Pintura de Debret representa a escravidão no Brasil no sec XIX
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Na quarta, 29 de setembro, Leandro Narloch, colunista da “Folha de S. Paulo”, escreveu um artigo intitulado “Luxo e riqueza das ‘sinhás pretas’ precisam inspirar o movimento negro”, sob o pretexto de comentar o livro “As sinhás pretas da Bahia: suas escravas, suas jóias”, de Antonio Risério. Contudo, seu verdadeiro objetivo, como sempre, foi fazer o que faz de melhor (ou pior, no caso): revisionismo histórico colocado a serviço de atacar os movimentos sociais (particularmente dos setores historicamente marginalizados) e, numa só tacada, legitimar a opressão e defender o sistema capitalista.

Nada que seja novidade. Meus alunos e alunas sabem o que penso do “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, sua “obra-prima”. É um lixo. Mas dos mais perigosos. Um lixo tóxico. Pensado e escrito com o objetivo de seduzir seus leitores com versões do passado que vão para muito além da já farsesca “História Oficial” que geralmente infecta os livros didáticos.

Afinal, para ele não basta distorcer e tentar invisibilizar as lutas e histórias dos “de baixo”. Também é preciso, como escreveu na “Folha”, complicar “as narrativas dos ativistas”, particularmente negros(as), povos originários, mulheres, LGBTIs e demais setores discriminados e oprimidos, com o objetivo de combater a ideia de que “o capitalismo é essencialmente racista e machista e que o preconceito é uma força determinante, capaz de impedir que indivíduos discriminados enriqueçam”, como defendeu em seu artigo.

A História contada através das exceções

Assim como nos seus livros, o artigo do pseudo-historiador utiliza de uma metodologia alicerçada na descarada desonestidade intelectual que resulta, por exemplo, de partir das exceções para criar generalizações e tirar as coisas do contexto para tentar legitimar suas teses e visão de mundo. Uma postura utilizada, diga-se de passagem, até mesmo contra o livro que ele supostamente se propôs a apresentar. O que, no caso, é um bizarro exercício de “revisionismo do revisionismo”, pois o antropólogo e historiador Antônio Risério há muito navega pelos mesmos mares poluídos que Narloch.

Basta lembrar que Risério carrega em seu currículo um livro-homenagem ao abominável Antônio Carlos Magalhães e já fez ataques despropositados e rasteiros a intelectuais-militantes negros como Abdias do Nascimento e Kabengele Munanga, bem como aos movimentos negros como um todo e ao marxismo, em particular. Seja como for, pelo que consta, desta vez o antropólogo teve a mínima decência de reconhecer que as histórias contadas em seu livro não foram suficientes para “aplacar as desigualdades sociais brasileiras”.

E que histórias são estas? São alguns pouquíssimos casos, pinçados nos anos 1800, que relatam, nas palavras de Narloch, a existência de uma “personagem fascinante na História do Brasil: a ‘sinhá preta’ (…), a escrava que conquistou a liberdade, superou preconceitos, enriqueceu pelo comércio de rua e deixou em seu testamento joias, vestidos, casas e escravos”.

De imediato, é preciso apontar que Leandro Narloch simplesmente desconsidera que os chamados “escravos-de-ganho”, como prova uma vasta e honesta documentação sobre o tema, eram, na verdade, homens, mulheres, crianças e idosos que cumpriam uma inominável “dupla jornada escravista”, sendo colocados nas ruas para aumentar os lucros de sinhôs e sinhás e só conseguiam reverter algum dinheiro para compra de alforria (sua ou de seus entes queridos) através de mirabolantes subterfúgios ou caminhos ultra-penosos.

Mas, isto é só o começo. O próprio termo “sinhá preta” é um despropósito diante da real estrutura da sociedade colonial e escravista e, particularmente, em relação às nossas ancestrais. Não porque não tenham existido mulheres que, conquistando a alforria, conseguiram, de alguma forma, escalar alguns degraus do abismo socioeconômico que as separava da sociedade da época. Mas, primeiro, nem mesmo isto, com certeza, permitiu que elas fossem vistas como “sinhás”, muito menos as livrou do estigma social e racial.

