São Paulo SP 19/09/2023 Câmara Municipal de São Paulo sessão que trata do pedido de cassação do vereador Camilo Cristófaro (Avante) por racismo. Foto Paulo Pinto/Agência Brasil
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Nesta terça, dia 19, aconteceu algo literalmente inédito na história da Câmara de Vereadores de São Paulo: Camilo Cristófaro, hoje do Avante, mas eleito pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), teve seu mandato cassado por uma fala racista, proferida em maio de 2022. Na época, numa sessão remota, não percebendo que seu microfone estava ligado, o racista disparou: “Eles arrumaram e não lavaram. É coisa de preto, né?”

A cassação foi aprovada com 47 votos, cinco abstenções (uma delas de Luana Alves, do PSOL, que não poderia votar por representar a acusação, e outra do próprio acusado) e nenhum voto contra, fazendo com que Cristófaro tenha se tornado o primeiro vereador paulista a perder o mandato por racismo, mesmo que a acusação formal tenha sido “quebra de decoro”.

Algo que, inegavelmente, precisa ser comemorado. Não como uma celebração da “justiça” ou da “via institucional” como ferramenta para o combate ao racismo; mas, sim, como um reflexo de décadas de lutas dos movimentos negros e seus aliados.

E mais: o simples fato de que Cristófaro tenha sido o primeiro racista a perder o mandato (algo que não acontecia, por qualquer motivo, há 24 anos) e, também, ainda não ter sido preso, já é um absurdo. Há muito, e com frequência inaceitável, a impunidade tem sido a regra no que se refere a casos que envolvem parlamentares racistas, machistas, LGBTIfóbicos e xenófobos.

Basta lembrar que, até hoje, o único outro parlamentar que teve o mandato cassado por racismo foi Cláudio Oklahoma, do PSL de Tatuí (interior de São Paulo), que perdeu o mandato em agosto de 2022, depois que vazaram várias mensagens em que se referia a uma mulher negra como “Chita” (a chimpanzé que acompanha Tarzan, pra quem não lembra), “carvão queimado” e “dragão desgraçada, de feia”.

E sabemos muito bem que estas não foram sequer as piores falas racistas e opressivas que já foram ouvidas nas tribunas país afora.

Já vai tarde!

Camilo Cristófaro, inclusive, é exemplar neste sentido. Dono de uma carreira marcada pelo oportunismo, o ex-vereador já exerceu cargos em mandatos de Jânio Quadros, Celso Pitta e, inclusive, Marta Suplicy, quando esta era do PT e o empossou como diretor da Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação do Município de São Paulo (a Prodam); além de, antes de chegar ao Avante, ter trocado de partido inúmeras vezes, passando pelo PFL (atual União Brasil), o PL de Bolsonaro, o PSB do atual vice-presidente Alckmin, e, também, o PT.

Nesse percurso, o que houve de comum foram atitudes racistas e opressivas, disparadas como uma metralhadora giratória para todos os lados. Já chamou o eterno capitão-do-mato Fernando Holiday (PL) de “macaco de auditório”; ridicularizou com um gesto o vereador de origem asiática George Hato (MDB) e chamou Isa Penna (PSOL) de “vagabunda” e “terrorista”, ameaçando lhe “dar uns tapas”.

E, como é típico em todos os níveis do Parlamento brasileiro, nada disso foi considerado grave o suficiente para que seu mandato fosse cassado ou que ele fosse punido de qualquer outra forma. O mesmo valendo para umas tantas denúncias de corrupção e uso de dinheiro ilícito em suas campanhas eleitorais.

Racismo não é piada! É crime!

Quando o áudio vazou, a defesa de Cristófaro foi uma mescla de hipocrisia, reprodução do racismo e pura falta de vergonha na cara. Primeiro, tentou convencer que estava falando da dificuldade em manter limpos os carros pretos que fazem parte de sua coleção de Fuscas. Depois, usou o deslavado e inaceitável argumento de que era uma “piada” que estava fazendo com um amigo negro que estava de seu lado.

