Castigo, de Jean Baptiste Debret
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU
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Um abismo de “raça e classe”: Capitalismo, racismo e desigualdades sociais

Dentre os dados divulgados, os mais estarrecedores, como sempre, se referem à violência, em particular os homicídios. Em primeiro lugar, o número de assassinatos no Brasil é inadmissível sob qualquer ponto de vista. Em 2020, nada menos que 49.868 pessoas (45.915 homens e 3.833 mulheres) tiveram suas vidas abreviadas de forma prematura e violenta. Um índice 9,6% maior do que 2019; refletindo, evidentemente, os estragos feitos pelo governo Bolsonaro.

Contudo, enquanto a taxa nacional foi de 23,6 mortes para cada 100 mil habitantes, a detectada entre os brancos foi praticamente a metade disto, 11,5/100 mil. Já a dos negros (“soma” de pretos e pardos), foi o triplo da dos brancos: 32,4. Com um detalhe que têm a ver com o tema do tom de pele, que discutimos no artigo anterior: foram assassinados mais “pardos” (34,1/100 mil) do que pretos (32,2/100 mil).

Se isto não bastasse, a maior taxa registrada (51,8 mortes para cada 100 mil habitantes) se deu dentre jovens (de todas as etnias) de 15 a 29 anos, confirmando algo que sempre dizemos: o capitalismo rouba a perspectiva de um futuro para a juventude. E nesta faixa etária, o abismo, por dentro do qual já corre um rio de sangue é ainda mais amplo, inclusive entre as mulheres, com as seguintes taxas: 41,6/100 mil (homens brancos), 130,1 (homens negros, “soma”), 3,8 (mulheres brancas) e 7,7 (mulheres negras, “soma”).

Números como estes nos levam a dizer que, se pudéssemos resumir os dados apresentados pelo IBGE em uma frase, poderíamos afirmar que, por trás de todos eles, está uma mesma ideologia: neste sistema, ser não-branco é ser alguém, no mínimo, “menos humano”; alguém “inferior” em termos sociais, morais, culturais, intelectuais, políticos etc. Inclusive, no que se refere ao mais básico dos direitos: o de viver.

Uma ideologia que não se limita a alimentar preconceitos ou impulsionar discursos de ódio; já que ela ganha concretude material na vida de milhões de brasileiros, na medida em que (há séculos) tem servido para “naturalizar” a ideia de que negros e negras podem (ou devem) viver sob condições subumanas ou serem expostos a níveis e formas literalmente desumanas de violência.

Algo que, em primeiro lugar, e ao contrário do que muitos acreditam, está longe, muitíssimo longe, de expressar problemas de “mau-caratismo”, de “falta de educação”, “ignorância” ou qualquer outra coisa do gênero. Como também não é uma coisa “inerente” ao ser humano. É uma questão histórica, econômica, social e política, profundamente relacionada à lógica do capitalismo.

Racismo: alienação extrema a serviço da superexploração capitalista

Para discutirmos isto, vale resgatar, mesmo que brevemente, um importante conceito do marxismo: o de “alienação”. Em um sistema baseado no monopólio da propriedade privada por uma ridícula minoria da sociedade, a enorme maioria da população (aquela que trabalha e produz) é alienada (ou seja, literalmente “separada”) das riquezas e até mesmo dos meios necessários para a produção. Sejam as matérias primas e ferramentas; seja nossa própria força de trabalho, que é “vendida” para a classe proprietária.

Esse é um processo que atinge a totalidade da classe trabalhadora, independentemente de sua orientação sexual, identidade de gênero, raça-etnia, origem etc. Por isso mesmo, libertar os trabalhadores e trabalhadoras da exploração significa, pra começar, “desaliená-los” em relação aos meios de produção, recolocando em suas mãos, coletivamente, tudo que é necessário para que continuem fazendo o que sempre fizeram (ou seja, produzir), mas não só controlando o que é necessário para isto, mas também as riquezas que resultam de seu trabalho.