Mas, o maior problema sequer é a existência destas personagens e, sim, quais são as intenções de Norlach ao jogar os holofotes sobre elas. Objetivos que, como é típico em sua escrita, ele costura através de um suposto “rigor acadêmico” em frases como “pesquisas mais recentes indicam, com segurança razoável, que mulheres de cor libertas formavam a categoria mais rica de nossa sociedade, depois dos homens brancos”, que não só representam uma negação do passado, mas estão a serviço de um revisionismo histórico criado sob medida para se adequar àquilo que realmente pretende: deslegitimar ou, no mínimo, desviar as lutas do presente.

É isto que ele destaca no título, ao enfatizar que estas raríssimas exceções deveriam “inspirar o movimento negro”, e reforça como provocação ao escrever que “as negras prósperas no ápice da escravidão são uma pedra no sapato” de quem tenta denunciar as relações entre opressão racial e capitalismo ou identifica no racismo uma ideologia construída para a superexploração de negros e negras e, consequentemente, para que não tivéssemos ou ainda tenhamos acesso a condições dignas de vida ou à ascensão social.

Falsificar e reescrever o passado na tentativa de moldar o presente

Mas, a verdade é que os casos pincelados por Risério e celebrados por Narloch não passam de grãos de poeira num universo soterrado por atrocidades, crimes, segregação, sofrimentos, humilhações, torturas, estupros, assédio, violência e pela tentativa sistemática de confisco até da última gota da humanidade de nossas ancestrais.

Por isso, o artigo de Narloch não é apenas a expressão de uma opinião polêmica ou uma postura acadêmica descabida e rasteira. É uma falsificação da História. E uma ofensa asquerosa e inaceitável a todas mulheres negras. Tanto nossas ancestrais escravizadas quanto nossas contemporâneas que, até hoje, carregam em suas vidas as marcas deixadas por uma história de 388 anos acorrentados à senzala e não cobertos de luxo e de joias; de escravidão e não de escravização dos semelhantes.

388 anos nos quais viveram, sim, “personagens fascinantes”. Mas elas não foram aquelas que deixaram casas e escravos em excepcionais testamentos; mas, sim, as que arriscaram ou deram suas vidas para nos deixar como legado os quilombos, um sonho inquebrantável de liberdade e o desejo ardente pela igualdade e a justiça.

Por isso mesmo, os nomes que palpitam em nossos corações e mentes e nos servem de exemplo nos 133 anos passados desde uma abolição nunca concretizada não são os de umas tais Marcelina Obatossi, Francisca Maria da Encarnação ou Joaquina Borges de Sant’Anna, incensadas e festejadas por Narloch. Não as temos nem como pedras nos sapatos nem como poeira que embace nossa visão sobre o passado.

Como também não trilhamos os caminhos traiçoeiros e vacilantes traçados por feitores, capitães-do-mato ou quaisquer outros colaboradores ou eventuais beneficiários do regime escravagista. Ao contrário do que quer o pseudo-historiador, não vemos essas “sinhás pretas” e suas variantes como “protagonistas de seus destinos” e donas de “lindas histórias de vida” que “protagonizaram ações (…) dentro dos costumes da época, como a de comprar e alugar escravos”.

Primeiro, porque somente na lógica demente de revisionistas como Narloch é possível chamar de “costume de época” um projeto desumano e cruel, concebido sob medida para que uma nova classe dominante, a burguesia europeia, amparada e financiada pela nobreza e pela Igreja, iniciasse sua trajetória rumo ao domínio econômico e político da humanidade navegando no suor e no sangue de povos não-brancos.

Uma burguesia que criou uma forma de escravidão (e ideologias para “justificá-la) diferente de qualquer outra que tenha existido (e, de fato existiu) na Antiguidade greco-romana, no continente africano, dentre os povos originários da Ásia e das Américas. Uma escravidão que não era baseada em dívidas ou conflitos internos, mas alicerçada numa brutal e criminosa tentativa de “coisificação”, na medida em que teve a covarde ousadia de tentar criar uma categoria de seres não-humanos, destinados a servir apenas como “produtos”, “moeda” e “instrumentos”, visando uma única coisa: o acúmulo de capital.

