Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Quando cheguei à faculdade para dar aula, ontem à noite, fiquei sabendo da lamentável história sobre o garoto de 17 anos (chamado de E., pela imprensa) que, pego roubando barras de chocolate, foi preso num quartinho, humilhado e brutalmente torturado no supermercado Ricoy, na Zona Sul de São Paulo,

Por uma daquelas coincidências da vida, a disciplina era História da África e o tema era a relação entre tráfico negreiro e as ideologias racistas criadas para justificar a escravidão, transformada em peça-chave para o projeto de acúmulo de capital pela burguesia e o desenvolvimento do capitalismo na sua primeira etapa, o chamado Mercantilismo.

Não teria como o assunto não vir à tona em sala de aula. E o texto que segue reflete um pouco desta conversa inicial que tive com meus alunos, ampliada pela revolta, indignação e profundo ódio que se acumularam em mim depois que, chegando em casa, me vi obrigado a assistir as cenas e ler as reportagens sobre mais este episódio de pura barbárie racista.

Ver os poucos segundos registrados no vídeo é de embrulhar o estômago, principalmente por sabermos que aquilo se estendeu por 40 minutos. Uma explosão violenta e cruel de racismo que teve como palco um “mercadinho” num dos bairros mais empobrecidos da periferia de São Paulo (a Vila Joaniza, na Cidade Ademar), mas reflete toda perversidade de um sistema que surgiu assentado na criminosa prática de mercantilizar gente.

Estalos de chicote, desespero e choro abafado que ecoam séculos de pelourinhos e chibatas. Cenas de tortura registradas pelos próprios carrascos com um prazer sádico alimentado pela quase total garantia de impunidade em um país que, da mesma forma que nunca reparou os crimes da escravidão, jamais prestou contas com aqueles que, nas décadas recentes, transformaram a tortura em prática corriqueira.

Desumanização: a essência do racismo
Na aula, a conversa veio à tona quando comecei a discutir como, nos anos 1500, as bases da ideologia racista foram criadas como justificativa para as necessidades econômicas da ascendente burguesia, vinculadas não só ao uso de mão-de-obra escrava na exploração das colônias, mas, também, do tráfico negreiro, transformado, ele próprio, num dos negócios mais rentáveis da história da humanidade.

Um projeto de escravidão completamente distinto de qualquer outro (seja na antiguidade grego-romana ou dentre indígenas americanos, asiáticos ou, inclusive, africanos) porque partia de um principio que se transformou na essência do tipo de racismo que se volta particularmente contra os descendentes da Diáspora negra: a permanente tentativa de desumanização, coisificação, animalização etc.

Ou, como dizia Marx, da “reificação”; a forma mais radical de alienação (no sentido de “separação”) do ser humano em relação a sua própria humanidade e que se baseia na tentativa de “transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas”, como foi definido pelo Dicionário do Pensamento Marxista (Tom Bottomore, 2001, p. 314)

Uma tentativa feita sob medida para satisfazer o projeto burguês. Em “Capitalismo e Escravidão”, o historiador marxista Eric Williams lembra que a escolha de negros e negras para esse projeto não se deu, a princípio, em função da cor de nossas peles. E, de fato, “a razão era econômica, não racial”. Pros gananciosos olhos europeus, a África era uma alternativa cheia de “vantagens” como, por exemplo, a proximidade geográfica, a população vastíssima e, inclusive, a existência de sociedades que tinham excelente domínio da metalurgia, centro do projeto financeiro mercantilista.

Assim, para a burguesia, a África Negra surgiu como a solução “melhor e mais barata” para fornecer milhões e milhões de homens e mulheres que pudessem ser “transformados” simultaneamente em moeda (colocados num circuito de compra, venda, aluguel, empréstimos etc.), ferramenta (cujo “desgaste” pouco importava, contanto que produzisse ao máximo), e objeto (podendo ser usados tanto para o trabalho quanto para prazeres sádicos, abusos sexuais, entretenimento ou o que mais se passasse pela cabeça dos sinhozinhos).

