Brasília - A presidenta Dilma Rousseff e o vice-presidente, Michel Temer, participam da solenidade onde recebem os cumprimentos de oficiais-generais no Clube do Exército (Antonio Cruz/Agência Brasil)
Mariucha Fontana

Na narrativa predominante liderada pelo PT, em 2013 teria havido uma explosão social reacionária contra um governo supostamente progressivo. Complementar a ela, pinta-se um quadro em que a burguesia queria impor ataques liberais, aos quais o governo do PT supostamente resistia.

Segundo essa narrativa, em 2014 a onda conservadora teria sido vitoriosa no Congresso Nacional e voltaria a ganhar as ruas em 2015, dessa vez para sustentar um golpe.  A realidade, porém, não confirma a narrativa do PT. Nem a cultivada pelos liberais e pela direita, de que eles próprios expressariam o desejo e as expectativas das ruas. 

Se a extrema direita capitalizou, em 2018, o descontentamento, foi porque não houve uma alternativa de classe, à esquerda, revolucionária e socialista em oposição ao governo do PT, organizada a tempo e grande o suficiente para forjar, junto e como parte daquelas lutas, outro caminho. O PSOL adotou a mesma visão do PT no desenrolar da história. O PSTU, tendo uma política correta, ainda não estava forte e preparado o suficiente para tal.

Por que a popularidade de Dilma estava abaixo do volume morto

O PT desviou as lutas das ruas para o processo eleitoral e ganhou por pouco as eleições de 2014, esquerdizando o discurso prometendo ser o “mal menor” e não mexer em direitos.

Mas o quarto mandato do PT como governo da burguesia, perante à crise capitalista, fez o que o mercado queria. Nomeou um neoliberal do Bradesco para ministro da Fazenda, Joaquim Levy, jogou a crise nas costas da classe trabalhadora, que ficou furiosa, com razão, com o estelionato eleitoral.

O governo perdeu grande parte de sua base social. Isso se deveu a três fatores. Primeiro, à crise econômica, que lançou milhões de trabalhadores no desemprego e na penúria. O PIB cresceu 0,1% em 2014, e em 2015 e 2016 teve crescimento negativo (-3,8% e -3,6%), a maior recessão do século. Depois, à política do governo, um ajuste fiscal atacando os direitos que prometeu preservar. E finalmente às delações, indícios e evidências de corrupção, que provocaram mais revolta.

Sua popularidade desabou erodindo também a base parlamentar. A maioria da burguesia, em princípio, esteve contra o impeachment. Febraban, Fiesp e mesmo TV Globo defendiam a governabilidade contra Cunha. Mas Dilma perdia condições de governabilidade dia a dia.

Ao perder respaldo popular, o governo, o PT e o próprio Lula deixaram de ter utilidade para a burguesia: a capacidade de controlar os trabalhadores e o povo e convencê-los a suportar políticas reacionárias em troca de poucos benefícios sociais. Enquanto foram governos úteis, as denúncias de corrupção não conseguiram derrubar Lula nem impedir as eleições de Dilma. Agora foi diferente. Dilma chegou nos níveis de popularidade de Collor: 9% de apoio. Lula disse que a aprovação dela estava “abaixo do volume morto”.

Manifestações de 2015

O ano de 2015 foi cruzado por greves, lutas e protestos de rua. Dessa vez, a corrupção, e depois o impeachment, moveu grandes manifestações. A composição social era majoritária de setores médios, e na sua direção estavam organizações liberais como MBL e Vem Pra Rua, apoiando-se na operação Lava Jato, na mídia e nas redes sociais.

A classe operária não estava nas ruas, mas estava contra o governo. Exemplo emblemático foi a grande vaia aos sindicalistas do ABC na assembleia dos trabalhadores da Volkswagem quando se tentou defender o governo.

Mas, mesmo as ruas de 2015, que eram diferentes das de 2013 e tinham direção ultraliberal, não apoiavam Temer, nem ditadura, nem as pautas do MBL. Segundo pesquisa de Esther Solano e Pablo Ortellado, as manifestações que exigiam a renúncia de Dilma, realizadas em São Paulo em 15 de março, 12 de abril e 16 de agosto, mostraram que os manifestantes não tinham acordo com a pauta dos grupos ultraliberais que as dirigiam. 