“A descoberta de ouro e prata nas Américas, a expropriação dos recursos, a escravidão e reclusão de povos indígenas em minas, o começo da conquista da Índia, a conversão da África em uma reserva para a caça comercial de negros foram fatos que caracterizaram o amanhecer da produção capitalista. Estes procedimentos são os carros chefes da acumulação capitalista”, nos lembra Marx, em “O Capital”.

Não temos “pedras nos sapatos”, pisamos firme na trilha de quilombolas

E constatar isto não significa, de forma alguma, que adoramos nos ver sob a ótica do “vitimismo”, como Narloch e seus pares adoram apontar; ou de que nos conformamos, com escreve (com uma falsa empatia que mal esconde o cínico deboche racista), em ver nossos ancestrais como seres “passivos” e sempre colocados em uma posição “submissa”, de “escravizados e humilhados”.

É exatamente porque, apesar de terem tentado nos esconder por décadas, conhecemos a verdadeira história de nosso povo e a heróica batalha que travaram pela liberdade que não nos miramos nas chamadas “sinhás pretas”, que gente como Narloch quer que vejamos como cobiçados diamantes, apesar de (no final das contas…) tentar reduzi-las a pedras em nossos sapatos. Elas não são nem uma coisa nem outra para o povo preto.

Não é a existência de um punhado de mulheres que possam se encaixar nesta estapafúrdia definição que definiu ou influenciou o caminhar daqueles e daquelas que, de forma crescente, têm realmente se comprometido com o combate ao racismo e estão cada vez mais conscientes de que só há como varrê-lo esmigalhando o sistema que o criou e dele se beneficia até hoje, como já nos ensinaram os jacobinos negros e negras do Haiti.

É por isso mesmo que para entender as inescrupulosas motivações de um artigo como o publicado na “Folha” basta olhar para o mundo ao redor. Um planeta onde sintomas de barbárie se manifestam em uma pandemia que já matou milhões devido a atitude genocida de alguns governantes e um número de super-ricos que não chega a 3 mil pessoas no mundo inteiro, sempre em cumplicidade com tantos outros que também colocam a “saúde da economia” à frente das vidas humanas. Um mundo onde a fome, a miséria e o desemprego se alastram impiedosamente e a devastação e crimes contra o meio ambiente castigam a humanidade cada vez com mais freqüência e maior intensidade.

Mas é neste mesmo mundo que, apesar de tudo isso (ou melhor, exatamente por tudo isso), não são sonhos ilusórios de “luxo e riqueza” ou de ascensão social por dentro ou à sombra das Casas-Grandes que têm inspirado trabalhadores e trabalhadoras e particularmente aqueles e aquelas que também são marcados pela marginalização histórica. Nos últimos anos, foram rebeliões e lutas (dos Estados Unidos ao Chile, da Colômbia a África, da Ásia a Europa) que colocaram brilho nos olhos de muita gente.

Num mundo onde cotidianamente nos vemos obrigados a gritar, mesmo quando tentam nos impedir de respeirar, que “Vidas negras importam!”, “Chega de feminicídio!”, “Basta de violência LGBTIfóbica!”, “Parem com extermínio indígena!” ou “Ninguém é ilegal!”, um texto como o do colunista da “Folha” soa como um esforço um tanto patético para que nos calemos e voltemos nossa atenção para uma “inspiração” que não deixou outra marca na História para além de uns poucos documentos engavetados.

Pois, afinal, que Narloch nos diga, então, quem e onde estão os banqueiros, latifundiários e empresários negros (as) que herdaram o “luxo e riqueza” destas mulheres? Com certeza, se utilizar a mesma “metodologia” que usa para escavar raras exceções do passado, o jornalista poderá apontar um aqui, outra acolá. E, de antemão, é preciso dizer que Sérgio Camargo não vale, porque este é daqueles que se contenta com as migalhas jogadas sob a mesa dos banquetes.