Homens, mulheres, crianças, jovens ou idosos que poderiam ser tratados como qualquer coisa. Menos como gente. E, por isso mesmo, como também foi destacado por Eric Williams, as ideologias racistas e os preconceitos associados a ela começaram a ser criados em torno da desqualificação de tudo que aproximasse negros e negras do resto da humanidade, em base à construção de estereótipos sobre coisas como o “aspecto físico dos homens, seu cabelo, sua cor e dentição, suas características ‘subumanas’ (…)” etc.

É por isso que, até hoje, tudo em nós é “menos” ou “não” humano. Nosso cabelo é de “bom-bril”. Nosso nariz, “de batata”. Nossas mulheres são potrancas. Nossos homens, jegues. E nossas costas são lombos. Carne revestida de uma pele preta que, a partir de então, é vista como sinal de que o ser a habita não é digno de nenhum tipo de tratamento humano.

E, até mesmo pelo momento em que vivemos, é preciso lembrar que este foi um ensinamento imposto pela Igreja Cristã.  Algo que não pode ser desconsiderado quando nos vemos ameaçados por um governo cujo fundamentalismo religioso é herdeiro direto dos piores inquisidores medievais e dos mesmos “doutores” que tiveram a “grande sacada” de usar um versículo bíblico para, através dos púlpitos e imposição doutrinária, convencerem o povo de que negros e negras eram todos “Canitas”, ou seja, descendentes de Can, o filho de Noé e, portanto, destituídos daquilo que, na concepção cristã, faz de alguém um ser humano: uma alma.

Pra quem não conhece a história que faz parte da mitologia judaico-cristã, segundo um versículo do Gênesis, Can teria sido amaldiçoado por Deus depois de ter ridicularizado seu pai, ao vê-lo embriagado e nu. Para que fosse reconhecido, Can teria recebido uma “marca”.  No século XVI, a Igreja divulgou a ideia de que esta marca seria a pele negra dos povos africanos que, consequentemente, teriam o mesmo status das “coisas e animais” (igualmente desalmados).

No supermercado, representantes de um poder minúsculo e ilusório quando comparado com o daqueles que de fato se beneficiam e lucram cotidianamente com o racismo, os dois guardas trataram o garoto como um animal cuja vida não vale nada ou muitíssimo menos que o chocolate que originou a apreensão, algo evidente nos gritos que podem ser ouvidos entre uma chicotada e outra. “Vai tomar mais uma. Nós vamos ter que te matar, moleque. Vai voltar? Você é corajoso (…) Caso falar algo para alguém, vou te matar”

A Redenção de Can, 1895. De Modesto Brocos, no Museu Nacional de Belas Artes. A pintura é a ilustração da ideologia racista e religiosa da época e da “teoria do embranquecimento”. À esquerda, a avó agradece a Deus pelo neto de pele clara, livre portanto da “marca de Can”.

A naturalização da violência
Repito, aqui, a mesma pergunta que fiz aos meus alunos depois de contar esta história: “Os seguranças teriam feito o que fizeram se o garoto que furtou chocolates fosse branco?”. Não, com certeza! A fúria sádica que eles demonstraram jamais seria “admissível” contra alguém visto como minimamente “igual” ou da mesma espécie.

Coisificação e animalização são portas de entrada para a naturalização e banalização da violência contra negros e negras. Algo, inclusive, que a Igreja (movida não pela fé do povo, mas por seus interesses econômicos e políticos com a colonização) também ajudou a justificar. E de uma forma particularmente hipócrita, ao tentar associar a submissão à violência com a “reconquista da alma” ou da graça divina perdida com Can.

Um dos maiores defensores desta ideia foi o famoso escritor e padre Antonio Vieira (1608 – 1697) para quem, “os negros foram escolhidos por Deus e feitos à semelhança de Cristo para salvar a humanidade através do sacrifício”. Ou seja, que a escravidão era “um estado de milagrosa felicidade, por meio do qual o africano podia se salvar do inferno”.

Uma tese estapafúrdia, mas muito perniciosa, que o padre desenvolveu com todas as letras em seu “Sermão 14”, pronunciado em 1633 aos escravos da Irmandade dos Pretos de um engenho: “Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado (…) porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão (…) Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isso se compõe a vossa imitação, que se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio”.

