Tácito Chimato

No último dia 14, a indicação de Maurício de Sousa à Academia Brasileira de Letras sofreu seu primeiro revés, ao entrar em rota de concorrência com o jornalista James Akel, autor de “Marketing Hoteleiro com Experiências”. Em entrevista, Akel argumentou que: “quadrinhos não são literatura”, não tendo espaço, portanto, em uma instituição fundada sob o objetivo de promover a literatura brasileira.

Não cabe aqui questionar ou não a natureza da ABL. Em texto sobre a indicação da atriz Fernanda Montenegro, já delimitamos nossa posição sobre essa instituição, representante clássico do reacionarismo das elites brasileiras e sua visão higienizada de arte.

Ainda assim, inegavelmente, se o argumento de que “Fernanda Montenegro é um dos grandes ícones da cultura brasileira”, delimitando “cultura” como um elemento muito mais amplo que apenas a literatura, sem dúvida, não só a indicação de Maurício de Sousa é mais do que justa, como é ridículo uma candidatura para a pura e simples concorrência, e o argumento utilizado por James Akel.

No dia 27 de abril saiu o resultado da eleição, e Maurício de Sousa perdeu a vaga, não para Akel, mas para o filólogo Ricardo Cavaliere.

Turma da Mônica

Para aqueles que não viveram o Brasil nos últimos 60 anos, Maurício é o criador da “Turma da Mônica”, a história em quadrinhos mais bem-sucedida no Brasil e um dos maiores casos de sucesso no mundo – sendo sua empresa, a Maurício de Sousa Produções (MSP), a 4º maior produtora de desenhos do mundo, segundo a Forbes em 2015. Mônica há muito não concorre com o Menino Maluquinho, mas sim com Mickey e Astroboy. Assim, sem dúvida, ele é um dos autores mais lidos do país, e, portanto, nada mais justa sua presença na Academia, uma vez que a mesma decidiu “dilatar” seu conceito.

Por isso mesmo, é necessário dissociar a figura de Maurício do autor de histórias leves e infantis da Turma do Limoeiro com o Maurício de Sousa empresário, dono de um conglomerado imenso do país. Ainda que o autor tenha criado uma cartela sem fim de personagens que povoam gibis, Mônica já cresceu muito: está em embalagens de ultraprocessados e maçãs. Tem três filmes de sucesso nas bilheterias nacionais, flerta com grandes grupos privados da educação e já participou de ações minimamente questionáveis, como o mais recente caso da “Turma da Mônica: a indústria da defesa brasileira”, lançado em 2018, onde a turma, junto a um simpático militar de alta patente, conhece o trabalho do Exército brasileiro, sem jamais pôr em xeque o papel nefasto dessa organização ao longo de sua história.

O que é a Maurício de Sousa Produções?

Antes de tudo, é necessário delimitar a partir de alguns tópicos quem de fato é Maurício de Sousa. Repetidamente atribuído ao rosto de um senhor sagaz e simpático, Maurício é costumeiramente visto como um avô bondoso, defensor das crianças e até mesmo um grande alfabetizador, um homem que, munido de boas intenções, sempre pensou em sua obra como um projeto educacional. Mas os fatos evidenciam que não é exatamente assim que o “pai” da Turma da Mônica atua.

Criada por Maurício em 1959, a MSP (como seu perfil na internet se refere) sempre foi cercada de mistérios. O pouco que se conhece sobre a vida privada de Maurício é somente o que próprio permite: sabe-se que atuou durante anos como jornalista policial, até começar a publicar suas tirinhas em jornais impressos. Seu primeiro personagem, o cachorro azul Bidu, passou a chamar a atenção do público infantil, levando o autor a se aventurar nesse meio. Na medida em que seus filhos, na época pequenos, cresciam e interagiam com as crianças de seu bairro, Maurício ia criando seus personagens baseados no seu entorno e nas memórias de sua própria infância: Mônica seria sua filha mais velha, e portanto, a mais mandona. Cebolinha o menino genioso que pega no pé da Mônica, mas no final é um leal amigo. Cascão seria o menino mais humilde, avesso a banho e com uma imaginação enorme para inventar brincadeiras. E Magali seria a melhor amiga de Mônica, baseada em outra filha fanática por melancias. O sucesso nos jornais eram tamanhos que o autor passou a registrar a imagem dos seus personagens como propriedade intelectual em 1966.