E como, principalmente no caso da burguesia e dos racistas, a emenda sempre pode ser pior que o soneto, durante a sessão, o vereador e seu advogado foram ainda mais longe: acusaram os manifestantes presentes de terem sido pagos para protestar e, ainda, basearam a defesa de Cristófaro na afirmação de que ele tem funcionários e amigos negros e negras. Algo que, vamos combinar, dispensa comentários.

Aliás, no que se refere à defesa, é impossível não destacar a lamentável atuação de Ronaldo Alves de Andrade, o advogado negro que se prestou ao papel lamentável, no pior estilo capitão do mato, de defender o vereador.

“Que haja julgamento, que haja Justiça. Um negro que está defendendo o branco. Eu sei que não houve preconceito. Houve uma fala mal colocada, de mau gosto. Porque é uma fala infeliz, mas daí a transformar isso em preconceito, pior do que preconceito, racismo…”, disse Andrade, que ainda cometeu o disparate (ou ato falho…) de comparar seu cliente ao nazista Adolf Eichman, responsável pela deportação de judeus para os campos de concentração, já que ambos teriam sido vítimas de “prejulgamento”.

E, se não bastasse, ainda citou um famoso verso do rapper Djonga. “Eu estou com o Djonga: ‘Fogo nos racistas’. Eu sou contra o racismo, mas racismo. Não tirar do contexto uma frase mal colocada e taxar isso de racismo. Não é brincadeira que se faça, só que ele fez com um amigo dele”, defendeu Alvez, numa frase cujos absurdos são tantos que, sinceramente, não merecem sequer serem dignificados com uma resposta.

Justiça burguesa jamais será antirracista

Ao comemorarmos a cassação de Cristofaro não podemos esquecer que há um mês, em 13 de julho, o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu o parlamentar em um inquérito movido pelo Ministério Público, baseado em argumentos que são expressões da descarada conivência com o racismo que caracteriza a sociedade capitalista e seus porta-vozes na “justiça”.

Na decisão, o juiz Fábio Aguiar Munhoz Soares minimizou o fato, usando a deslavada justificativa de que a fala foi “tirada de seu contexto” e não passou de uma “piada”. “Era necessário que ficasse devidamente comprovada nos autos não somente sua fala, mas também a consciência e a vontade de discriminar, pois não fosse assim e bastaria que se recortassem falas de seus contextos para que possível fosse a condenação de quem quer que fosse (…); foi extraída de um contexto de brincadeira, de pilhéria, mas nunca de um contexto de segregação, de discriminação ou coisa que o valha”, sentenciou o juiz.

A cassação de Cristófaro, agora, bem como a de Arthur Do Val, o abominável “Mamãe Falei”, em maio (depois do vazamento em que afirmava que as ucranianas “são fáceis porque são pobres”), pode levar à conclusão precipitada e equivocada de que poderemos combater e barrar machistas, racistas, LGBTIfóbicos, xenófobos e opressores de todos os tipos através da ação parlamentar.

É verdade, sim, como dizia Malcolm X, que, contra o racismo, podemos e devemos usar “todos os meios necessários”. Mas, também não podemos esquecer outra lição do líder negro norte-americano: “não há capitalismo sem racismo”. Portanto, alimentar ilusões de que é possível combater os racismos por dentro do sistema e através de suas instâncias parlamentares é mais do que um equívoco. É um perigoso erro.

Afinal, enquanto um racista arrogante foi afastado de seu cargo e tornou-se inelegível pelos próximos oito anos, continuamos contando corpos de negros e negras chacinados país afora; seguimos sendo a maioria na fila do desemprego, dos que recebem os piores salários e dentre os jogados para a precarização, a terceirização e o subemprego e prosseguimos, aqui e mundo afora, dentre os mais barbaramente afetados pela crise econômica, ambiental e social para qual o capitalismo tem arrastado o mundo.

E, enquanto não colocarmos um ponto final nesta história, tomando os rumos da humanidade em nossas mãos, numa sociedade socialista, não haverá, de fato, paz, muito menos justiça.