Em suma, para os poderosos da época, negros e negras não deveriam apenas ficar calados diante do sofrimento, das humilhações e da violência. Deveriam ser gratos. E se é verdade que, por maiores estragos que as ideologias provoquem, a negrada, cedo ou tarde, percebe que não nasceu pra sofrer e que, muito menos, merece apanhar de tudo e de todos; também é um fato que, país afora, corre solta uma persistente naturalização de que as coisas são assim mesmo. Que nossa carne não só é a mais barata do mercado, como também a “mais boa” de bater.

No decorrer dos séculos, essa ideia não poderia se sustentar apenas numa ideologia religiosa construída através de um versículo bíblico e, inevitavelmente, na medida em que as formas de ser e os interesses do capitalismo foram mudando, também foram sendo criadas novas justificavas para banalizar a violência contra negros e negras.

Na nossa história, uma das teorias que cumpre um papel fundamental para mascarar e, ao mesmo tempo, contribuir para que episódios como o do Ricoy se repitam é o mito da democracia racial, sintetizado Gilberto Freyre, particularmente em Casa Grande & Senzala (1933). Aqui, não cabe discutir os muitos aspectos do mito que, de forma ultra sintética, baseia-se na tentativa sistemática de mascarar  e negar a existência do racismo.

Mas, pra entender até onde pode se chegar para naturalizar cenas com a do Ricoy, basta lembrar que, no livro, Freyre faz um verdadeiro malabarismo intelectual, com distorções absurdas das ideias psicanalíticas que começavam a circular na época, para tentar nos convencer de como sua tese central (a quase inexistência de conflitos raciais) pode ser aplicada em um país em que negros e negras foram torturados diária e sistematicamente por quase 400 anos.

Afinal, como explicar os pelourinhos, se, nas palavras do autor, “a sociedade brasileira é de todas da América a que se construiu mais harmoniosamente quanto às relações raciais, dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural” (p. 91)? Como justificar os grilhões, gargalheiras, correntes, chibatas, membros cortados etc., se os  portugueses tratavam os escravos como “se fossem agregados ou pessoas da família”?

Incapaz de responder isto em base aos fatos históricos ou de forma minimamente lógica, Freyre (no melhor estilo de Bolsonaro e seus ministros) literalmente apelou, defendendo, como foi sintetizado por Elide Rugai num ensaio sobre o livro, que, no Brasil, as relações senhor/escravo foram marcadas pelo sadismo do primeiro e o masoquismo do segundo”.   

O sadismo estaria na raiz do “simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho”, enquanto o masoquismo dos oprimidos seria decorrente do “gosto pela dominação”. Afinal, “no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar ‘povo brasileiro’ ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático

Não tenho a menor dúvida de que Bolsonaro sequer chegou perto do livro de Freyre, mas não é preciso muito pra perceber o quanto o seu milicianismo machista e autoritário se assemelha às ideias do autor que, diga-se de passagem (e como prova das “voltas” da História) estavam completamente sintonizadas com as necessidades e perspectiva do repressivo, autoritário e conversador Estado Novo de Getúlio Vargas.

O problema, contudo, é que Bolsonaro é representante apenas daqueles que levem os delírios reacionários de Freyre aos extremos do conservadorismo. A ideia de que nascemos pra apanhar é de tal forma difundida que se manifesta até nas situações mais inusitadas.

Um exemplo que sempre recordo ocorreu em junho de 2015, quando o então técnico da seleção nacional, Dunga, em uma entrevista dada no Paraguai, praticamente citou Freyre para reclamar do tratamento que vinha recebendo da imprensa: “Tudo que fazia era de ruim. Então, eu até acho que sou afrodescendente, de tanto que apanhei e gosto de apanhar. Os caras olham e batem”.

Por mais absurda que seja a analogia saindo da boca de um sujeito como Dunga, o fato é que a negrada sabe muito bem o quando de verdade existe nela. Na perifa é assim… “os caras olham e batem…”. Não tem pergunta, “não tem ‘mas’ nem ‘porquê’”. É tapa na cara. É soco no estômago. É cano na boca.

E quanto surge a oportunidade… é Ricoy, é Candelária, é Carandiru, é Eldorado dos Carajás, é o boteco da quebrada, é Marielle, é a trans negra esfaqueada, é o mendigo queimado, é o garoto estrangulado no Extra, é Claudia arrastada como lixo por um camburão nas ruas do Rio. É mais um corpo estendido no chão e, de preferência, deixado em praça pública como exemplo.