Isto implica, obrigatoriamente, numa revolução, na tomada do poder e na socialização dos meios de produção. Sabemos, muitíssimo bem, que esta perspectiva, hoje, já não faz parte do ideário e práticas de muitos setores de “esquerda”, apesar de continuarem carregando os termos “dos Trabalhadores”, “Socialismo” e “Comunista” nos nomes de suas organizações. Os reformistas e a conciliação de classes são velhos conhecidos do marxismo revolucionário.

O que, contudo, é inadmissível é que estes mesmos setores defendam que seja possível libertar a humanidade da miséria de braços dados com a “classe proprietária” ou sem se apropriar dos meios de produção que eles monopolizam. Como, também, que preguem, cada vez com mais insistência, que seja possível varrer as ideologias racistas, machistas, LGBTIfóbicas, xenófobas etc. “por dentro” do capitalismo e não em confronto aberto com o sistema.

Afinal, como lembram Marx e Engels, em “A ideologia alemã”, a mesma burguesia que detém os meios de produção também produz as ideologias e práticas que favorecem seus interesses.

“Os indivíduos que formam a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência (…); logo, enquanto dominam como classe e enquanto determinam todo âmbito de uma época histórica (…), também dominam como pensadores, como produtores de ideias, que regulem a produção e a distribuição de ideias do seu tempo; e que suas ideias sejam as ideias dominantes da época” (p. 48), escreveram os dirigentes revolucionários, em1845.

Uma constatação que é fundamental para entender porque a burguesia cria das ideologias discriminatórias, como elas se propagam pela sociedade e, ainda, cumprem um importante papel no processo de alienação, na medida em que a maioria da população também se aliena do mundo ao seu redor e do conhecimento, não entendendo como as coisas funcionam.

Da mesma forma, é através da alienação que a classe dominante faz com que a maioria da população se sinta “estranhada” ou “separada” em relação aos demais seres humanos (não os vendo como “iguais” ou, no mínimo, “distantes” daquilo que afeta a cada um de nós) e até mesmo de sua própria humanidade (desconhecendo seu potencial, capacidades e até mesmo “identidade”), coisas que estão na base das ideologias opressivas.

Contudo, se é verdade que a alienação se transformou em um mecanismo central para a sociedade capitalista, ainda em suas origens, antes que o trabalho assalariado se transformasse na base da economia, a burguesia (e seus então aliados, a nobreza e o clero) se utilizou daquilo que Marx chamou de uma forma “especial” de alienação, a escravidão, que o revolucionário alemão chamou de “reificação”, já que foi baseada na tentativa de transformar milhões de seres humanos em seres semelhantes a “coisas”, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas.

Esta é uma das razões, inclusive, de nossa insistência em resgatar Malcolm X quando ele afirmava que “não há capitalismo sem racismo”. Assim como não houve qualquer forma de escravidão anterior que possa ser comparada àquela que surgiu ainda nas origens do capitalismo, em sua fase Mercantilista, nos anos 1500; foi somente sob o capitalismo que também surgiram as bases das ideologias racistas que persistem até hoje, principalmente ao terem adquirido o valor de “ciência” na segunda metade dos anos 1800, depois da II Revolução Industrial e quando o capitalismo entrava em sua fase imperialista.

Foi neste processo que a burguesia propagou ideologias que “justificam” o porquê não-brancos podem ser tratados como seres “mais descartáveis”. No passado, isto se traduziu em utilizar negros e negras como “objetos”, “ferramentas” ou até “moedas de troca” ou, ainda, promover o genocídio e a subjugação dos povos originários das Américas, da Ásia, da África e demais continentes, rotulando-os como “selvagens” ou “bárbaros”.

Hoje, como comprovam os dados do IBGE, e apesar de todas nossas lutas e constante rebeldia, ao não poderem simplesmente (ou “legal e oficialmente”) nos tratar como “coisas” ou “animais”, a classe dominante continua incentivando ideias e práticas que cujos objetivos são muito similares àquele dispensado na escravidão: submeter milhões a níveis de exploração e violência ainda piores dos que afetam outras parcelas da humanidade e da classe trabalhadora.

Milhões que podem receber salários aviltantes, viver sob condições degradantes ou, ainda, serem jogados ao desemprego e ao subemprego, compondo um gigantesco exército de mão de obra de reserva, obrigado a aceitar qualquer tipo de trabalho e pagamento; o que, diga-se de passagem, contribui para rebaixar os rendimentos de toda a população.

