Na ABL, Fernanda Montenegro sucederá o diplomata Affonso Arinos de Melo Franco, que morreu em março de 2020
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Wilson Honório da Silva, da Secretaria de Formação do PSTU

Confesso que não morro de amores pela Academia Brasileira de Letras (ABL). Pelo contrário. Toda sua história é marcada, do meu ponto de vista, por um escandaloso desastre, com destaque para o descaso em relação à cultura popular (ou não “oficializada”), particularmente dos setores historicamente marginalizados da sociedade. Algo que, pra mim, tem como ato inaugural, a postura de seu fundador, em 1897, e primeiro presidente, o genial, mas “problemático”, Machado de Assis, que fez o diabo pra barrar o já “emparedado” Cruz e Sousa. (Quem quiser, dê uma lida no artigo “Machado de Assis: entre os morros do Rio e a elite”).

Mas, há momentos em que “atos simbólicos” não podem ser menosprezados. E a eleição da gigante Fernanda Montenegro para a ABL precisa ser saudada exatamente neste sentido (como ela própria, com sua costumeira sabedoria e modéstia nada falsa, reconheceu em várias entrevistas). Mas, também, não dá pra celebrar Fernanda e, ao mesmo tempo, esquecer o que é a ABL. Então, lá vem História.

ABL: páginas e mais páginas de elitismo e flerte com o “poder”

Não faltam motivos para ter ranço em relação à ABL. Criada nos moldes da Academia francesa, a instituição sempre se deu o papel de ser guardiã das “tradições e valores” da sociedade brasileira. O que, não por acaso, quase que invariavelmente coincidiu com os interesses e perspectivas da elite nacional.

Foi assim, por exemplo, no período da Ditadura Vargas, quando a ABL foi muito mais do que conivente com o projeto ultrarreacionário da época, presenteando, em 1941, o próprio ditador com uma cadeira, através de uma manobra bizarra: a ABL transformou o ditador em “escritor imortal” em base à publicação (no mesmo ano da eleição) de seus discursos, decretos e entrevistas, em 11 volumosos volumes. E chamar qualquer um deles de literatura é um descalabro.

Aliás, o caso não é uma exceção. Apesar de ter em seu estatuto a declaração de que seu papel é celebrar os autores de “obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário”, no decorrer da História, uma das tradições mais consolidadas pela ABL é imortalizar mais políticos (como José Sarney), diplomatas, médicos (Ivo Pitanguy) e advogados do que escritores. E, vale dizer, Paulo Coelho é apenas um exemplo ainda vivo de que “qualidade literária” não é exatamente um critério determinante para a ABL.

Como também a ABL não flertou apenas com a Ditadura Vargas. Não dá pra menosprezar a conivência (inquestionavelmente criminosa) com a Ditadura Militar, de 1964 a 1985, como foi amplamente discutido num livro de Diogo Cunha, “Os intelectuais conservadores entre a cultura e a política” (2019), no qual o historiador mapeou a colaboração ativa dos imortais com o regime militar, reconhecida e gratificada por sujeitinhos nojentos e sanguinários como Castelo Branco, Costa e Silva e Médici.

“Não se fez apenas por meio de uma colaboração aberta por parte alguns imortais. Foi o comportamento do conjunto de seus membros, seus silêncios, seus diferentes graus de acomodação, a proximidade que eles mantinham com os representantes do regime, manifestada numa intensa sociabilidade, e a elaboração, difusão e circulação de um discurso conservador, que tiveram um papel mais importante”, escreveu o historiador.

Cadeiras reservadas pra “gregos”, não negros

Do ponto de vista das opressões, a história, literalmente, tende a tragédia pré-anunciada pela atitude fundacional de Machado, cuja recusa em aceitar Cruz e Sousa se deu fundamentalmente em função de seu temor em ter, ao seu lado, a presença de alguém que seria como um espelho incômodo de sua própria negritude, com a qual ele nunca conseguiu lidar direito, exatamente por isto o colocar fora dos padrões da elite celebrada pela ABL. Algo, diga-se de passagem, estimulado por seus pares, como Joaquim Nabuco.

Poeta Cruz e Sousa

“Mulato, ele foi de fato, um grego da melhor época. Eu não teria chamado Machado de Assis de mulato e penso que lhe doeria mais do que essa síntese. (…) O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho isso nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego”, escreveu Joaquim Nabuco, em carta a José Veríssimo, após a morte de Machado de Assis, em 1908.

