Foto: Grupo Especial de Fiscalização Móvel/Divulgação
PSTU Mariana

Patrícia Ramos, de Mariana (MG)

O caso é escandaloso e revoltante. Em 20 de outubro, 116 trabalhadores e trabalhadoras, dentre eles cinco adolescentes e crianças, foram resgatados da Fazenda Araçá, em Água Fria de Goiás (GO), onde estavam em situação extremamente precária, análoga à escravidão, a serviço da empresa mineira Souza Paiol, que, hipocritamente, orgulha de se vender como líder na fabricação de cigarros de palha artesanais totalmente naturais.

Sem vínculo formal de trabalho e nenhum direito trabalhista, essas pessoas foram recrutadas em Minas Gerais, São Paulo, Maranhão e Piauí. Trabalhavam a partir das 5 horas, sem ter o que comer antes de início da jornada de até 12 horas; recebiam apenas duas refeições por dia, sendo que a primeira marmita só chegava às 11 horas, com uma mirrada porção de arroz e carne. Caso adoecessem, deveriam arcar com o valor da marmita do dia “perdido” e, como evidência de que esse tipo de situação não era raro, no momento do resgate vários apresentavam problemas de saúde, como gripes e tosse, sendo que nenhum deles havia sido imunizado contra a Covid-19.

Esta foi a maior operação de resgate realizada em 2021 e escancara como a burguesia brasileira não quer romper com as marcas e correntes escravagistas que a moldaram e nas quais enraizou suas fortunas. Algo que até mesmo os questionáveis dados oficiais comprovam. De acordo com o portal Radar SIT, da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Previdência, somente entre janeiro e setembro deste ano, 1.015 pessoas foram resgatadas em situação análoga à escravidão. O número já supera os 936 resgates feitos em 2020 e se aproxima dos 1.131, registrados em 2019.

Degradante resquício das senzalas

Os trabalhadores pagavam pelos instrumentos e roupas utilizados para a colheita de palha de espiga de milho (utilizada para a produção dos cigarros), valores descontados dos míseros R$ 5 que deveriam receber pelo quilo recolhido. Além disso, segundo o relatório dos auditores-fiscais do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), estavam alojados em casebres superlotados, “muitos deles sem revestimento interno, vedação adequada e as mínimas condições de higiene”, sendo que muitos dormiam no chão. E, em plena pandemia, não foram garantidos nem os itens de higiene básica, como papel higiênico, e ainda, precisavam compartilhar a garrafa de água para beber.

Embora o dono da empresa, José Haroldo de Vasconcelos, tente minimizar o fato, os trabalhadores eram terceirizados da Souza Paiol. A tentativa de se eximir da responsabilidade mostra o quanto a Lei da Terceirização abre margem para que as empresas lavem suas mãos diante dos abusos cometidos pelas terceirizadas E um comentário de Vasconcelos, no jornal “Correio Braziliense”, em 27 de outubro, é exemplar tanto do cinismo quanto da sensação da impunidade típicos da burguesia: “Eles vendem palha para mim, como vendem para outras fábricas (…). A responsabilidade é de quem contrata essas pessoas”.

A quantidade e freqüência de casos deixam ainda mais escancarado o papel dos governos ao afrouxar as leis trabalhistas para legalizar essa situação, e, assim, salvar a burguesia num capitalismo em crise. Uma garantia, como sempre, acobertada pela “justiça”. Mesmo diante das evidências, inclusive de dados do Ministério da Previdência e Trabalho que revelam que a empresa deve aos trabalhadores cerca de R$ 900 mil em direitos, o Ministério Público do Trabalho de Goiás (MPT-GO) propôs apenas um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) para a empresa.

Desmonte do Ministério do Trabalho, afrouxamento das leis trabalhistas: o Estado a serviço da burguesia

Que o Estado capitalista serve aos interesses da classe dominante, não é novidade. A questão é que, com o sistema em crise, os governos tendem a aprovar leis que aumentam ainda mais a exploração da classe trabalhadora. Assim, desde 2008, o que era para ser uma “marolinha”, veio como um tsunami de ataques aos direitos duramente conquistados ao longo de décadas de lutas.

PEC 55 (que congelou os gastos públicos), reformas da Previdência e Trabalhista, Lei das Terceirizações, Carteira Verde-Amarela são algumas das medidas que atacam a classe trabalhadora e salvam os ricos, tornando-os bilionários. Todos os governos têm cumprido o mesmo papel na defensa a burguesia. E, com isso, a precarização do trabalho e situações absurdas como da “escravidão moderna”, aumentam dentro, à sombra ou descaradamente fora da lei.

“Foras da lei”, por causa do desmonte dos órgãos de fiscalização, como o Ministério do Trabalho, esses mesmos burgueses seguem se beneficiando. Aproveitam-se da vulnerabilidade de trabalhadores mais precarizados e da maldita tradição escravocrata do “agro-é-morte” brasileiro, para explorá-los ainda mais. E, por isso, não é à toa que a quantidade de pessoas resgatadas em situação de escravidão tem crescido a cada ano. Como também, as regiões de origem e as imagens divulgadas não escondem a raça-etnia da maioria dos resgatados.

Como se não bastasse, estamos sob um governo que cada dia inventa uma nova maneira para atacar os trabalhadores, seja no aspecto econômico, seja nas liberdades democráticas. Bolsonaro representa a pior face do capitalismo (caso pudéssemos falar em alguma face boa desse sistema). A cada ato que garante a passada da boiada, Bolsonaro e sua corja privilegiam setores como o agronegócio e a mineração, que formam a enorme maioria (também com o maior número de pessoas envolvidas) das empresas de onde foram resgatados trabalhadores e trabalhadoras em situação análoga à escravidão, de acordo com a chamada “Lista Suja do Trabalho Escravo”, divulgada, pelo Radar SIT, em outubro deste ano.