Porque, pro racista (assim como o lgbtfóbico e o machista), não é apenas a surra ou a brutalidade do assassinato que importam. A intensidade da violência também fundamental. É preciso, pra além de destroçar o corpo, ferir a essência do ser e não deixar dúvidas sobre quem “manda”. Da mesma forma é preciso expor o massacre. Coisas que, diga-se de passagem, também são tão velhas quanto as ideologias racistas, com comprovam dois depoimentos de religiosos da época colonial.

Um deles, em 1758, defendia que “a primeira hospedagem que lhes fazem logo que comprados (…) é mandá-los açoitar rigorosamente, (…) incul­cando-lhes, que só eles nasceram para competentemente dominar escravos, e para serem por eles temidos e respeitados, (…) e para que desde o princípio se façam, e sejam bons”. Uma lição que ecoava a deixada pelo jesuita Jorge Benci, que, em 1700, quando se apresentava como defensor de castigos moderado, pregava: “Haja açoites, haja correntes e grilhões, tudo a seu tempo e com regra e moderação de vida e vereis como em breve tempo fica domada a rebeldia dos servos; porque as prisões e acoites (…) lhes abatem o orgulho e quebram os brios”

Pelourinho, de Jean-Baptiste Debret

A chibata como controle social
Como já foi discutido amplamente por gente como Clóvis Moura e Frantz Fanon, a violência contra negros e negras tem que ser, sempre, “espetacular”. No pelourinho. No meio da praça. É sempre um ato de “terror” na mais pura acepção da palavra: tem como objetivo causar medo constante e generalizado através do emprego sistemático da violência (física e/ou psicológica).

E numa história como a nossa, essa prática sempre foi facilitada pelo Estado, ora recoberta por uma legalidade criminosa; ora abençoada pela cumplicidade e impunidade garantidas pelos próprios governantes e suas instituições. Como lembrei ontem aos meus alunos, vivemos num país onde, durante quase quatro séculos, a tortura, o estupro e a pena de morte não só eram “legais” como também recomendáveis no que se refere à gigantesca maioria da população.

Como também não há como ouvir o estalar dos fios elétricos na costa do garoto da Vila Joaniza e não sentir os ecos das chibatas que (até que o Almirante Negro e seus marinheiros se rebelassem) comiam, literalmente, o couro de nosso povo. Em novembro de 1910, o marinheiro negro Marcelino Rodrigues Menezes, o “Baiano”, foi condenado a receber 250 chibatadas por, supostamente, ter levado duas garrafas de cachaça para dentro do navio. Passados 109, um punhado de chocolate serviu como justificativa para dezenas de mais açoites.

Em ambos os casos, estamos diante de um tipo especial de violência. Algo que vai além da típica violência do Estado capitalista centrada na defesa da propriedade privada e da manutenção do monopólio da burguesia no poder. A violência racista é destinada ao controle social particularmente diante da constante resistência e da luta incessante que, desde a época dos quilombos, têm caracterizado a história de negros e negras no Brasil.

E uma violência “preventiva” (e, por isso mesmo, não justificada) que também busca destruir a identidade, a dignidade e os vínculos sociais como forma de acirrar tanto a opressão quanto a exploração.

Uma necessidade tão grande que, no caso do Ricoy, foi o que, no fim das contas, permitiu que o caso viesse a público. Afinal, dentre as muitas coisas absurdas nesta história está o fato de que o crime ocorreu há um mês. E como circulou em todos os jornais televisivos, o responsável pelo rapaz não tinha feito a denúncia até agora exatamente por temer represália. Como também, é evidente que o vazamento do vídeo foi obra dos próprios carrascos ou gente próxima deles, muito provavelmente motivados não só pela sensação de impunidade como também pela vontade de mostrar o que haviam feito.

Crianças no navio negreiro

Voltar os canhões contra a chibata: derrotar o capitalismo
Seria difícil acreditar (se não houvesse tantos fatos e exemplos que demonstram o contrário) que alguém possa ver as cenas do jovem sendo brutalmente chicoteado, nu, com as mãos amarradas e a boca amordaçada, sem  sentir a menor empatia pelo rapaz ou se revoltar contra o mundo que o jogou nas ruas quando tinha apenas 12 anos, colocando-o numa situação de tamanha vulnerabilidade que até mesmo uma barra de chocolate pode virar questão de vida ou morte.

