Nos últimos dias, um fenômeno tomou conta das plataformas de transmissão: a série sul-coreana Round 6 quebrou quase todas as marcas de sucesso da Netflix. Em poucos dias, já desponta como candidata à série mais vista da história da plataforma. Um sucesso total. E o fato é ainda mais impressionante por dois motivos: primeiro, é uma série que não é falada em inglês, contrariando quase um século de hegemonia estadunidense no setor; e, segundo, a série foi escrita em 2009, quando foi rejeitada pelos investidores.
Todo esse sucesso não é à toa. Round 6 consegue fazer um vasto diálogo com grandes temas do cinema e da arte, como a crítica da decadência social e o debate sobre aspectos de uma suposta natureza humana (veja a análise completa no site). De quebra, ainda dá margem para críticas ao capitalismo, embora não as faça explicitamente. E tudo isso com uma estética provocativa, com cara de videogame, e sem abrir mão do melhor do cinema asiático, como expressões marcadas, cenas intensas de ação e uma violência exagerada, com toques de humor cínico.
Um enredo sangrento
O mote da série não é novo, é verdade. A premissa é simples: pessoas fracassadas, totalmente endividadas e sem perspectivas, aceitam participar de jogos que prometem um prêmio gigantesco (cerca de R$ 200 milhões, uma Mega-Sena acumulada) e uma alternativa de enriquecimento rápido que resolveria todos os problemas. Os jogos são brincadeiras infantis tradicionais na Coréia do Sul e a cada etapa os jogadores vão sendo eliminados. Literalmente. Claro, eles só descobrem isso depois que os jogos começam e o sangue já está jorrando pela tela.
Mas se enganam aqueles que veem isso como expressão da barbárie. É tudo muito bem estruturado e na maior parte do tempo todos os cenários têm um aspecto bem organizado e higiênico (nada como uma parede branca para valorizar o sangue espirrado). E o jogo tem regras claras e é muito bem disciplinado. Os jogadores podem, inclusive, interromper a competição e voltarem para casa, desde que organizem uma votação e a maioria escolha por isso. Da mesma forma, podem decidir livremente voltar para o jogo macabro.
Todos aqui são livres e iguais
Em um determinado momento um dos jogadores afirma algo como: “lá fora nós éramos fracassados, mas, aqui, pelo menos podemos ser quem a gente é e tentar um destino diferente”. A frase sintetiza bem o dilema colocado pela série. Os jogadores são livres para escolher, mas as opções são o mundo decadente “lá fora”, imerso no fracasso e nas dívidas, ou a distopia (uma antiutopia; ou seja, uma sociedade mergulhada na opressão, exploração, privação de liberdade etc.) totalitária dos jogos pagos com a vida. Qualquer semelhança entre a crise do capitalismo e a ascensão de governos autoritários não é mera coincidência.
Esse, aliás, é o ponto que explica o porquê da série ter sido rejeitada em 2009 e fazer tanto sucesso hoje. O diretor Hwang Dong-hyuk contou, em uma entrevista, que se baseou em um momento difícil da própria vida, quando estava endividado, para fazer o roteiro. “Pensei que naquele momento, se houvesse um jogo assim, eu jogaria”, declarou. Mas o projeto foi rejeitado por ser muito bizarro.
Mas 11 anos depois, com o aprofundamento da crise econômica, diminuição da renda, aumento do endividamento, da miséria e com a pandemia matando milhões de pessoas, a situação mudou. É verdade que nossas vidas nunca valeram muito para o punhado de bilionários que controlam o capitalismo. Mas é verdade, também, que a cotação nunca foi tão baixa. Vejam como trata e quanto vale uma vida para Prevent Senior.
Nossas vidas valem tão pouco para o capitalismo que o enredo de Round 6 saiu da rejeição para o sucesso. E não foi a série que deixou de ser bizarra. Foi o mundo que se tornou ainda mais bizarro. E isso tem nome: crise do capitalismo. Um regime desumano que descarta vidas e mais vidas em uma suposta “liberdade de escolha e competição”.
Cinema, um sonho coletivo
Como tudo na vida, filmes e séries também fazem parte da História. E, por isso, acabam refletindo o momento histórico em que foram feitos. É interessante pensar que cada época tem, no cinema, seus vilões. Hoje, estão voltando às telas filmes sobre o colapso ambiental, o pós-apocalipse e a distopia digital. Vejam, por exemplo, as regravações de Mad Max, Blade Runner, Duna (ainda por lançar). Até King Kong e Godzilla foram trazidos de volta.
Vejam, também, o sucesso que estão fazendo as séries com psicopatas e serial killers. Voltamos a por nas telas o fim do mundo e a morte da humanidade. E isso tem um duplo sentido. É, ao mesmo tempo, o medo do mundo se acabando e a vontade de acabar com um mundo injusto e desigual. A arte é o sintoma dos tempos. Round 6 é bizarro? Talvez. Mas é uma boa expressão do nossos dias. Vale a pena.
Leia o artigo completo no site: “Opinião: Round 6 é feliz ao propor muitos debates sem abrir mão de um bom entretenimento”