Da mesma forma, ao incentivar que sejamos vistos como “menos humanos”, alimenta as razões para que os nossos sejam mais suscetíveis à violência (inclusive a policial) ou exterminados, sem dó nem piedade, “como moscas”. Leia, também, o artigo “Coisificação, chibata e tortura: as marcas da História nas costas de um jovem negro” (https://www.pstu.org.br/coisificacao-chibata-e-tortura-as-marcas-da-historia-nas-costas-de-um-jovem-negro/), publicado em 2019

Algo particularmente grave no que se refere às mulheres negras, como comprovou outra pesquisa recente (ou também pode ser afirmado em relação a travestis e transexuais, apesar da invisibilização destes dados).

Segundo o “Monitor da Violência”, publicado em 2020 (cujos dados são bastante parciais, já que mais de um terço dos estados não registra a raça das mulheres vítimas de violência), cerca de 75% das mulheres assassinadas no primeiro semestre daquele ano, no Brasil, eram negras.

No ano anterior, uma pesquisa realizada pela ONG Criola (“Mulheres negras e justiça reprodutiva”) detectou que 2.833 estupros registrados apenas no estado do Rio de Janeiro, 1.609 (56,79%) vitimaram mulheres negras e 851 (30,04%), mulheres brancas. Com um importante “detalhe”, em 353 casos não foi informada a raça/cor da vítima.

Para combater o racismo é preciso reunificar os “de baixo”

Como também discutimos no artigo anterior, as opressões baseadas na raça-etnia, na identidade de gênero, na orientação sexual, na origem regional etc. ainda cumprem outro papel fundamental para o capitalismo: contribuem para criar um abismo entre os “de baixo”, atiçando antagonismos motivados pelo racismo, o machismo, a LGBTIfobia e a xenofobia.

Um antagonismo que Marx considerava fundamental para a manutenção da ordem capitalista e do poder da burguesia, como ele escreveu numa carta escrita, em abril de 1870, para Sigfrid Meyer e August Vogt, discutindo a forma como a burguesia britânica se apropriava da opressão da Irlanda pela Inglaterra, particularmente através de semeá-la no proletariado de ambos países.

Como escreveu Marx, a assimilação da ideologia pregada pela classe dominante fazia com que o trabalhador inglês odiasse o irlandês, visto “como um competidor que rebaixa o seu padrão de vida”, e, ao mesmo tempo, vendo a si próprio como “um membro da nação dominante”, e assim, transformando-se “num instrumento dos aristocratas e capitalistas do seu país”, o que, no final das contas, acabava “fortalecendo a dominação sobre ele próprio”.

Um processo que Marx, ainda, identificava como uma “atitude muito parecida a dos ‘brancos pobres’ em relação aos negros nos antigos estados escravistas dos EUA”. Um antagonismo que, de forma alguma, é “natural” ao ser humano ou “típico” do conservadorismo da classe operária, como muitos defendem até hoje, e muito menos é alimentado de forma inconsciente pela burguesia.

“Este antagonismo é mantido vivo artificialmente, e é intensificado pela imprensa, o púlpito, os jornais, em resumo por todos os meios à disposição das classes dominantes. Este antagonismo é o segredo da impotência da classe trabalhadora inglesa, apesar de toda sua organização. É o segredo pelo qual a classe capitalista mantém seu poder. E essa classe é plenamente consciente disso”, concluiu Marx em sua carta.

Uma posição que, inclusive, também serve para que seja aberto, aqui, um parêntese, para que lembremos o quanto há de falsidade nos argumentos daqueles que, há tempos, tentam afirmar que o Marxismo não tem nada a ver com a luta antirracista.

E não só porque este é um dentre os muitos escritos em que Marx discutiu o racismo, mas também porque, não por coincidência, ele ecoa ideias de inquestionáveis líderes negros que, mesmo não se vinculando ao marxismo, teceram comentários muito parecidos, como o líder abolicionista negro Frederick Douglass (1818-1895), em um artigo publicado em 1866; ou seja, apenas um ano após o fim da Guerra de Civil, que havia resultado na libertação dos escravizados.

