Foto: Ricardo Stuckert
Júlio Anselmo

Há um grande debate na esquerda brasileira hoje sobre as alternativas ao governo de ultradireita de Bolsonaro. Lula e o PT tentam transformar a unidade na rua que luta contra o presidente em aliança eleitoral com setores da burguesia para governar. Sobre este tema da frente ampla e conciliação de classes, Gilberto Maringoni, do PSOL, desenvolve uma argumentação ao mesmo tempo bastante sincera e nítida. Temos uma visão oposta à sua, mas reivindicamos como faz o debate sem esconder sua posição e sem tergiversar. Isto é importante, porque infelizmente é raro no debate político mesmo na esquerda.

Leia o artigo de Gilberto Maringoni, “A quimera da conciliação de classes” aqui

O significado de conciliação de classes

Os governos do PT no passado, e a proposta de frente ampla atual de Lula, são ambas de conciliação de classes. Maringoni concorda com isso e parte deste fato. Também concordamos com ele quando diz que o termo é ruim. Por que? Em nossa opinião porque não há conciliação nenhuma mesmo. Não há conciliação de interesses. Não existe um programa meio operário, meio burguês.

Se é possível existir um programa mediado, ou seja, que atenda ao interesse das duas classes fundamentais da sociedade, o proletariado e a burguesia, então teríamos que afirmar que a contradição entre capital e trabalho, entre a acumulação privada capitalista e a exploração social do trabalho, não passa de invenção da cabeça de Marx. Como, na verdade, Marx apenas apreendeu uma contradição fundamental, real, concreta e existente na sociedade capitalista, que necessariamente tem que ser reproduzida para que o capitalismo siga existindo quanto capitalismo, então só podemos chegar à conclusão do caráter irreconciliável das classes e de seus interesses.

Mas claro que, ao chamarmos de conciliação de classes, estamos nos referindo a outra coisa. Esse termo expressa apenas que se trata um governo que mistura partidos e setores da classe trabalhadora com partidos e setores da burguesia. Mas, se nos ativermos aos fatos, vemos que o caráter do programa e do governo sempre é integralmente burguês. Não havendo nada que choque com o funcionamento normal do sistema capitalista.

Conciliação de classes não garante conquistas para os trabalhadores

A argumentação central de Maringoni é que governos desse tipo não são um problema em si, pois, inclusive, seriam responsáveis por uma série de conquistas. Apresenta como ganhos da conciliação de classes o governo de Allende e os governos da socialdemocracia europeia no pós-guerra. Mas não conta que os dois processos terminaram tragicamente.

O governo de Allende foi interrompido por um golpe militar com apoio do imperialismo de Pinochet, seu então ministro da Defesa. E os governos da social democracia europeia do pós-guerra foram fruto de enormes traições, ao desarmar e derrotar a revolução na Itália, França e Grécia que, se vitoriosas, poderiam significar um mundo muito diferente. Além disso, administraram o imperialismo europeu por anos, ao ponto de se desmoralizar por completo e se transformar em partidos burgueses comuns.

Maringoni, a princípio, parece não ter ilusões que governos de conciliação de classes representem alternativas socialistas. É bem claro ao restringir o papel desses governos a fazer um “enfrentamento de dilemas e entraves do desenvolvimento”. Mas sequer isto é verdade.  

Hoje, depois de anos de conciliação, não só não houve enfrentamentos dos dilemas, como estes seguem se acumulando cada vez mais violentamente. Por exemplo, vejamos o atraso brasileiro em resolver tarefas democráticas elementares como a punição dos milicos da ditadura, a desmilitarização das policiais ou mesmo a reforma agrária, ou ainda a questão da reparação ao povo negro.

Também não é verdade que combateu os entraves ao desenvolvimento. Pelo contrário, a dinâmica mundial imperialista foi de centralizar em um número menor ainda de países centrais. Não só os países periféricos não destravaram seu desenvolvimento, como nações foram rebaixadas. O Brasil sofre um processo brutal de reprimarização da economia e recolonização cada vez mais profundo. Na Europa, Grécia, Itália e Espanha, todos países que retrocederam na sua localização na divisão internacional de trabalho, foram tutelados em diferentes graus pela Troika, depois de décadas de governos de conciliação da socialdemocracia em alternância com governos burgueses clássicos.

O papel das direções e a correlação de forças

A argumentação de Maringoni sempre se baseia no terreno do possibilismo, ou seja, eram os governos possíveis dentro de certa conjuntura limitada por determinada correlação de forças e certo nível da luta de classes. Mas aí esquece o papel subjetivo dos partidos e das direções políticas.

As correlações de forças e o nível da luta de classes não caem do céu. São fruto da atuação de sujeitos sociais e políticos reais, que estão envolvidos em relações concretas e determinadas, mas que também, em diferentes graus e aspectos, influenciam os rumos das situações.

