Pablo Biondi, de São Paulo (SP)
Depois de ameaçar intervir sobre o STF (Supremo Tribunal Federal) em retaliação ao cerco judicial que se forma contra o presidente e sua família, de desfilar tanques de guerra em frente ao Congresso Nacional e de celebrar um ato nacional a seu favor em pleno dia 7 de setembro, Jair Bolsonaro parece crer que conseguiu alguma sobrevida para seu mandato, intimidando forças oposicionistas e criando condições para uma negociação acerca de seu futuro (e inclusive acerca da sua situação jurídica em termos de direito penal).
A quantidade de participantes nos atos está longe de ser um fator que possa reverter as tendências atuais da conjuntura, na qual prevalece o derretimento do apoio ao presidente. Ainda assim, a presença verificada e o grau de organização para essas iniciativas não são negligenciáveis, demonstrando que o governo não está morto politicamente – ainda que sem condições de promover uma ofensiva mais contundente. O que está dado para Bolsonaro, nesse instante, é mobilizar seus apoiadores e, mais do que isso, oferecer-lhes uma resposta às prisões que o STF decretou contra alguns influenciadores bolsonaristas.
Em seu discurso, Bolsonaro investe contra um único alvo: o ministro Alexandre de Moraes. O teor geral da mobilização volta-se contra o STF como um todo e, em certa medida, contra o Congresso Nacional, mas a linha adotada pelo presidente focaliza o magistrado que está incumbido de apreciar a maior parte dos processos em que figura como réu. O tom adotado alterna entre ameaças e chamados à negociação: por um lado, projeta o ministro como o grande inimigo da nação, como a causa da conflagração na República – daí a exigência a Luiz Fux, presidente da corte constitucional, para que “enquadre” o colega de toga, sob pena de consequências negativas indeterminadas (como sempre, o tipo de represália é deixado para a imaginação dos leitores e ouvintes); por outro, afirma que o “malfeitor da vez” pode recuar em suas medidas, que ainda há tempo para se redimir e para pacificar o estado de coisas atual.
O artifício utilizado já é conhecido: oscilando entre “radicalismo” e “moderação”, Bolsonaro procura administrar o apoio do séquito que o idolatra e, ao mesmo tempo, ajustar-se a certos padrões mínimos fixados pela institucionalidade e pelo sistema político. Para sobreviver no cargo e ser competitivo nas próximas eleições, o atual ocupante do Palácio do Planalto vive desse jogo duplo: ora acentua as tensões para falar ao coração fanático dos bolsonaristas de base, ora recua em tom apaziguador, reivindicando para si a defesa da democracia e projetando nos adversários o risco da ruptura. É uma espécie de “kautskismo às avessas”, no qual o mandatário jura lealdade à ordem constitucional, afirmando que só abandonará os marcos da legalidade se “o outro lado” o fizer primeiro, como se suas ações fossem meramente reativas, isto é, como se fossem atos de legítima defesa num cenário em que a própria constituição já teria sido rasgada pelos agressores, em especial pelos membros da Suprema Corte.
Apoiando-se, ainda, numa retórica comum em certas igrejas, Bolsonaro fala como se fizesse parte de um grupo perseguido. Refere-se aos bolsonaristas detidos pela Polícia Federal como presos políticos; menciona uma prática de censura contra as ideias que representa em nossa sociedade; anuncia uma espécie de “macarthismo invertido”, como se os conservadores estivessem na mira das autoridades apenas por professarem um pensamento supostamente distinto do discurso hegemônico; e assim por diante, sempre convocando sua base social ao momento catártico de se dizer “Basta!”, de mandar às favas as regras de um jogo cuja lisura é permanentemente colocada em suspeição.
Por mais que o êxito de uma eventual intentona golpista de Bolsonaro seja improvável – o que se pode afirmar em razão da desconfiança crescente de segmentos do grande capital nacional em face do governo, das reticências da cúpula militar em relação ao uso político da imagem das Forças Armadas no atual mandato e do enfraquecimento internacional do populismo conservador “à la Steve Bannon” –, fato é que, desde Getúlio Vargas, não há no Brasil uma movimentação bonapartista de tamanho volume. Pode-se dizer que o maior risco hoje não é tanto o sucesso de um golpe de Estado, mas antes a indeterminação política e institucional que uma tentativa de golpe poderia causar, ainda que fracassada num primeiro momento.
