadeira identidade… Será que alguém vai descobrir? Será que vou ser bem tratado ou tratada? Será que eu saio dessa ileso (a), vivo (a)?
Resistir, lutar, existir
Não bastasse resistir ao preconceito, é necessário enfrentar o nojo e o ódio todos os dias. É preciso encarar a discriminação e os preconceitos alimentados por todos aqueles que se beneficiam da transfobia e todas as formas de opressão.
É para defender estes interesses que os governos, sejam os bolsonaros, os peemedebistas, os tucanos ou os petistas, fazem de tudo para que nenhuma lei em nosso favor seja votada, que nossos direitos sejam rifados em troca de alianças políticas e nossas reivindicações sejam promessas de campanha para vencer eleições. Basta lembrar como Dilma vetou o kit anti-homofobia, engavetou o PLC 122 pra acobertar suas relações corruptas com setores do congresso, particularmente a bancada fundamentalista e alimentou as ideologias reacionárias e conservadoras ao assinar a “Carta ao povo de Deus”. Não se pode, por exemplo, desconsiderar que, segundo dados do Grupo Gay da Bahia, um dos maiores saltos no número de LGBT’s assassinados (as) se deu entre 2011 (266 mortes) e 2012 (338).
Se é verdade que, hoje, os discursos opressivos, o racismo, o machismo e todas as variantes da LGBTfobia estão correndo soltos pela sociedade – o que pode ser lamentavelmente exemplificado por termos tido, em 2017, ainda segundo o GGB, 445 LGBTs assassinados –, isto não é assim porque estamos todos e todas mergulhados (as) num “tsunami conservador”, mas, sim, porque o capitalismo, principalmente depois de 2008, naufragou numa crise econômica sem paralelos na História. E, mais uma vez, estão tentando impor algo que está na própria essência do sistema: para garantir seus lucros, modo de vida e interesses é preciso explorar mais. E, pra isso, oprimir ainda mais. É preciso alimentar com mais intensidade os discursos e práticas que negam direitos, alimentam a exclusão dos setores oprimidos do mercado de trabalho e da sociedade como um todo. Uma realidade que, para nós trans, já é, há muito, conhecida.
Querem que nossos (as) irmãos (as) ganhem menos, trabalhem mais e nos hostilizem, para que seus bolsos fiquem cada vez mais cheios. Nos querem na cama com eles por uns trocados, nos querem sem oportunidades, sem educação, saúde e emprego. Nos querem vivendo até os 35 anos, menos gente para se preocupar com gastos públicos e aposentadoria. Nos querem excluídos e excluídas pelos nossos próprios irmãos e irmãs. Nos querem mortos nas mãos deles, sem precisar se sujar de sangue.
Mas, não nos calamos. Não recuamos em relação a nenhum dos míseros direitos que conseguimos arrancar em décadas de luta. Não temos nada a perder. Individualmente, só temos nosso corpo tido como monstruoso e nossa força de trabalho, considerada descartável. E, por isso mesmo, não caímos na ilusão de que o fim da transfobia passa pelo “empoderamento individual” ou pela conquista de espaços no “mercado”.
Mas não estamos só. A favela, a quebrada, o quilombo e os guetos são nossas casas. Nossos irmãos e irmãs têm as mãos calejadas e a testa suada, porque os almofadinhas e cartolas nos querem dentro dos armários, de quatro paredes (de preferência com grades e correntes). Ou quietas e invisíveis; ou “bem-comportadas” e acomodadas às regras do sistema.
Querem guerra entre nós. Nós declaramos guerra aos senhores. Sejam os donos do Capital, sejam seus agentes no Congresso, meios de comunicação e demais cantos da sociedade.
Basta de invisibilidade, basta de transfobia e violência! Não voltaremos pro armário!
Não vamos morrer sem trabalhar, nem trabalhar até morrer! Por uma revolução operária e popular contra a exploração e opressão!