A partir daí, Maurício passou a acumular cada vez mais renda pelo licenciamento de suas criações, até que, apenas 4 anos depois, lançou sua própria revista, em 1970. Com isso, o autor megafonou suas historinhas distribuindo-as em bancas, tornando-se cada vez mais uma figura onipresente em qualquer biblioteca pública brasileira, em um caso clássico de “mirar em um lugar para acertar outro”: quanto mais os personagens da MSP eram distribuídos, maior era a participação deles em peças publicitárias. Um contrato icônico celebrado nessa época é do conglomerado alimentício Cica (atualmente administrada pelo grupo estadunidense Cargill), onde os personagens ilustravam comerciais de groselha, vinagre, enlatados, até o produto mais conhecido: a massa de tomate “Elefante”, ilustrada pelo personagem Jotalhão desde 1979.

Na mesma época, Maurício de Souza passa por suas primeiras aparições públicas, mas sempre como um empresário à lá Sílvio Santos, se pronunciando muito mais em torno dos negócios para além dos quadrinhos da MSP. Em diversas entrevistas no programa Roda Viva, o mesmo sempre atribuiu seu sucesso ao posicionamento político da marca: “A Turma da Mônica não empunha bandeiras, ela assume-as com a sociedade”. Daí suas histórias nesse período nefasto nunca entrarem em choque com o Regime Militar, por um entendimento consciente de que, enquanto um debate não for devidamente aceito, não há porque assumi-lo. Tais aspas, porém, soam um tanto estranhas quando se lembra do contexto em que a MSP cresceu, e sobretudo no peso que a própria sempre deu para outros setores para além dos quadrinhos.

Henfil, outro popular cartunista entre a classe operária nos panfletos das greves dos anos 1980, acusava-o para quem quisesse ouvir de que Maurício era um personagem, um homem que sempre fugiu do debate político em prol de seus lucros já volumosos sobre a publicidade infantil de suas criações. Maurício sempre negou veementemente tais acusações, dizendo inclusive que ajudava colegas prejudicados nas redações, empregando-os na MSP. Mas o fato é que, com o lançamento das revistinhas, não se sabe em que momento Maurício de Sousa deixou de ser autor e passou a atuar como empresário de sua própria marca.

Por exemplo, durante décadas, não havia controle se todos os personagens de autoria da MSP eram de fato de sua criação ou um desses quadrinistas contratados. O que se sabe, de fato, são duas coisas: a primeira é que há pelos 40 anos Maurício não fala sobre seu trabalho com o lápis e trocou a prancheta pelas mesas de reunião dos grandes empresários, só voltando para as artes para as historinhas de “Horácio”, que até hoje mantém sob sua batuta.

A segunda é que a curva vertiginosa de lucro publicitário que a MSP sempre caminhou lado a lado com a expansão do consumo de ultraprocessados no mercado brasileiro. Essa forma de alimento, de rápido preparo e pouco nutritiva, está no Brasil desde a década de 1950, a exemplo do Leite Moça. Mas, a partir do final dos anos 1980 (1987 a 1988) o setor começou a tomar fatias cada vez maiores na mesa do brasileiro – saindo de 18,7% dos alimentos consumidos até 21% de 1995 à 1996  -segundo o artigo “Participação crescente de produtos ultraprocessados na dieta brasileira”, de Ana Paula Bortoletto Martins.

Um exemplo é a história com o conglomerado alimentício Nissin Food Products. No Brasil desde 1975 como Nissin-Ajinomoto, a marca viu seus negócios passarem a se expandir em 1980 no detrimento do consumo de outras massas. A partir daí, outras marcas tradicionais como a Adria passaram a também investir no macarrão instantâneo, levando a Nissin a uma reformulação de diversas linhas. Em 1986, como tática para atingir o segmento infantil, a marca sela um contrato com a MSP para própria linha de miojos supostamente nutritivos, estampados com a Turma da Mônica nas embalagens multicoloridas. Hoje, a Nissin tornou-se um monopólio sobre a fabricação de macarrões instantâneos no Brasil, que é 10º maior consumidor do produto no mundo, com a parceria seguindo firme e forte, a despeito das mazelas que esse e outros alimentos da mesma categoria causam a saúde, sobretudo sob o público infantil, alvo preferencial das parcerias da MSP.

A título de exemplo, o site “O joio e o trigo” em 2022 comparou que, enquanto a Organização Mundial da Saúde recomenda que não se exceda no consumo de 2 gramas por dia de sódio, só o pacote de tempero do Nissin Galinha Turma da Mônica Suave tem mais de 1,5 gramas. Daí decorre não só o caráter do Maurício como um empresário bem-sucedido, mas como um verdadeiro tubarão do mercado, que ao que parece, nunca se importou com quais produtos de fato estava cedendo suas criações, contanto que isso permitisse sua marca ocupar o maior número de frentes possíveis.