Mas, infelizmente, até mesmo por tudo discutido acima, sabemos que as coisas não são assim. E, antes de acabar, acho que não dá pra deixar em aberto a impressão de que o que ocorreu no Ricoy é mais uma expressão exclusiva da atual conjuntura e uma decorrência direta da Era Bolsonaro. Aqui, como em relação a tantos outros aspectos nefastos de nossa realidade atual, não dá pra a aplicar a apocalíptica e limitadíssima lógica do “a.B. / d.B.”.

É evidente que a chegada de Bolsonaro ao poder e suas sistemáticas, furiosas e nojentas manifestações de racismo, machismo, lgbtfobia, xenofobia, etnocentrismo, fundamentalismo e tudo do que há de mais opressivo e desumano têm servido como combustível para elevar aos extremos todas e quaisquer formas opressão e violência.

Também é óbvio que canalhas como os do Ricoy (proprietários incluso) são cotidianamente estimulados pelo caráter lúmpen-miliciano de um governo onde as pessoas se cumprimentam fazendo sinais de porte de arma e atuam constantemente como uma verdadeira quadrilha que vê, com cinismo deslavado, sua relação com o Estado como garantia de impunidade.

Tudo isto é um fato. Mas, não é à toa que temos que voltar aos anos 1500 pra entender a profundidade e gravidade de episódios como estes. O mergulho na História tem uma única razão: a constatação de que as correntes, chibatas e mordaças que caracterizam as práticas racistas desde a escravidão confundem-se com as raízes de um sistema, de um modo de conceber o mundo: o capitalismo.

“Não há capitalismo sem racismo” não é um mantra inspirado em Malcolm X. É o ponto de partida para que se entenda que qualquer um que governe sem se enfrentar com este sistema estará mentindo se disser que se enfrenta com o racismo ou tem um projeto para, de fato, por fim à violência racial.

Bolsonaro e seu governo são particularmente odiosos e perigosos porque dizem abertamente que não querem fazer o mínimo esforço pra mudar esta história. Pelo contrário. São explícitos na defesa de que a opressão tem que ser ainda mais radical. E sabemos que, hoje, não estão sozinhos nisto. São parte de uma extrema direita mundial que cuja podridão é típica de momentos de profunda crise econômica, como o atual. Gente, de Trump a seus similares na Europa ou no resto das Américas, disposta a usar da opressão como mecanismo cotidiano para o aumento da exploração e tentativa de manutenção das taxas de lucro.

Contudo, se quisermos realmente construir um projeto de sociedade em que cenas como a da Cidade Ademar não se repitam, não podemos vender a ilusão de que “antes era TOTALMENTE diferente”. Algo que, inclusive, os dados da realidade não permitem afirmar. E basta citar uma fonte como exemplo, o Atlas da Violência/2019, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Analisando os índices de homicídios entre 2007 e 2017 (ou seja, de meados do segundo mandato de Lula até o vice de Dilma, Michel Temer, assumir a presidência), o Atlas constatou que, na década pesquisada, em termos globais, houve um significativo aumento de cerca de 24% nas taxas de homicídios, mas, combinados com o fator racial, os números demonstram que a violência continuam tendo cor. E cada vez mais.

Segundo o levantamento, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros (definidos como a soma de indivíduos pretos ou pardos, segundo a classificação do IBGE), o que significa que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não-negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Resumindo, em 2017, para cada indivíduo não-negro que foi assassinado, aproximadamente 2,7 afrodescendentes foram mortos.

Na década em questão, os índices são ainda mais assustadores. Entre 2007 a 2017, a taxa de negros mortos violentamente cresceu 33,1%, já a de não-negros apresentou um pequeno crescimento de 3,3%.