Portanto, ao afirmar que “A negação da conciliação de classes só pode existir quando os setores populares tiverem força política, econômica e militar em um avançado processo de transformação social”, poderíamos indagar justamente o porquê de não haver um avançado processo de transformação social. Seria culpa das massas populares, do povo, dos trabalhadores? As direções, organizações e partidos de esquerda fazem todo o possível para romper com o capitalismo, mas as massas não apoiam? Não é assim.

Onde Maringoni vê medidas possíveis de serem aplicadas, ocorreram, na verdade, decisões políticas de escolher um lado, o lado da burguesia, reforçando o papel desses governos em ser trava política para o desenvolvimento da luta de classes.

Por exemplo, em vários países da América Latina, existiu um processo de ebulição das lutas populares. Chegaram a derrubar governos de direita. O reflexo distorcido dessas lutas foi capitalizado para vitórias eleitorais de governos de conciliação de classes. Era ou não um momento para romper com o capitalismo? Era. Mas foi feito o inverso, garantindo os negócios capitalistas, aprofundando a exploração, estabilizando a situação política e depois propiciando ascensão de uma nova ultradireita.

Claro que não tem como esperar que um governo de conciliação de classes rompa com a conciliação. Allende ou os governos da socialdemocracia só poderiam fazer o que fizeram mesmo. Mas fizeram isso justamente por terem escolhido se aliar a burguesia. Não foi determinado por correlação de forças ou foi imposto pela realidade. Não foi culpa das massas, mas das traições e vacilações da própria direção desses processos políticos.

Talvez a história tivesse sido outra se Allende não tivesse escolhido se aliar com a burguesia. Talvez tivesse aplicado uma política que desenvolvesse a revolução operária, não tivesse posto Pinochet no ministério, o que poderia impedir ou mesmo derrotar o golpe. Se a socialdemocracia tivesse uma política de independência de classe, de organizar os trabalhadores e não governar em favor da burguesia, talvez tivéssemos vistos processos revolucionários vitoriosos dirigidos por grandes partidos operários no coração da Europa.

O problema fundamental é esta lógica circular maldita: a correlação de forças é desfavorável, então se faz aliança com a burguesia. E ao fazer esta aliança, a correlação de forças só piora. A questão, portanto, é justamente como a correlação de forças mudaria se a esquerda só faz conciliação de classes? Ou seja, mesmo que a correlação de forças seja desfavorável, tampouco o caminho para melhorar isso passa por buscar o atalho da aliança com a burguesia.

Vitórias e derrotas na luta dos trabalhadores

Quando se fala de vitória dos governos de conciliação de classes refere-se às vitórias eleitorais. Estas só se dão porque se apoiam em uma grande expectativa dos trabalhadores o detalhe é que não há correlação de forças melhor que o apoio de milhões). Apenas nesse sentido, significam uma vitória, ainda que distorcida, das massas. Entretanto também temos que lembrar que as eleições são um reflexo da luta de classes, mas muito distorcido, por isso, não pode ser o único critério ao medir a correlação de forças.

Mas o problema é o que esses governos fazem com essa expectativa dos trabalhadores. Sempre leva a uma experiência de frustração e preparam novas derrotas para os trabalhadores, por serem governos que fortalecem a burguesia pelos acordos construídos com esta. E no fim, os governos sequer se sustentam. São derrotados, uma hora ou outra, e nada muda. Vivem ainda de alternância com governos burgueses normais ou de ultradireita. Até as conquistas sociais, cada vez mais raras e quando tem, são todas muito breves e terminam sendo desmanteladas. Em alguns casos pelos próprios governos de conciliação, basta vermos como o Estado de Bem-Estar Social na Europa foi se desmontando.

Então, se as conquistas para os trabalhadores não são garantidas, se os governos são derrotados, se não ajuda a mudar a correlação de forças a favor dos trabalhadores, pra que serve um governo de conciliação de classes? Apenas para ajudar os inimigos dos trabalhadores.

O que Maringoni nos apresenta como vitória possível é, na verdade, um caminho da derrota e um entrave, pois enquanto o povo acreditar nesse tipo de alternativa a revolução não avança. Mas claro que há uma alternativa a isso. Esta passa não por apoiar a conciliação, nem mesmo pela ilusão de disputá-la por dentro, mas sim por construir um programa de independência de classe e socialista para, mesmo em uma situação desfavorável, plantar a semente da vitória do proletariado.

É possível um governo de ruptura com o capitalismo?

Maringoni está correto quando diz que não “existe a possibilidade de um governo de esquerda sob o capitalismo não se conciliar com as classes dominantes”, mas isso não quer dizer que não seja possível um governo que rompa com o capitalismo.