Vale lembrar que não só o miojo, mas os ultraprocessados como um todo tem se tornado alternativas para a fome na mesa do brasileiro com o aumento da inflação, conforme indica a pesquisa do grupo de consultoria de consumo Kantar. Enquanto o consumo de miojo cresceu 1% de 2021 a 2022, o macarrão tradicional entrou em queda com menos 05%. Em reportagem, a Money Times anota que em 2022, no mercado Pão de Açúcar, o miojo Nissin de galinha caipirinha sai a R$ 2,15, enquanto o espaguete Adria sai a R$ 3,85. No Atacadão, o mesmo miojo sai a R$ 1,95, enquanto o mesmo espaguete sai a R$ 3,29. Não é só a Nissin que está lucrando com a fome do brasileiro. Mas, indiretamente, a MSP também enche seus bolsos enquanto um de seus parceiros envenena os filhos e filhas da classe trabalhadora.

Quadrinhos não são literatura?

Outro ponto polêmico da discussão é a fala de Akel ao argumentar que “quadrinhos não são literatura”. Apesar de soar ofensivo, é necessário pontuar: ele não mentiu.

Quadrinhos são uma linguagem própria, que pode ou não ser dotada de qualidades literárias a depender da proposta de seu autor. Mas, assim como Fotografia não necessariamente deve ou não ter alguma dessas qualidades para ser considerada uma forma de arte, não necessariamente quadrinhos também tem. A grande diferença dos quadrinhos de outras formas de arte é que, no compasso em que inúmeras formas de expressão artística ganharam reconhecimento com o passar dos anos, os quadrinhos, ao menos no Brasil, nunca gozaram de um devido espaço, seja como um projeto educacional, seja como uma linguagem artística.

Daí boa parte das referências no Brasil girarem em torno ora da MSP, ora de outros quadrinhos mais “adolescentes”, que também só obtiveram alcance a partir do momento em que podiam contar com adaptações nas televisões: X-Men, Tartarugas Ninjas, e até mesmo os mangás japoneses, sempre tiveram muito mais alcance em suas versões animadas na televisão que de fato como um objeto impresso. Não referenciamos Alberto Breccia como na Argentina, mesmo ele sendo considerado um dos maiores quadrinistas da história e talvez o maior quadrinista latinoamericano do mundo. Não entendemos “V de Vingança”, confundindo a moral da história com uma alegoria às manifestações do “Occupy Wall Street”, para o desespero do autor Alan Moore, que exigiu que seu nome fosse retirado dos créditos da adaptação em filme – que teve um alcance infinitamente maior que a versão impressa. Fora a Laerte, sabemos listar nos dedos os quadrinistas do Brasil além de Maurício de Sousa e Ziraldo.

Esse fato, porém, diz muito mais sobre as diferenças de um país marcado pela desigualdade e um capitalismo especialmente embrutecido, no qual a falta de acesso a arte afeta todos os segmentos. Vale lembrar que, recentemente, publicamos um texto com uma pesquisa da PNAD Contínua, em que se constava que o número de crianças entre 6 e 7 anos que não sabem ler foi de 1,4 milhão para 2,4 milhões entre 2019 e 2021. Chega a soar ridículo querer que mais pessoas devam ter acesso a quadrinhos em um cenário tão catastrófico quanto esse, onde a escola torna-se um reprodutor cada vez maiores das mazelas do sistema capitalista, como podemos ver recentemente nas manchetes.

Quadrinhos são uma forma de arte distinta, que vive e sobrevive a despeito ora da ignorância de burgueses recalcados como Akel, ora de um sistema que nos esmaga cada vez mais para se manter sobre nosso suor. Não é um carimbo ou não da ABL que mudará esse fato, mas sim uma luta concreta contra o capital que nos dê suporte para se expressar criativamente, seja ensinando as mais diversas formas com o qual isso é possível, seja não nos condenando a penúria de um trabalho que só nos explora.

Ficam as aspas de Alan Moore, autor de diversos clássicos e talvez um dos quadrinistas mais bem-sucedidos na história: “Eu nasci no bairro mais pobre de minha cidade, no interior da Inglaterra, onde minha família a gerações criava porcos. Meu mundo era o cinza inglês e os tons monocromáticos de um chiqueiro. Eu não sabia o que era cor, até ver um gibi do Super Homem”. Que lutemos por um futuro com mais cor, e menos oportunismo de empresários que se empregam de seu talento para esmagar a classe trabalhadora. Adiante!