Rosenverck Estrela Santos, do PSTU Maranhão, Quilombo Raça e Classe e vocalista do grupo de Rap Gíria Vermelha

Você acredita que o povo brasileiro é acomodado? Que a população negra é preguiçosa, vadia e alienada? Pois é, foi essa a história ensinada nas escolas e transmitida em livros, jornais, novelas e filmes.

E as lutas sociais negras no Brasil, você conhece? Balaiada, Cabanagem, Revolta dos Malês, Revolta da Chibata e a formação de milhares de quilombos de norte a sul: o que você sabe sobre isso? Aprendeu que eram revoltas de bandidos e que quilombos eram espaços de pretos fugidos e nada mais?

A nossa memória é marcada pela negação da maioria significativa da composição social brasileira de negros e indígenas. Porém, acima de tudo, pela deturpação de suas lutas e formas de resistência. A maior parte das pessoas não sabe que, no Brasil, formaram-se centenas de quilombos, mais de 500 mil negros se rebelaram e aconteceram 38 insurreições negras em 300 anos, como parte de um ascenso em toda a América, cujo ponto alto foi a revolução haitiana. Não temos memória da violência da escravidão. A Igreja, por exemplo, pelo Padre Antônio Vieira, dizia: “Escravidão é uma benção. Quanto mais dura aqui na terra, maior glória depois da morte.”

Vamos na contramão dessa memória elitista e buscaremos o verdadeiro significado das lutas sociais negras, tendo como referência o Quilombo dos Palmares.

Quilombos como espaços de resistência
Os quilombos eram espaços de resistência e negação do trabalho escravo, mas foram apontados como locais de marginais perigosos. Em 1740, a Coroa portuguesa definia Quilombo como “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”.

Durante séculos, essa definição distorceu a memória da resistência negra. O resultado foi que a população negra não queria associar-se aos quilombos por acreditar que eram espaços de bandidos em fuga. Não é à toa que, nos dias de hoje, nas comunidades negras rurais, os moradores mais idosos têm dificuldade em assumir a identidade quilombola.

É verdade que também havia fugitivos nos quilombos mas não exclusivamente. As fugas representavam um duro golpe na estrutura escravista, além de ser uma das primeiras manifestações de resistência à exploração do trabalhador brasileiro, negando o escravismo, na base da acumulação de capital, e as relações de produção profundamente violentas. Isso é o que explica a imensa repressão que sofreram os quilombos.

Os quilombos e atualmente os remanescentes quilombolas expressam uma história de rebeliões da classe trabalhadora no Brasil que nunca devemos esquecer. O Quilombo de Palmares, Zumbi, Dandara são símbolos da resistência negra.

Palmares: símbolo de luta por uma sociedade igualitária
Desde o início da colonização do Brasil, os africanos procuraram meios de resistir à escravização de seus corpos e de suas mentes. O suicídio, o assassinato de seus senhores, as fugas, a formação de organizações culturais foram alguns desses meios. Os quilombos foram uns dos principias instrumentos da luta negra.

A palavra kilombo vem da língua banto umbundo e se refere a uma instituição militar da África Central (Congo e Angola) dos povos jagas ou imbangala. O quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo africano reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata pela implantação de outra estrutura política, na qual se encontraram todos os oprimidos.

A partir de 1597, a floresta e as montanhas na fronteira dos estados de Pernambuco e Alagoas serviram de palco para a formação do Quilombo dos Palmares. Formado por uma associação de comunidades negras, os mocambos, Palmares teve importantes lideranças, como Acotirene, Aqualtune, João Tapuia, Gaspar, Ambrósio, Ganga Zumba e Zumbi.

Zumbi, entre tantos feitos, tornou-se reconhecido por ter se colocado contra o acordo com os escravocratas e o governo de Pernambuco, um acordo que garantiria a liberdade aos palmarinos, mas, em troca, exigia a renúncia à luta contra a escravidão. Além disso, o acordo tinha por objetivo ganhar tempo, devido ao enfraquecimento das forças militares europeias, e dividir os palmarinos. O governo europeu só propôs o acordo depois de dezenas de fracassos dos seus exércitos.

Esse acordo, que foi aceito por Ganga Zumba, propunha: libertação aos pretos nascidos em Palmares; entrega de terras (que se mostraram improdutivas); legalização do comércio dos pretos palmarinos; aceitação, por parte dos palmarinos, de que seriam súditos da Coroa portuguesa, ou seja, aceitariam a ordem estabelecida da escravidão. Quanto aos negros e negras fugidos para Palmares por conta própria, seriam reescravizados.