Não se sabe ao certo qual seria o real comportamento das bases das Forças Armadas (e mesmo dos setores da cúpula mais envolvidos nos negócios das empresas estatais) num cenário desse tipo, assim como também não se pode determinar a priori o grau de controle dos governos estaduais sobre as polícias militares. Também é difícil saber o quanto o Legislativo e o Judiciário seriam capazes de defender energicamente a democracia liberal, tendo em vista a sua conivência reiterada com diversos abusos de Jair Bolsonaro. Ora, toda essa imprevisibilidade é em si mesma disruptiva, até mesmo para os altos círculos de negócios.
Todas essas questões do cenário atual, no entanto, tendem a ser tratadas pela maior parte da esquerda brasileira sem nenhum respaldo na teoria marxista. O problema não é pensado nos termos da contradição entre Executivo e Legislativo que atravessa a democracia burguesa e projeta o bonapartismo como solução potencial[1], e sim nos termos de uma ferida não cicatrizada, de uma maldição que teria se abatido sobre a sociedade brasileira após o impeachment de Dilma Rousseff. Mais uma vez, a esquerda eleitoralista não perde a oportunidade de incorrer nos equívocos mais crassos: mesmo confrontada por um candidato a Bonaparte que testa regularmente os seus limites institucionais, ela ainda se ressente do naufrágio do governo de frente popular do PT.
Sobram discursos na esquerda hegemônica no sentido de que, diante das ameaças do bolsonarismo, dizem que o “golpe” já ocorreu em 2016, referindo-se ao impeachment da presidente petista. Isso gera uma estranha inconsistência entre a caracterização (bastante imprecisa) do governo Bolsonaro como um “governo fascista” e a minimização prática do risco que ele apresenta em função da banalização da ideia de golpe. Ao dizer que a catástrofe já ocorreu, essa esquerda petista ou filopetista vê no atual governo apenas a trivial continuidade do processo de esgotamento da “democracia”, um processo que “coincidiu” com o próprio esgotamento da sustentação política de Dilma Rousseff. Não à toa, as direções majoritárias do movimento sindical e popular, associadas ao petismo e ao filopetismo, envidaram esforços muito mais substanciais para preservar o mandato da então presidente do que para se contrapor ao presidente atual, sobretudo após a soltura e a reabilitação eleitoral de Lula.
Essa narrativa majoritária na esquerda assumiu ares canônicos com o endosso da própria ex-presidente Rousseff, que se referiu à sua deposição como um “golpe neoliberal”. Em entrevista recente[2], Dilma Rousseff fala num aprofundamento do “golpe”, que passaria pela aproximação entre Temer e os militares e pela prisão de Lula, uma medida que teria sido tomada para impedir a interrupção do golpismo em curso. Por óbvio, a mandatária deposta não se recordou das medidas dos governos petistas que fortaleceram institucionalmente os militares, como a ocupação militar do Haiti pelas tropas brasileiras na era Lula ou o protocolo de “Garantia da lei e da ordem” de 2014, editado pelo Ministério da Justiça e pelo Estado-maior das Forças Armadas em pleno governo Rousseff. Também não explicou a misteriosa presença de Michel Temer na sua vice-presidência, mantendo sempre uma relação de exterioridade entre o PT (a “vítima”) e os demais fatores da vida política, como o sistema político, o aparato de Estado e os interesses capitalistas (os “algozes”).