Pesquisas

Opinião dos manifestantes em 2015

Totalmente favorável 

88,6% – O Estado deve prover serviços de saúde para todos os brasileiros
74,3% – Os serviços de saúde devem ser gratuitos
92,3% – O Estado deve prover educação para todos os brasileiros
86,9% –  A educação pública deve ser gratuita           

Fonte: Esther Solano e Pablo Ortelado

RELEMBRE

As políticas burguesas dos governos do PT

Soberania, reprimarização e meio ambiente

Subalternos ao imperialismo e sociais-liberais, enquanto durou o crescimento e o preço alto das commodities, houve pequenas concessões aos mais pobres. O suposto neodesenvolvimentismo de Dilma, com isenções fiscais bilionárias a grandes empresas, serviu para enriquecer os grandes empresários. A desindustrialização e a reprimarização da economia nivelaram por baixo os salários, geraram empregos precarizados e seguiram as privatizações. A usina de Belo Monte talvez seja um dos maiores símbolos de agressão ambiental da história do país.

Opressões

É evidente que com Bolsonaro e a ultradireita não há comparações possíveis.

Contudo, a luta contra as opressões não pode se resumir a declarações de boas intenções nem ser jogada para debaixo do tapete. Os governos do PT, em função de alianças com a direita e a subordinação à lógica do capital, na maior parte das vezes, deixaram de lado o combate às opressões. Este, quando muito, foi reduzido a concessões pífias e implicou retrocessos.

Mulheres

A diferença salarial entre mulheres e homens aumentou nos governos petistas. Em São Paulo, por exemplo, os salários baixaram de 90% para 83,7%. Apesar da promulgação da Lei Maria da Penha, não houve a implementação necessária. A violência seguiu crescendo nos governos petistas. O Brasil continuava sendo o 5º país no mundo em feminicídio.

Negros e negras

Como dizia Malcolm X, “não há capitalismo sem racismo”, e os governos capitalistas do PT foram exemplos lamentáveis disso. O genocídio da juventude negra aumentou. Segundo o Atlas da Violência de 2017, mais de 500 mil pessoas foram assassinadas entre 2005 e 2015; 318 mil jovens entre 15 e 29 anos e, de cada 100 vítimas, 71 eram negras. Também eram negras 65,3% das mulheres assassinadas. Sob os governos do PT, foi aprovada a Lei Antidrogas, responsável pelo encarceramento em massa da juventude negra e pobre. O encarceramento feminino cresceu 567% entre 2000 e 2014.

LGBTIs

Em função de acordos com a direita, segundo o Grupo Gay da Bahia, cresceu a violência lgbtifóbica. Sob Lula, 163 LGBTIs foram assassinadas ao ano; no final do mandato Dilma, 445. Dilma se comprometeu a preservar os “valores da família tradicional” na chamada “Carta ao Povo de Deus”, e os direitos LGBTIs foram rifados, como no veto ao inofensivo “kit anti-homofobia” e no engavetamento do PLC 122, que criminalizaria a homofobia.

Repressão e criminalização das lutas

As medidas dos governos petistas fortaleceram institucionalmente os militares, a repressão e a criminalização dos lutadores, como a ocupação militar do Haiti pelas tropas brasileiras sob Lula; ou o protocolo de Garantia da Lei e da Ordem de 2014, editado pelo Ministério da Justiça e Estado-maior das Forças Armadas no governo Dilma. A chamada Lei Antiterrorismo, sancionada por Dilma, constituiu-se em uma nova arma nas mãos do Estado contra lutadores e manifestações de rua.

Polêmica 

Impeachment não é golpe e jabuti não sobe em árvore

Michel Temer (MDB) foi vice de Dilma nos dois mandatos. Como diz o ditado: jabuti não sobe em árvore. Se subiu, alguém o colocou lá. 

Não houve golpe em 2016. Em política, um golpe ocorre quando uma disputa entre dois setores da classe dominante termina em uma mudança de regime político, em que o Estado não se organiza via democracia burguesa e deixa de se apoiar na independência dos três poderes para resolução dos conflitos internos à classe dominante. Apoiado nas Forças Armadas ou policiais, centraliza o poder numa ditadura ou até num regime fascista. Pode ser um golpe organizado por um setor das Forças Armadas, por um movimento fascista baseado em grupos armados ou até mesmo por um grupo civil apoiado por forças policiais e militares.