Claro que todos os governos que não rompam com o capitalismo vão conciliar com o capital em algum grau. Mas disso decorreria que é impossível um governo romper com o capitalismo? Claro que não. Na verdade, isso nos obriga não a conciliar, mas sim a romper com o capitalismo. Eis a questão!

Quando Maringoni afirma que “Nenhuma força política, por mais radical que fosse, faria diferente”, tenta transformar uma opção política em uma lei objetiva da realidade, em uma regra da sociedade atual.

Se tal regra fosse correta, ou seja, não importa quão radical é um governo, ele sempre será de conciliação, então seria impossível destruir o capitalismo. Afinal, não importa a medida que o governo tome, sempre estará a serviço do capitalismo. Mas isso não é assim e nosso próprio interlocutor nos explica pela negativa o porquê.

A explicação que nos apresenta na verdade é a chave para entendermos seu pensamento:

Detalhemos: qual o maior interesse da burguesia em qualquer país? Manter a propriedade privada dos meios de produção. Se um governo de esquerda, mesmo que muito radical, aceitar essa questão basilar, a conciliação está dada. O que se pode debater é a radicalidade dessa conciliação.”

A questão deve ser posta exatamente ao contrário: por que é que esta esquerda cisma em manter a propriedade privada dos meios de produção? Os governos de esquerda, socialistas, revolucionários, se quiserem ser dignos desse nome, devem justamente romper com a manutenção da propriedade privada para garantir os interesses dos trabalhadores. Devem fazer um governo que defenda uma nova relação social, que implemente a ruptura com o capital.

É possível romper com o capital, expropriar os grandes capitalistas, socializar os grandes meios de produção e vencer?

Claro que não tem como fazer isso com receio de irmos para um processo revolucionário ou com medo de ir para o socialismo. Este é o problema de fato: achar que é possível garantir as reivindicações dos trabalhadores em acordo com a burguesia, tentando evitar o acirramento da luta de classes, e em aliança com os ricos e respeitando as regras do jogo. Isso de fato é impossível.

Mas estamos falando de outra coisa. De construir um governo com independência de classe, operário e popular, com um programa de ruptura com o capitalismo, que tenha como estratégia desenvolver um processo revolucionário inclusive para mudar as regras do jogo. Que de fato tire o poder político, econômico e militar da burguesia, não apenas controle o governo. Estamos falando de desenvolver o poder operário, com conselhos, com suas organizações de massa, assembleias populares que tenham o poder de fato.

Maringoni deve responder: Isso é impossível? Então não há condições objetivas para o socialismo?

Se há condições objetivas para o socialismo é preciso que se questione por que não lutar por governo socialistas? Se não há condições para o socialismo, não serão com governos em aliança com a burguesia que se construirão tais condições.

Os governos do PT e a alternativa socialista

O fato verdadeiro de que “Todos os governos de centro-esquerda do continente sul americano surgidos desde 1998, em maior ou menor grau, foram governos de conciliação de classes” não significa dizer que este era o único caminho, que não havia alternativa.

Ao reafirmar que o lulismo fez sim conciliação de classes, Maringoni conclui que “o maior problema dos governos petistas é outro. Foram gestões sem projeto claro, com definições improvisadas e tateantes, com políticas monetárias contracionistas, com algum ativismo estatal nos anos gloriosos (2004-2010), com uma virada austericida a partir de 2014.”

O problema do PT não é falta de projeto, mas a natureza de classe do seu projeto. Implementou uma política econômica neoliberal, que enriqueceu e fortaleceu todos os setores da burguesia brasileira e também a entrega do país ao imperialismo. Junto com isso, implementou políticas sociais tímidas se aproveitando do crescimento econômico mundial, com o boom das comoditties.

Apelar mais uma vez para o suposto problema da correlação de forças é abstrair a realidade, é esquecer que, quando milhões foram às ruas exigir mais direitos sociais como em junho de 2013, a resposta do PT não foi um giro à esquerda, mas à direita. E sua experiência de conciliação com a burguesia foi interrompida porque aquela rompeu momentaneamente com o governo Dilma, não o contrário.

Tanto é que, hoje, há a possibilidade desse redesenho com uma candidatura Lula englobando grande parte da burguesia mundial em uma suposta salvação nacional contra aquela ultradireita que ficou anos abrigada e se alimentando justamente dos governos petistas. Até quando os trabalhadores devem ficar refém da conciliação de classes e a esquerda reformista correndo atrás do próprio rabo sempre se perdendo em nos corredores do poder?

É possível e necessário construirmos uma candidatura de independência de classe com um programa de ruptura com o capitalismo. Convidamos Maringoni para discutir a viabilidade dessa alternativa.