Eles e elas existem? Com certeza, sim. Mas são tão raros como as ditas “sinhás pretas”. E com histórias que ao invés de nos inspirar, nos envergonham. São presidentes negros que lançam bombas sobre os povos árabes e fecham as portas para imigrantes latinos. São governantes, empresários ou seus cupinchas que desviam as riquezas e recursos de nações para satisfazer seus interesses ou se aliam, servilmente, com os interesses dos novos sinhôs, os donos do Capital.

E se Norlach queria uma mulher, que fique, então, com Isabel dos Santos, essa, sim, banhada de “luxo e de riqueza”, ao ponto de ter conquistado o posto de ser a mais rica da África; mas simplesmente por ser filha de um desses “negros que são amigos do Capital” e Solano Trindade, há muitos, nos ensinou que não são nossos irmãos: José Eduardo dos Santos, um ditador corrupto que se encastelou no poder por 38 anos.

Por isso mesmo, cada vez mais negros e negras estão seguindo os passos e pisando firmes nas trilhas abertas por aquelas que realmente “fizeram História”. Aqui, na terra em que nossos ancestrais deixaram suas histórias gravadas e se fizeram monumentos vivos, apenas nas pedras pisadas dos cais, fazendas, cortiços e morros, as protagonistas de nossas histórias e guias da trajetória de um número crescente do povo negro e seus verdadeiros aliados são guerreiras quilombolas e rebeldes, como Acotirene, Aqualtune, Dandara, Teresa de Benguela e Luiza Mahin.

Não são aquelas que alimentaram a escravidão; mas, sim, as que se fizeram “malungos” (companheiros/as) ainda nos famigerados tumbeiros ou no chão ensanguentado das senzalas e ainda acharam forças para nutrir filhos, companheiros, irmãos, netos e agregados com o sonho de liberdade e a disposição de luta.

Não são aquelas poucas que contribuíram na tentativa de coisificação de seus semelhantes, mas as que fizeram com que homens como Zumbi, Luiz Gama, João Cândido, Pedro Cosme, Cruz e Sousa, Lima Barreto e tantos outros, como já disse Clóvis Moura, se “desalienassem”, reconquistando sua humanidade ao se fazerem quilombolas, gente rebelde e de luta.

As verdadeiras e realmente fascinantes protagonistas de nossa História são as milhares e mais milhares de Marias, Zeferinas, Josefas e mulheres anônimas que construíram suas histórias e as dos seus na Sabinada, na Cabanagem, entre os lanceiros negros farroupilhas ou quaisquer outras das muitas rebeliões e revoltas nas quais as chamadas “sinhás pretas” não entram sequer como minúsculas notas de rodapé.

Um guia para o charlatinismo mal-intencionado

O autor do “Guia politicamente incorreto da História do Brasil” evidentemente não se interessa por estas histórias, a não ser quando tenta distorcê-las ou jogá-las na lama, como faz em seus livros que, para dizermos as coisas como realmente são, não passam de artilharia chinfrim, mas suficientemente danosas nas mãos daqueles que querem se levantam em uma Cruzada Neoliberal e fundamentalista numa tal “guerra cultural” contra quem ousa ter um pensamento crítico e usá-lo como instrumento para mudar o mundo.

Por isso mesmo, e para que se tenha a dimensão da “toxidade” do lixo que ele produz, me vejo na obrigação de citar algumas de suas atrocidades propagadas unicamente no tal “Guia”, majoritariamente construídas a partir de documentos isolados e pra lá de questionáveis ou pesquisas até que sérias, mas das quais Narloch só retira as fatias que lhe interessa para compor uma “narrativa” que mescla o pior tipo de sensacionalismo jornalístico com a evidente intenção de criar “chocantes polêmicas”. Pois, afinal, é isto vende tão bem quanto revistas de fofocas. Então, preparem o estômago.

Para ele, por exemplo, os povos indígenas eram bêbados inveterados que, literalmente, “queriam mesmo era ficar com os brancos, misturar-se a eles e desfrutar das novidades que traziam”; isso quando não estavam ocupados “extinguindo muitas espécies” animais ou fazendo “um belo estrago nas florestas brasileiras”, ao ponto de quase terem destruído completamente a Mata Atlântica. E, se não bastasse, segundo o autor, “apesar de pouca gente falar sobre isso, centenas de milhares de mortes devem ter sido causadas na Europa por males americanos”, já que “ao chegarem à América, espanhóis, franceses, portugueses e holandeses, penaram com doenças novas e as transmitiram para o mundo”.

