Sob a justificativa de “simplificar” os impostos, o governo aprovou, na última semana, a PEC 45 (Proposta de Emenda Constitucional) da reforma tributária na Câmara dos Deputados. Se nos dias que antecederam a votação a proposta ainda provocava polêmicas pontuais em setores do agronegócio ou do varejo, a versão final do texto foi praticamente consenso entre a burguesia. Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Febraban (Federação Brasileira dos Bancos), entre outras entidades burguesas e patronais, entraram de cabeça na campanha por sua aprovação.
O placar da votação, 382 contra 118, expressa essa unidade, com os votos que vão de toda a base governista, do PSOL (com exceção de três parlamentares que se abstiveram) ao PL de Bolsonaro, que rachou e garantiu 20 votos para a medida. A oposição inicial de governadores e prefeitos foi vencida, com a reforma sendo ardorosamente defendida pelo bolsonarista Tarcísio Freitas. A articulação de Arthur Lira e do relator Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que ajudou o governo Lula a distribuir o valor recorde de R$ 8,65 bilhões em emendas, consolidou esse resultado.
O texto da PEC tem origem numa proposta de autoria do líder do MDB, Baleia Rossi, de 2019. Encampada por Lula e Haddad, a medida se tornou prioridade na política econômica do governo, ao lado do arcabouço fiscal. Mas o que está por trás dessa reforma? Tem por objetivo simplificar os impostos e ajudar os pobres, como diz o governo? Visa “eficiência”, como apregoam os bolsonaristas que votaram a favor? Vai servir para taxar jatinho, como diz o PSOL?
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Mais regressividade
Para começar, é importante entender que essa reforma recai sobre o consumo, e hoje quase metade da arrecadação vem de impostos sobre o consumo. Isso é um dos principais motivos da carga tributária ser tão regressiva no país, ou seja, sobrecarregar as famílias mais pobres de forma desproporcional, já que uma parte maior da renda é paga em impostos.
A grande propriedade, os dividendos bilionários pagos por empresas como a Petrobras e que são remetidos para fora, assim como os lucros das multinacionais, não são tocados. Por outro lado, o Imposto de Renda continua defasado, recaindo de forma desigual sobre os menores salários e isentando os bilionários.
Mais que isso, as isenções e redução na alíquota são ampliados para o setor agroexportador, tanto na compra de agrotóxicos como na exportação de produtos primários, tanto agropecuários como minério, reforçando o caráter semicolonial do Brasil. A redução de impostos deve ainda incidir sobre a toda a cadeia de produção, beneficiando as grandes empresas e multinacionais. E tudo isso vai parar na conta do consumidor final, ou seja, recaindo, mais uma vez, sobre os mais pobres.
O que diz o texto da reforma
A reforma unifica os impostos federais (IPI, PIS e Confins), estaduais e municipais (ICMS e ISS) em dois “IVAS” (Imposto sobre Valor Agregado): CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), de gestão federal, e o IBS (Imposto Bens e Serviços), a cargo dos estados e municípios. O princípio desse redesenho é jogar todos os impostos que incidem sobre diferentes fases da produção para o final da cadeia, o consumidor final.
O IVA terá, então, uma alíquota “base” para todos. De quanto será? Ninguém sabe. O secretário da reforma tributária, cargo criado pelo governo especialmente para essa reforma, Bernard Appy, calculava em 25%, sem as isenções e reduções de alíquotas aprovadas na Câmara. Mas a reforma cria três faixas de alíquotas: a geral, a alíquota zerada ou reduzida e a diferenciada, que pagará mais, no caso de produtos como cigarro ou bebida alcoólica. Os índices devem ser definidos no Senado.
Os setores que vão se beneficiar da alíquota reduzida em 60% são: educação e saúde privada, medicamentos e produtos médicos, transporte público, produtos e insumos agropecuários (incluindo agrotóxicos), produtos extrativistas, bens e serviços de segurança, além de produções artísticas, culturais e jornalísticas. Terão alíquota zerada algumas modalidades de medicamentos e produtos médicos, produtos da cesta básica (que serão ainda definidos por projeto de lei), e a educação superior privada ligada ao Prouni.
O real significado da reforma
Assim como o arcabouço fiscal, a reforma tributária foi pensada para durar por décadas, iniciando na prática em 2029 e contando com uma longa de transição que, no caso da compensação a estados e municípios, chega a 40 anos. E a sua lógica é desonerar a burguesia e jogar ainda mais a carga tributária sobre as costas da classe trabalhadora e a classe média. Ela reduz diretamente os impostos que incidem sobre o agronegócio e o setor extrativista, além de ampliar a isenção às igrejas que, no texto aprovado pelos deputados, passa a beneficiar as “entidades religiosas”, podendo caber aí toda sorte de empresa.