Zumbi dos Palmares

Zumbi disse não
Zumbi e outros líderes não aceitaram esse acordo de conciliação, pois sua luta não era apenas pela liberdade dos palmarinos: era contra a estrutura escravista. Não bastava emancipar os palmarinos, era preciso emancipar toda a população negra. Emancipar a população negra era o mesmo que emancipar toda a população trabalhadora brasileira, pois a sociedade escravista foi estruturada sobre a exploração e a opressão de negros e negras.

Palmares foi a negação do sistema escravista. Representava outra forma de organização social, política, econômica e cultural. Uma nova forma de sociabilidade e de produção e reprodução da vida, levada à frente por mais de 30 mil pessoas de diferentes grupos étnico-raciais dirigidos por lideranças negras. Fazer uma aliança com os poderosos oligarcas era negar esse projeto, negar outra forma de produzir a existência humana baseada em princípios de produção e repartição igualitários.

Sem rendição
Zumbi e Palmares são um exemplo de quem não se rendeu. Zumbi só confirmava a tradição da história de Palmares, que teve inicio na dominação holandesa sobre Pernambuco e terminou na dominação portuguesa. Nesse confronto entre holandeses e espanhóis (Portugal estava sob domínio da Espanha), muitos negros tiveram de optar por um dos lados.

Foi o exemplo do negro Henrique Dias, comandante de tropas negras que lutaram ao lado dos portugueses. Nessa disputa entre o ruim e o pior, Palmares não tomou lado. O lado de Palmares era o da população negra em sua luta por liberdade e condições de existência. Escravista era escravista, não importa se holandês, espanhol ou português.

Classe dominante quer eliminar Palmares
Foram dezenas de expedições holandesas e portuguesas contra o quilombo nordestino. Até o assassinato de Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1695, sua memória rondou como um espectro de liberdade e emancipação da população negra. Tanto é que Zumbi foi decapitado e sua cabeça foi exposta em praça pública em Recife para servir de exemplo.

Em 14 de março de 1696, o governador de Pernambuco, Caetano de Melo de Castro, escreveu ao rei de Portugal, João V: “Determinei que pusessem sua cabeça num poste, no lugar mais público desta praça, para satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal.

Essa ideia do governador de Pernambuco e do Império português fracassou. Zumbi está vivo entre nós, trabalhadores brasileiros, que não esquecemos sua resistência e recitamos em alto e bom tom: “Por menos que conte a História / Não te esqueço meu povo / Se Palmares não vive mais / Faremos Palmares de novo” (José Carlos Limeira).


Como se organizava o Quilombo dos Palmares?

Economia
A principal atividade econômica era a agricultura. Também produziam artesanato e faziam comércio. Tinha abundância alimentar. Todo quilombola recebia terra, mas não podia vender e era obrigado a cultivar. Toda produção ia para o Conselho, que repartia entre todos. Era uma forma coletivizada de produção. O excedente, além de ser comercializado, provando que não havia isolamento do quilombo, era repartido e estocado para evitar escassez e fome.

Organização social
As decisões eram coletivas e democráticas no Conselho. Por exemplo, para aceitar ou rejeitar acordos com o Império. Os líderes eram eleitos pela base.

Mulheres
Uma de suas fundadoras foi Acotirene. As mulheres tinham um papel fundamental, participavam do conselho de líderes, das atividades econômicas e também participavam da guerra. A poliandria – organização familiar na qual uma mulher tem vários companheiros – era comum. Isso porque a quantidade de mulheres era menor (o tráfico de escravos no Brasil dava preferência a homens jovens, mas também porque refletiam o matriarcalismo muito presente em regiões da África.

Defesa
Existia uma disciplina de acampamento de guerra: o povo em armas. Diferentemente de Ganga Zumba, que achava que seria incorporado pacificamente pelo Império, Zumbi acreditava que o acampamento de guerra era a melhor forma de enfrentar os portugueses.

Composição populacional
Seus membros vinham de vários estados do Nordeste – Alagoas, Pernambuco, Bahia, Sergipe. Em sua maioria, eram negros e negras. Também havia mestiços, brancos pobres e indígenas. Era um espaço de acolhida para aqueles massacrados pela miséria e pela repressão da Coroa portuguesa. Foi justamente essa aliança entre palmarinos e trabalhadores pobres contra a exploração que fez com que a classe dominante latifundiária e comercial tomasse medidas para eliminar Palmares.


Para ler:

  • O quilombo dos Palmares (Edson Carneiro)
  • Sociologia do negro brasileiro (Clóvis Moura)
  • Os quilombos e a rebelião negra (Clóvis Moura)
  • Origem e histórico do quilombo na África (Kabengele Munanga)
  • Zumbi (Joel Rufino dos Santos)

Para assistir:

QUILOMBO
Direção: Cacá Diegues
Conta a história de Ganga Zumba e os conflitos com Zumbi, indo até o confronto final de Palmares contra os portugueses.