Diante disto, não surpreende que Narloch também tente resgatar os bandeirantes como “uma nobre raça de gigantes”, ao contrário de facínoras e assassinos como, hoje, alguns professores tentam apresentá-los (de forma desonesta, na opinião do autor, obviamente). Já Zumbi “mandava capturar escravos de fazendas vizinhas para que eles trabalhassem forçados no Quilombo dos Palmares” e, também, “sequestrava mulheres”. Práticas, aliás, segundo ele, eram comuns, em base ao mesmo argumento asqueroso utilizado no artigo: “tratava-se de um costume tido como correto pela lei e pela tradição”.

Por esta e outras, o “Guia” também lamenta que, em 2007, “nenhum país da África ou movimento negro prestou homenagens ou agradecimentos aos ingleses”, por terem realizado, 200 anos antes, a primeira campanha abolicionista vitoriosa. E, com o mesmo “rigor histórico” de uma telenovela, Narloch defende que “o Império teve virtudes que são frequentemente esquecidas, ao mesmo tempo em que é alvo de acusações injustas e uma visão simplista de que teria atendido somente a ‘interesses da elite’”.

Esses são exemplos que constam apenas na primeira parte do livro, referente ao mesmo período do artigo publicado na “Folha”. Evidentemente, cada um destes ataques à História e aos(às) que lutaram contra a opressão e a exploração precisa ser veementemente combatido e desmantelado. E não é uma tarefa das mais difíceis. Pelo contrário. Mas, este não é o propósito, aqui.

Para retomarmos o artigo é preciso ir pra além dos conteúdos distorcidos e falseados que, sabemos, são consumidos e divulgados como uma “bíblia” por Olavo de Carvalho, Bolsonaro, Sérgio Camargo, Damares e seu rebanho de negacionistas, fundamentalistas, milicianos e reacionários. O importante, no entanto, no momento, é constatar que tanto o livro quanto o artigo expressam uma concepção de mundo e de História.

Ao contrário de querer nos oferecer “bons exemplos” a serem seguidos, Narloch não está de forma alguma preocupado em jogar novas luzes sobre o passado. O que lhe interessa, de fato, é tentar moldá-lo para tentar retirar a verdadeira “pedra nos sapatos” que, com o avançar da crise socioeconômica e generalizada, incomoda cada vez mais e de forma mais aguda os calcanhares da burguesia: a presente e crescente polarização entre os “de baixo” e o “andar de cima”. Entre os quilombos e a Casa-Grande.

Não é um acaso que a pseudo-História construída por ele se apoie em raros casos individuais. Sua principal preocupação é tentar, através de seu desonesto malabarismo teórico e histórico, desconstruir duas verdades inegáveis da História: que ela se faz no coletivo e através dos conflitos, principalmente o de classes, que, sabemos, entrelaçam-se profundamente com a opressões e todas ideologias discriminatórias e preconceituosas concebidas para dividir e enfraquecer a unidade dos “de baixo” e suas lutas. Coisa que, aliás, ele faz questão de destacar em seu artigo.

“A teoria crítica racial, em voga hoje nas faculdades de humanas, enxerga o mundo pela lente das relações coletivas de poder. Nessa visão, houve na história uma divisão nítida entre opressores e oprimidos, nitidez que persistiria hoje”, escreveu Risério, endossando o livro de Risério, que defende que “na história da Bahia ‘esse dualismo esquemático não encontra correspondência factual’”.

Mas, seria “injusto” encerrar concedendo a Narloch ou Risério sequer o destaque pela “originalidade” de suas atrocidades. É verdade que o artigo é particularmente irritante e desprezível. Mas (se é possível dizer tal coisa), o pior é que, ao contrário do que afirma o jornalista, há tempos o que corre solto dentro das faculdades de humanas são versões apenas mais sofisticadas e menos rasteiras da base teórica na qual ele se apoia.