Mas, para além disso, ao acabar com a chamada tributação em cascata, aquela que taxa um mesmo produto em diferentes fases da produção, no final das contas ela vai acabar aliviando a carga de impostos total que a burguesia paga hoje. Tanto tirando diretamente o imposto, como no caso do IPI, como através de créditos tributários que vão permitir aos empresários ir abatendo as taxas ao longo da produção. De quanto exatamente será essa desoneração, ainda não se sabe (nós, a população, pelo menos, porque certamente os contadores das multinacionais e do agronegócio já contem com planilhas detalhadas neste momento), mas a expectativa é esta, e é justamente por isso que houve uma unidade tão ampla do capital em torno do projeto.
E o governo não vai simplesmente abrir mão desses recursos, lembrando que todo o esforço envolvido em relação ao arcabouço fiscal é para manter e seguir garantindo o pagamento de juros aos banqueiros. Ou seja, qualquer “perda fiscal” está fora de cogitação. Quem vai pagar por isso são os trabalhadores e a classe média, através de um IVA que, segundo estimativas, será o mais alto do mundo, em torno dos 30%. O consumidor final irá pagar, assim, as desonerações à burguesia, tanto as inclusas no projeto quanto a redução do total de impostos pagos pelos patrões, assim como as eventuais isenções que, supostamente, beneficiariam os mais pobres, como a cesta básica.
Isso significa que o povo vai bancar a redução total da carga tributária sobre a burguesia, vai pagar pelo agrotóxico do agronegócio, as commodities para exportação, vai bancar as empresas de Edir Macedo, a saúde e educação privada utilizadas pelos mais ricos, e até mesmo a desoneração sobre a cesta básica. E nem mesmo isso garante que a cesta básica barateie porque, historicamente, o setor do agro e varejista sempre embolsaram as reduções de impostos ao invés de repassá-las aos preços. O que é certo é que todo imposto que sumir ou se reduzir na cadeia de produção vai aparecer na ponta, para o consumidor final pagar.
O “cashback”
Um dos principais pontos alardeados pelo governo é a criação de um “cashback” para as famílias mais pobres. O termo foi criado por bancos e empresas, e significa a devolução de parte do dinheiro gasto, na forma de crédito ou mesmo produtos. A ideia nessa reforma tributária seria devolver parte dos impostos pagos pelas famílias inscritas no Cadastro Único, ou seja, beneficiárias de programas sociais. Ao invés de desonerar completamente o consumo e reduzir a regressividade do sistema tributário, seria uma política “focalizada” sobre as famílias mais miseráveis, diluindo esse custo sobre o conjunto do IVA. Isso significa taxar mais os pobres e a classe média, ou dar com uma mão aos mais pobres, tirando com a outra o conjunto da classe trabalhadora.
E mesmo isso não está garantido com essa reforma aprovada pela Câmara, já que o valor ou os produtos atingidos pela medida, serão definidos por lei complementar.
A taxação de “jatinhos”
Para justificar seu voto na reforma tributária, parlamentares do PT e do PSOL espalharam nas redes sociais que agora os jatinhos e iates dos ricos pagarão o mesmo IPVA que os carros. Se isso fosse realmente implementando, o valor arrecadado, segundo projeção do Sindifisco Nacional em 2020, seria de R$ 4,7 bilhões. Algo quase inexpressivo no geral, que não alteraria a regressividade do sistema, nem amenizaria o fato de os bilionários não pagarem impostos. Mas nem mesmo isso vai acontecer porque o texto votado pelos deputados inclui tantas exceções que não vai ser difícil o proprietário de um iate classificar seu veículo em alguma das muitas categorias isentas: transporte de passageiros, pesca, com fins científicos, etc.
Quem ganha e quem perde
O conjunto da burguesia sai ganhando com a reforma tributária, pois, de forma geral, vai pagar menos impostos. Vai economizar ainda no intrincado processo que existe hoje para burlar os impostos, e que gera custos significativos em advocacia tributária, por exemplo, já que isso vai ser institucionalizado. Os setores do agronegócio e da exportação de minérios também saem ganhando, assim como a saúde e educação privada. Os banqueiros saem ganhando, indiretamente já que o setor financeiro controla grande parte do agronegócio, por exemplo, como diretamente, pois manterão a garantia do pagamento de juros da dívida, que consome hoje quase metade do orçamento.
Ganham os prefeitos e governadores, já que os estados manterão certa autonomia para criar tributos, e terão ainda um fundo de R$ 40 bilhões para serem compensados de eventuais perdas nas próximas décadas. E, principalmente, os das regiões mais ricas, já que os impostos serão recolhidos no destino final.
Perdem, finalmente, a classe trabalhadora e a classe média, que já são responsáveis por mais de 47% da arrecadação que incide hoje sobre o consumo, e cujo valor deve subir ainda mais ao ter que arcar com a desoneração sobre o conjunto da burguesia.