Quando existe a possibilidade de se impor um regime autoritário, a obrigação de um partido revolucionário é lutar com tudo contra o golpe, fazendo unidade de ação com todas as forças que defendam as liberdades democráticas, inclusive com o governo ameaçado pelo golpe, sem que isso signifique apoiar politicamente o mesmo.

No Brasil de 2015-2016, no entanto, não havia ameaça de golpe. Nada na realidade indicava uma mudança de regime político. A oposição burguesa não queria nem precisava de um golpe, porque a maioria absoluta da população desejava que o governo Dilma fosse embora de uma forma ou de outra (por impeachment, renúncia ou novas eleições). 

Dois campos burgueses em luta

O que aconteceu no Brasil foi a luta entre dois campos burgueses utilizando rasteiras e manobras sujas típicas da democracia burguesa. Durante anos, o PT, para governar, utilizou a corrupção, o toma-lá-dá-cá no Congresso e alianças com algumas máfias burguesas do país, como as empreiteiras. E usou favores do Estado para comprar aliados como MDB, PP e PSD da mesma forma que fez FHC. Em 2015-2016, a oposição burguesa, apoiando-se na impopularidade do governo, na crise do país, nas denúncias de corrupção e expressando as divisões interburguesas, tomou a ofensiva, com campanhas reacionárias da imprensa e medidas judiciais arbitrárias, como a condução coercitiva de Lula e a divulgação das escutas telefônicas entre o ex-presidente e Dilma. Mas isso não significa um golpe ou mudança de regime.

Ao perderem base social e ameaçados pelo impeachment, Dilma e o PT passaram a apelar à esquerda e às organizações sociais, não com o argumento da defesa política do governo (indefensável), mas com a campanha contra o suposto golpe.

O PSTU foi contra o impeachment porque era uma decisão de um Congresso de corruptos que trocaria seis por meia dúzia. Temer, o vice, seria igual ou pior que Dilma e era tão rejeitado quanto ela. Isso não significava, porém, entrar em campanha contra um suposto golpe que, na verdade, era uma campanha pelo “fica Dilma”, que aplicava um projeto social liberal.

O PSTU defendeu tirar todos eles e realizar eleições gerais. A maioria da classe operária e do povo estava furiosa com o governo do PT, mas também estava contra Temer, Cunha, Aécio, PSDB e a maioria do Congresso Nacional.

O governo Dilma conformava um campo “progressista”?

Em “defesa da democracia” “contra o golpe” diziam que Dilma representava um campo progressista. Nesse suposto campo progressista estavam os partidos de direita aliados do PT, como MDB, PP, PSB, Renan Calheiros, Kassab, Kátia Abreu, Collor, Maluf e Temer por muitos anos. 

A Frente Povo Sem Medo (MTST e  PSOL) tinha críticas ao governo, mas dizia ser preciso defendê-lo  contra o golpe porque seria um mal menor. Mas se aliar ao governo do PT contra um golpe inexistente era abdicar defender um campo de classe e, pior, deixar a classe trabalhadora à mercê da oposição burguesa e da direita tradicional. 

Luta de classes, a verdadeira divisão da sociedade

A verdadeira divisão em que se assenta a sociedade não é entre diferentes campos burgueses. É entre a burguesia e os trabalhadores. 

No entanto, o campo dos trabalhadores não tem forte representação política independente nas lutas e nas ruas e, quase sempre, desconhece a força que teria sua união e luta. Essa força, e a consciência dessa força, só pode vingar tendo independência da burguesia. Mas em 2015-2016, quase toda a esquerda se rendeu à defesa do governo do PT com seus aliados burgueses. Quando era preciso o oposto: organizar um terceiro campo, de classe, que colocasse para fora todos os corruptos, fizesse os ricos pagarem pela crise e lutasse por um governo socialista dos trabalhadores.

Leia também

Do pseudogolpe de 2016 ao golpismo bolsonarista: Narrativas da esquerda em meio à crise da democracia liberal