 Uma concepção de História fincada na pós-modernidade

Do ponto de vista historiográfico (ou seja, de como a História é escrita e as teorias empregadas para tal), é necessário dizer que as raízes de muitas das tais “pesquisas” nas quais Narloch se baseou estão na aplicação das teorias da chamada pós-modernidade no campo da História, que se desdobrou em correntes (e matérias, nas universidades), como a Micro-História ou a Nova História Cultural.

Para saber mais sobre o tema, recomenda-se a leitura de um artigo de Gustavo Machado, publicado no portal “Teoria & Revolução”, mas para entender as bases “acadêmicas” que permitem que atrocidades como estas ganhem status de “estudo histórico”, vale destacar alguns elementos.

Primeiro, como lembra o companheiro que também mantém o canal “Orientação Marxista, no YouTube, uma das característica do pensamento pós-moderno é negar a “objetividade do discurso”; ou seja, desconectar a pesquisa das “relações e coisas reais”, transformando a própria escrita da História em expressão da “subjetividade”, de uma “representação ou, por vezes, em mera invenção” daquele que a produz, o que resulta numa perspectiva centrada no “indivíduo isolado a despeito de tudo mais que se coloque no seu caminho” ou, ainda, na “preponderância do indivíduo sobre o social”.

“A ruptura mais característica das concepções pós-modernas propriamente ditas é a crítica da razão. Em detrimento de toda elaboração voltada para compreensão racional da sociedade como um todo ou mesmo alguns de seus aspectos, se acentua a dimensão puramente subjetiva dos indivíduos como suas paixões, impulsos, prazeres, pulsões, identidades e assim por diante”, nos lembra Gustavo Machado.

Vale lembrar, ainda, que esta não é uma tendência recente e Marx, já em sua época, denunciou aquilo que ele chamava de “triunfo do individualismo” como uma tendência da produção intelectual sob o capitalismo. Sendo assim, como também é destacado pelo artigo “o pós-modernismo encontra seu fundamento histórico nas próprias relações sociais capitalistas, na ilusão do indivíduo isolado que não dependente de mais ninguém a não ser de si mesmo”.

Uma concepção teórica completamente sintonizada com o propósito descaradamente político de defender a ordem vigente e pregar a impossibilidade de transformá-la (muito menos revolucioná-la), o que só deixaria para os marginalizados, excluídos e explorados a mesma opção das “sinhás pretas”: ascender socialmente dentro da lógica e com os mecanismos do sistema. Libertar-se pela inserção no mercado e a ascensão social, até atingir o “ápice”, fazendo-se, no passado, senhor(a) de escravos ou patrão e patroa, no presente.

“O pós-modernismo tem por fundamento o abandono de toda e qualquer intervenção voltada para a transformação de uma forma de organização social tomada em sua totalidade, de todo e qualquer projeto de sociedade. Não sem razão, a organização em partidos políticos é posta em descrédito, assim como qualquer atuação no curso da história com pretensões universais. Ao mesmo tempo, acentuam-se e se autonomizam os particularismos de todo o tipo, cujos objetivos jamais extrapolam a livre expressão individual, mantendo a mesma forma de organização social como pano de fundo. O caminho da construção do pós-modernismo coincide, nesse sentido, com o caminho da desconstrução do marxismo, seu verdadeiro alvo e razão de ser”, destaca Gustavo, no artigo mencionado.

No fim das contas, só uma versão mais enojante da conciliação de classes

Narloch finalizou seu artigo na “Folha” com uma mescla de provocação barata e compromisso político e ideológico bastante sério. Primeiro, defendendo que “outra ideia que a sinhá preta abala é a da culpa coletiva pela escravidão”, pois, se há “um responsável pela crueldade escravista, não são exatamente os portugueses ou africanos que tiveram escravos”, já que a “culpada é a época e seus valores diferentes dos nossos”. E, diante disto, “as sinhás pretas oferecem a essas pessoas [ativistas e estudiosos] a oportunidade de enxergar o passado com mais maturidade e conciliação”.