Desde então, dá pra contar nos dedos das mãos (uma, pra ser exato), o número de negros que integraram a ABL. Hoje, o único é Domício Proença Filho que, apesar de suas contribuições literárias para o tema racial, lamentavelmente tem um jeito meio Machado de Assis no que se refere ao tema racial.  Em 2016, quando se transformou no segundo negro a assumir a presidência da ABL, fez questão de dizer que, na presidência, não faria da questão racial “uma bandeira”. “A Academia não discutirá isso. A questão racial nunca foi sequer aventada aqui, seja contra ou a favor. Eu não fui cota. Academia não me elegeu por eu ser um negro escritor”, disse.

Machado de Assis e membros da ABL em 1901

E foi além. Na contramão dos festejos daqueles que o viam como símbolo da “representatividade” e do “empoderamento”, Proença declarou: “Costumo dizer que sou um escritor negro, e não um negro escritor. Me apresentei como um candidato orgulhoso da minha afrodescendência e tenho que dizer que o problema racial não interferiu nem a favor, nem contra. Não posso afirmar se existe preconceito velado, porque não estou dentro da cabeça das pessoas”.

Declarações que ecoam de forma particularmente equivocadas, pra dizer o mínimo, quando se considera a história da presença de negros e negras na ABL. Nome particularmente exemplar do muro construído entre negros e a Academia foi o pré-modernista Lima Barreto, principalmente em função da qualidade e importância da obra do autor, um dos mais geniais “cronistas” de sua época, em incontáveis artigos e crônicas para os jornais de sua época; em livros de fato imortais, como “O triste fim de Policarpo Quaresma”, “Clara dos Anjos”, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”; ou em contos que, até hoje, são parâmetros de qualidade para este gênero literário, como “O Homem que sabia javanês” e “A nova Califórnia”.

Como nunca teve papas na língua, o mesmo Lima Barreto que chamava os “imortais da Academia” de “diplomatas chics” (isso quando estava querendo ser “diplomático”), tentou entrar na ABL duas vezes, em 1917 e 1921. E não por ser um hipócrita, mas, sim, por ser consciente tanto de seu valor como homem negro quanto como escritor, como escreveu na revista “O Careta”, depois da segunda recusa e pouco antes de sua morte prematura, com apenas 40 anos, em 1922: “Eu sou escritor e, seja grande ou pequeno, tenho direito a pleitear as recompensas que o Brasil dá aos que se distinguem na sua literatura”.

Escritor Lima Barreto

Aliás, vale dizer que se não bastasse o racismo que transformou Barreto em “persona non grata” na ABL, também contribuíram uns tantos outros perversos preconceitos. Marcada pela marginalização, a exemplo do que acontece com tantos outros negros, negras e membros de outros setores oprimidos, a vida de Barreto foi pra lá de conturbada, em função da luta contra o alcoolismo e problemas com a saúde mental, o que lhe rendeu pesarosas passagens pelos terríveis manicômios da época. E, evidentemente, tudo o que os elitistas imortais da Academia não queriam ver dentre eles era um boêmio com este perfil.

No dicionário da ABL, imortalidade, por muito tempo, foi substantivo masculino

Mais recentemente, a fantástica Conceição Evaristo tornou-se outro exemplo desta história lamentável, quando, em 2018, uma campanha espontânea realizada nas redes sociais resultou em dezenas de milhares de apoiadores para que ela se tornasse a primeira mulher negra na ABL; mas cujo “impacto” na Academia pode ser exemplificado pelo resultado da eleição: ela teve um único voto.

Escritora Conceição Evaristo teve apenas um único voto favorável para se tornar a primeira mulher negra na ABL em 2018

Mineira, filha de uma lavadeira (que tinha como livro-de-cabeceira “Quarto de despejo”, de Maria Carolina de Jesus, outra “ignorada” pela ABL, como contou uma vez numa entrevista), Evaristo é autora de obras geniais, como as coletâneas de contos “Insubmissas lágrimas de mulheres” e “Olhos d’água”; os romances “Ponciá Vivêncio” (2003) e “Becos da memória” (2006), além de uma vasta e inestimável contribuição em poesias, contos e crônicas publicados nos “Cadernos Negros”, desde o surgimento do projeto, em 1990.