Analisando especificamente o caso das mulheres, o caráter epidêmico da violência resultantes da combinação de racismo e machismo também salta aos olhos. Enquanto, durante a década analisada, a taxa de homicídios de mulheres não-negras teve crescimento de 4,5%; entre as mulheres negras cresceu 29,9%. Como é destacado pelo Atlas, “em números absolutos a diferença é ainda mais brutal, já que entre não negras o crescimento é de 1,7% e entre mulheres negras de 60,5%”, o que é determinante para entender o porque de que “66% de todas as mulheres assassinadas no país em 2017” (p. 37/38)

Resgatar estes números evidentemente não pode servir para cobrir a atual situação de normalidade. Seria absurdo e impossível, até mesmo porque, não temos dúvidas, as próximas edições do Atlas, lamentavelmente, irão indicar saltos alarmantes nestes dados.

Contudo, eles são importantes para lembrar algo que nós do PSTU, principalmente através das elaborações dos companheiros e companheiras que atuam em torno dos temas das opressões, temos destacado há tempos: se é verdade que Bolsonaro é um agente direto do racismo, do machismo e da LGBTfobia, também é o um fato que, ao terem pregado a “convivência pacifica”, a conciliação de classes e governado com o que pior havia da burguesia até então (Maluf, Kátia Abreu, Kassab, Sarneys, oligarcas do Nordeste e banqueiros, empresários e latifundiários por todos os cantos), os governos petistas enganaram o povo quando diziam que estavam combatendo o racismo.

A manutenção e ampliação do abismo nos dados que constatam o corte racial no que se refere à violência são lamentáveis provas de que mesmo as medidas compensatórias que incidiram de alguma forma positiva sobre a qualidade de vida da população nunca foram sequer suficientes para retirar a maioria delas da área de vulnerabilidade social que alimenta a violência e expõe milhões à morte.

Sem podar o mal pela raiz, sem fazer com que o capitalismo pague a dívida que tem para com a humanidade não é só impossível garantir qualidade de vida para os setores historicamente marginalizados. É impossível garantir sequer que eles vivam.

Lembrar disso não tem a ver somente com acertar as contas com o passado. A barbárie jogada em nossas caras pelo vídeo mostrando a sessão de tortura grita por posturas concretas e ações urgentes, no presente.

E, isto, inegavelmente, agora, significa unir todas as forças no repúdio ao episódio, na exigência de justiça (inclusive com a punição dos proprietários do mercado que, agora, de forma irritantemente hipócritas, fingem que nunca souberam da história) e o combate a um governo que estimula de forma odiosa o aumento da opressão.

E, neste sentido, é importante, desde já, contribuir para a construção do Ato contro a o racismo e a tortura, que está sendo convocado pela “Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio”,  para o sábado, 07 de setembro, às 12 horas, em frente o mercado Ricoy, na Av. Yervant Kissajikian, 1918, Vila Joaniza.

Mas não podemos parar por aí. A única forma de colocar um ponto final neste tipo de história é a destruição do sistema que lançou suas raízes, a naturalizou e, até hoje, a utiliza pra garantir seus benefícios e regalias. E pra fazer isto, o passado recente comprova, não há atalho reformista ou soluções “acordadas” e “negociadas” com a burguesia.

A menção à Revolta da Chibata não pode se limitar aos castigos impostos. É preciso lembrar, também, o caminho encontrado pelos marinheiros para por fim a eles: tomar todos os barcos da marinha de guerra brasileira, voltar os canhões para a capital do país e mandar bomba. Tão simples quanto isto. E o resultado poderia ter sido muito melhor se, naquele momento, eles tivessem conseguido unificar os demais setores dos trabalhadores e a população em torno de suas bandeiras.

Mais do que nunca, socialismo ou barbárie se contrapõem como os únicos dois caminhos colocados diante da humanidade. E impedir que a barbárie que corre solta da Cidade Ademar à Amazônia tome conta de tudo é uma luta difícil. Não somos ingênuos.

Contudo, estamos entre aqueles e aquelas que acreditam que está é uma luta que podemos vencer. E, pra qual, nenhum esforço, sacrifício, obstáculo ou dificuldade pode ser comparado, sequer por um segundo, com o sofrimento enfrentado pelo garoto no Ricoy, todos(as) demais que, cotidianamente, enfrentam situações iguais ou piores mundo afora e, também, os milhões de nossos antepassados e ancestrais que também sofreram na ponta da chibata.

E por isso que dizemos que, em defesa da juventude negra e contra todas as manifestações do racismo, nossa luta será sempre de “raça e classe”. Será sempre uma luta pela revolução socialista.