A escolha do termo “conciliação” para fechar um artigo com este não pode ser menosprezada. Particularmente nos dias de hoje. É inegável que seu ponto de partida foi a intenção de legitimar a escravidão e descaracterizar a cruel brutalidade que marcou a vida de nossas ancestrais.

Contudo, seu objetivo final está completamente sintonizado com uma lógica que, apesar de nem sempre tão descarada como a do colunista da “Folha”, infesta o discurso da chamada burguesia liberal, como discutimos recentemente no artigo “Ilusões capitalistas para manter as opressões”.

Uma burguesia que, diante do aprofundamento da crise, tenta se distanciar da postura cada vez mais odiosa e odiada de figuras como Bolsonaro, Trump e seus pares mundo afora, e de sua própria cumplicidade ativa e histórica com a situação à qual chegamos, para apresentar-se com dotada de “uma cara mais humana”, uma máscara que nos iluda ou hipnotize, tornando capaz a venda uma ilusão mais convincente do que o desgastado “mito da democracia racial” ou da pura e simples negação das opressões e suas conseqüências políticas, econômicas e sociais.

Uma burguesia que, a exemplo do Carrefour ou das multinacionais norte-americanas, tenta apagar as atrocidades criminosas cometidas contra Beto Freitas ou George Floyd com o discurso da “conciliação”, revestido com vários formatos ou cobertos de penduricalhos e regalias que, tal qual as joias das chamadas “sinhás pretas”, são destinadas a ofuscar aqueles e aquelas que se deixem iludir ou comprar pelos falsos brilhantes.

A base da ilusão, no passado ou ainda hoje, é a meritocracia (ou seja, aqueles e aquelas que fizeram por merecer “chegar lá”) ou mecanismos alinhados com o “triunfo do individualismo”, como o empoderamento individual ou tornar-se patrão em um empreendimento negro (que, sabemos, muitas vezes não passa de tentar dar nome a mecanismos de sobrevivência há séculos mantidos por nosso povo).

O fundamental, contudo, é que o resultado, lamentavelmente, também pode ser que deve ter assombrado as tais “sinhás pretas”: dar as costas para o “coletivo”, para suas próprias histórias, abraçando a oportunidade de se dar bem “por dentro do sistema”, sem arranhar nem mesmo a superfície da ordem vigente.

Que muito desta história esteja sendo construída a partir de teses igualmente pós-modernas que, hoje, preenchem páginas e mais páginas de livros produzidos por pensadores e pensadoras negros, mulheres, e LGBTIs, muitos deles que surgiram como ativistas aguerridos dos movimentos, é algo que, aqui, só dá pra lamentar.

E que estes setores estejam majoritária e abertamente sintonizados com o projeto de Frente Ampla que está sendo alinhavado pelo PT, a direção majoritária do PSOL, o PCdoB e outros satélites que giram ao redor da “solução” Lula-2022, é uma história que ainda está em debate.

Mas, com certeza, tudo isto precisa ser problematizada e debatido com seriedade, como nós do PSTU temos tentado fazer com freqüência. Contudo, para não perder o foco em Leandro Narloch, é também preciso que se diga que ele sequer procura algo de muito novo quando produz seus textos. Sua produção está a serviço de senhores muito menos dados a malabarismo intelectuais para justificar sua defesa do capitalismo e, portanto, a manutenção dos níveis que forem possíveis de opressão e exploração.

Como declarou em uma entrevista ao “Pânico”, no dia 29, já tentando responder à enxurrada de críticas que escreveu, para ela, a melhor opção para 2022 é tucano Eduardo Leite, saudando, inclusive, o fato de que o governador do Rio Grande do Sul não use o fato de ser gay “como bandeira” (o que, certamente, seria um constrangimento para alguém com o jornalista que já perdeu um emprego em função de declarações LGBTIfóbicas).

Para ele, a defesa se deve simplesmente por Leite ser “o fator novidade do PSDB”, uma cara nova que, diante da polarização social, pode ser uma alternativa para aquilo que, em última instância, Narloch também busca através de sua falsificação do passado: a conciliação dos conflitos. Custe o que custar, contanto que a burguesia não perca nada além do mínimo.