Nem vou comentar o peso que o fato de Evaristo ainda ter uma trajetória marcada pela militância teve na decisão dos “imortais”. Muito menos sobre como eles não devem ter parado um só segundo para considerar “imortalizar” uma autora que, com uma escrita ultra alicerçada em suas experiências pessoais, têm contos que são referências internacionais para a temática das mulheres negras LGBTIs, como “Isaltina Campo Belo” e “Beijo na face”.

Mas, pra voltar a Fernanda, também vale lembrar que, até ontem, dentre seus atuais 40 membros, havia apenas cinco mulheres dentre os atuais membros de uma instituição cuja história de machismo é, no mínimo, escabrosa. Em 1930, quando houve a indicação da primeira mulher, Amélia Beviláqua, a candidatura foi rejeitada sob a justificativa de que o estatuto decretava que a imortalidade estava reservada apenas a “brasileiros” que tivessem dado contribuições para a literatura. E não “brasileiras”. Simples e asqueroso, assim.

E, pra evitar novos problemas, em 1950, quando, no pós-II Guerra, a mulherada já ensaiava a rebelião que iria caracterizar os anos seguintes, a ABL se antecipou, votando um novo Regimento Interno que não deixava margem para dúvidas ou debates lingüísticos: a ABL é composta por “membros efetivos (…) eleitos, dentre os brasileiros, do sexo masculino”.

Resumo da ópera sexista: somente 80 anos depois de sua fundação, em 1977, a ABL se curvou ao talento literário das mulheres, elegendo Raquel de Queiróz (autora de “O Quinze”). E, mesmo assim, a história seguiu em marcha lentíssima. Em 1980, foi a vez de Dinah Silveira de Queiroz; a terceira foi Lygia Fagundes Telles (1985), seguida de Nélida Piñon (1989), Zélia Gattai (2001), Ana Maria Machado (2003), Cleonice Berardinelli (2009) e Rosiska Darcy (2013).

Fernanda Montenegro: que o “símbolo” abale as colunas da Academia

Enfim, não tenho dúvidas que Fernanda Montenegro sabe onde está pisando. E, apesar de não ser dado a ilusões, esperanças vãs e muitos menos à crença em milagres, só posso desejar que, em sua passagem pela Academia, ela ajude a estremecer e colocar abaixo colunas tão solidamente fincadas numa história de exclusão e elitismo, fazendo jus à simbologia que mencionei no começo.

Algo que, tudo indica, Fernanda tem em mente. “Já não teve nenhuma mulher [na academia]. Isso [mulheres ocupando cadeiras na ABL] não vai parar. Vai chegar uma hora que talvez tenha mais mulheres do que homens. Certamente, a chegada das mulheres vai ter força e será aceito. É do tempo atual, da justiça em torno da existência humana”, disse em entrevista para a GloboNews.

Fernanda Montenegro recebeu 32 votos, dos 34 votantes. Aos 92 anos, ela será a primeira mulher a assumir a cadeira nº 17

Como também, tem plena noção do contexto em que foi eleita, sem esconder, diga-se de passagem, uma postura crítica em relação à gênesis do bolsonarismo, que poucos do meio artístico- cultural ousam verbalizar. “Esse atual governo é uma forca, um vômito, é uma apunhalada no ventre. Mas vai acabar. Uma hora vai acabar. A grande tristeza é que ele entrou pelo voto. (…) As pessoas votaram no Bolsonaro. E por que votaram? Talvez porque os governos anteriores cumpriram só metade do prometido. Talvez tenha causado uma desilusão”, concluiu.

E, me parece, também, que o aspecto simbólico da escolha não escapou ao atual presidente da ABL ao divulgar o resultado da votação que elegeu a atriz, apesar de ser autora de apenas dois livros – sua autobiografia “Prólogo, Ato, Epílogo”, escrita em 2019, em parceria com Marta Góes, e “Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico”.

Uma declaração que deixa um tanto evidente que a escolha de uma figura com a atriz, com toda a bagagem que ela carrega em termos de trajetória e posturas críticas, ecoa como um recado ao país, diante da situação bisonha de ataques à cultura e à arte sob a qual estamos vivendo

“Fernanda Montenegro é um dos grandes ícones da cultura brasileira. Intelectual engajada e sensível leitora do real. Sua presença enriquece os laços profundos da Academia com as artes cênicas. Com ela, adentram, luminosos, tantos, personagens, que marcaram gerações, passado, presente e futuro”, disse Marco Lucchesi.

Evoé!