Foto: Grupo Especial de Fiscalização Móvel/Divulgação

Outro exemplo de superexploração de “raça e classe”: trabalho doméstico, herança da escravidão

Em novembro de 2020, mês que marca a luta do povo negrol, ficamos indignados com a história de Madalena Gordiano, mulher negra, de Patos de Minas (MG), que foi resgatada da casa de uma família “tradicional” da cidade (a Milagres Rigueira), onde ela sobreviveu em condições de escravidão durante 38 anos de sua vida, desde seus oito anos de idade. Nesse período, além de viver em um quartinho sem janela, não ter direito à folga ou a férias, tampouco a salário, Madalena foi submetida a um casamento “arranjado”, cuja herança foi usufruída pela família que a escravizou.

O caso é estarrecedor, mas também é o retrato de um Brasil que não se propôs, até hoje, a discutir, verdadeiramente, os crimes da escravidão, os impactos dela na vida do povo negro e muito menos as necessárias reparações históricas que o Estado capitalista nos deve. E tanto isso é verdade, que ainda vemos herdeiros das Casas-Grandes tendo a pachorra de reivindicarem o direito de indenização por terem perdido a “posse” de humanos que foram, por quase 400 anos, tratados, inclusive pela lei, como coisas.

“Os negros que aproveitem a liberdade prevista em lei, mas o Estado deve pagar a conta”, declarou Eduardo Banks, jornalista e membro da Associação Banks, que, em 2010, teve a coragem de propor alteração na Lei Áurea. Depois da história Madalena, outras mulheres foram resgatadas, como três trabalhadoras domésticas em Salvador, como foi denunciado pelo PSTU da Bahia, em 29/08/2021, no artigo “Nos últimos cinco meses, três trabalhadoras domésticas foram resgatadas em situação análoga à escravidão”.

Construir um quilombo socialista para a verdadeira libertação do nosso povo

Assim como a escravidão negra, a colonização e a expropriação do campo foram alavancas para a acumulação primitiva do capitalismo, lá nos 1500. Hoje, o aumento da precarização do trabalho, a partir de reformas que retiram nossos direitos, é base de sustentação de um capitalismo mergulhado na pior crise de sua história. Mas, uma coisa nunca muda: por um lado, há leis que garantem à burguesia a superexploração da classe trabalhadora; por outro lado, há falha na aplicação de leis que nos protejam, principalmente quando pertencemos aos setores cujas vidas são marcadas pela marginalização histórica. Tudo isso para favorecer o acúmulo de capital por parte dos ricos.

As reformas e medidas mencionadas acima e, agora, a MP 1045 (um brutal ataque aos direitos trabalhista, que, também, legaliza o trabalho precarizado) são provas desse processo, já que deixam uma boa parte dos que trabalham sem proteção da CLT.

Ao mesmo tempo, a falta de fiscalização e também de punição para os culpados por usarem mão de obra escravizada são frutos dessa mentalidade escravocrata que se perpetua na burguesia brasileira e repercute no sucateamento orquestrado pelos governos aos órgãos que deveriam ser responsáveis para ações de proteção aos trabalhadores; o que, no caso de Bolsonaro, ainda é acrescido por um elemento que é expressão exemplar do caráter de seu governo: a manutenção, na Fundação Palmares, de um capitão do mato, como o asqueroso Sérgio Camargo.

Da nossa parte, precisamos proteger a nós mesmos, mas também nossos irmãos e irmãs de classe, que estão sendo submetidos a essas situações de superexploração. Para isso, é preciso lutar pela revogação das reformas e medidas anti-trabalhadores, como também fortalecermos o movimento “Caduca, MP 1045”. Com a mesma força, precisamos lutar contra o machismo, o racismo, a LGBTIfobia e demais opressões que rebaixam, ainda mais, as condições de vida de milhões de trabalhadores e trabalhadoras, assim como dividem nossa classe, favorecendo a burguesia que lucra em cima disso.

Junto a isso, é preciso exigir a indenização para as pessoas resgatadas. Apenas o TAC não é suficiente para reparar o prejuízo causado à vida desses trabalhadores. Aliás, já passou da hora de debatermos o que significam as verdadeiras reparações para o povo negro, em função da escravidão. Elas devem começar, neste caso, pela garantia de ações afirmativas, na base jurídica. Mas, não podem parar por aí.

A única forma de repararmos o crime contra humanidade, cometido no passado e que ainda ecoa na vida de tantos, é conquistando, de fato, a liberdade, a igualdade e a justiça pelas quais nossos ancestrais lutaram e, muitas vezes, deram suas vidas. O que, hoje, se traduz em moradia, educação, saúde, trabalho e renda dignos; ou seja, em reparações socioeconômicas reais. Coisa que, sabemos, o capitalismo não pretende e, em função de sua lógica desumana e destrutiva, nem sequer têm condições de nos dar.

O caso dos 116 trabalhadores escravizados pela Souza Paiol, assim como o de Madalena Gordiano, são sintomas terríveis da barbárie a que nossa classe está sendo empurrada em pleno século 21. E os ataques não vão parar, já que o capitalismo segue em crise. Por isso, para reparar o passado, construirmos um presente digno e termos alguma perspectiva de futuro, precisamos cortar o mal pela raiz. Se o problema é o capitalismo, que o destruamos, em luta organizada contra os ataques aos direitos; mas, também, avançando para a construção de uma sociedade socialista.

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