Fredderick Douglas

“A hostilidade entre os brancos e os negros do Sul é facilmente explicada. Tem a sua raiz e seiva na relação de escravidão, e foi incitada por ambos os lados pela astúcia dos senhores dos escravos. Esses senhores asseguraram seu domínio tanto sobre os pobres brancos como sobre os negros, instaurando a inimizade entre eles. Dividiram ambos para conquistar cada um deles”, escreveu Douglass, que nasceu escravo (e “mestiço”), fugindo para a liberdade aos 20 anos.

Dois homens completamente diferentes em termos de raça, origens e, inclusive, perspectivas ideológicas e políticas; separados por milhares de quilômetros, mas que compartilhavam algo fundamental: buscar saídas para que a humanidade pudesse ser livre e viver em plenitude. Toda ela, branca e não-branca.

E, por isso, diferenças à parte, não é um acaso que, vivendo sob o mesmo capitalismo, tenham chego a algumas conclusões semelhantes. Inclusive no que se refere à necessidade reunificar aqueles e aquelas que a burguesia havia dividido para impor seu domínio.

Douglass, que também se colocou ao lado da luta dos irlandeses e era um defensor veemente dos direitos das mulheres, era categórico na defesa de que o combate ao racismo era parte fundamental da luta pelo futuro de toda humanidade.

“A felicidade do homem branco não pode ser comprada com a miséria do homem negro (…). É evidente que o branco e o negro ‘devem cair ou florescer juntos’. À luz desta grande verdade, leis devem ser promulgadas, e instituições estabelecidas – todas as distinções, baseadas na cor da pela, precisam ser revogadas, repudiadas, e abolidas para sempre”, afirmou o líder negro em um discurso proferido em 1849.

Uma fala que lembra muito um trecho de “O Capital” (1867), de Karl Marx: “o trabalhador de pele branca não pode ser emancipado enquanto o de pele negra é estigmatizado”, ou seja, discriminado.

Numa sociedade de classes, nunca haverá igualdade, liberdade ou justiça

Mas, por mais que respeitemos ativistas como Douglass, suas lutas, trajetórias e legados é preciso apontar uma importante diferença que nos faz defender, veementemente, que os objetivos do líder negro norte-americano, assim como de tantos outros ativistas valoroso lutadores antirracistas nos dias de hoje, só poderão ser alcançados como parte da luta de classes.

Não é um acaso que Marx localize este debate dentro de um projeto global para a sociedade, sintetizado em “O Capital”, e através de um método de análise e atuação (o materialismo histórico), a serviço de uma perspectiva revolucionária, que passa pela construção dos instrumentos necessários para tal, a começar pela I Internacional Comunista, que ele recém havia fundado.

Foi isto que permitiu, por exemplo, que seus ensinamentos, quando não deturpados, distorcidos e traídos por reformistas, stalinistas e correntes afins, ecoassem fortes, por exemplo, no principal processo revolucionário da História e, a partir daí, mundo afora, como atestam as “Teses sobre a questão negra”, votadas no Quarto Congresso da Internacional Comunista, em novembro de 1922.

“É com grande alegria que a Internacional Comunista (IC) vê os operários negros explorados resistirem aos ataques dos exploradores, pois o inimigo da raça negra é também o inimigo dos trabalhadores brancos. Este inimigo é o capitalismo, o imperialismo. E, por isso mesmo, “a IC, que não é somente uma organização dos operários brancos da Europa e da América, mas também dos povos de cor oprimidos de todo o mundo – considera como seu dever encorajar e ajudar a organização internacional do povo negro na luta contra o inimigo comum”, diz um dos trechos da tese aprovada ainda no calor da Revolução Soviética.

Os números revelados pelo IBGE, mas também episódios como o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, e o aumento de ataques racistas mundo afora, acompanhado pelo crescimento de organizações que defendem a supremacia branca, são exemplares da atualidade e urgência da necessidade de incentivarmos, cada vez mais, as organizações e lutas do povo negro; vinculando-as, ainda mais, com as dos trabalhadores e trabalhadoras de todas etnias, no enfrentamento direito e independente contra o capitalismo.