É compreensível que o PT, por razões de autopreservação, insista na velha cantilena do golpe. Aliás, o horizonte político imediato dessa narrativa é o fim do golpismo por meio da devolução da chefia presidencial ao partido que, nessa leitura, foi irregularmente apeado de sua posição. A receita contra esse golpe que se desdobra em novos golpes é uma só: eleger Lula em 2022. O que se mostra consternador, porém, é a pretensão de correntes que, supostamente em nome do marxismo, reproduzem esse discurso e abraçam essa estratégia (a qual será provavelmente descrita como uma “tática” que, em sua “flexibilidade”, favoreceria a construção do socialismo por linhas tortas e em última instância). Nada que seja surpreendente, quando se considera os rumos do neorreformismo desde que o governo Rousseff foi colocado contra as cordas: sua principal tarefa passou a ser salvar o PT dos aliados de ocasião que o abandonaram ao invés de reconstruir a direção política da classe trabalhadora. Isso gerou uma adesão crescente das forças de esquerda a um petismo até então combalido, e que o projetou como a principal e mais viável forma de representação política para os trabalhadores. Não admira que figuras públicas como Jean Wyllys tenham bandeado oficialmente para as fileiras petistas, dando consequência lógica à política majoritária do PSOL em seu conteúdo.
Quanto à tese do impeachment de Dilma Rousseff como golpe, cumpre notar que essa caracterização sempre foi o ponto de partida das análises dominantes da esquerda, num ponto de chegada, nunca o resultado de uma investigação lastreada em considerações acerca do regime e do sistema político, ou mesmo da dinâmica entre as frações da classe dominante e os grupos que a representam (incluindo-se aí o próprio PT, cogestor do capitalismo brasileiro e representante orgânico de determinadas frações capitalistas). Falar em golpe sempre foi um pressuposto, algo dado como autoevidente, e que dispensaria maiores explicações. A tese do golpe é uma espécie de postulado absoluto que se “comprova” em todo e qualquer evento negativo, pois todo evento negativo poderia ser remetido ao mal original. Tudo o que significa uma piora na vida das massas, assim, passa a ser associado ao “golpe de 2016” como uma totalidade que, em si mesma, explicaria tudo, além de gerar um forte sentimento nostálgico em relação ao período “pré-golpe”.
Numa abordagem marxista, não cabe citar o impeachment de Dilma Rousseff como um golpe de Estado, seja em razão da lógica interna da democracia liberal, seja em razão da natureza do processo político que culminou na queda do governo. No que diz respeito ao modelo liberal da democracia, inclusive na sua variante presidencialista, tem-se que o Legislativo detém uma supremacia legal em face do Executivo. O que caracteriza esse tipo de regime é a dominância do parlamento sobre o governo em última análise, uma configuração institucional que data das revoluções burguesas (a lei como máxima expressão da vontade geral, a vinculação dos atos administrativos a padrões de legalidade, a exigência de aval parlamentar para a consumação de certas medidas que competem aos governos etc.).
Portanto, a deposição do governante pelas casas legislativas apenas reafirma a relação de supremacia que é pressuposta nas entrelinhas da chamada “separação de poderes”. E essa deposição, que só pode ocorrer por meio de um ato parlamentar, requer um julgamento político a respeito do governo. Como toda decisão que se toma na esfera legislativa, o impeachment é objeto de uma deliberação que envolve cálculos políticos e, acima de tudo, negociações políticas, promessas, concessões etc. O juízo sobre crime de responsabilidade é um juízo politicamente mediado pelas condições de sustentação do governo em face do sistema político (constelação de partidos políticos em suas relações recíprocas), o que inviabiliza, portanto, as leituras legalistas que abundam nas organizações de esquerda.
Encontrando-se isolado politicamente, o governo Rousseff não foi capaz de se manter de pé, tendo sido decisivo, para tanto, o declínio dos grupos capitalistas com os quais mantinha relações mais estreitas (as empresas estatais e as empresas “campeãs nacionais” que foram alavancadas pelo BNDES). Daí se seguiu um contínuo desembarque do empresariado que, por muito tempo, nutriu boas relações com as gestões petistas (como se sabe, a FIESP capitaneou esse movimento), assim como um abandono por parte das agremiações partidárias que se mantiveram fiéis ao governo enquanto isso lhes pareceu conveniente (o partido mais importante a abandonar o governo foi o MDB). Diante desse cenário em que a maioria da burguesia brasileira se atreveu a entregar à própria sorte um governo que tanto a favoreceu, chegando mesmo a exigir a antecipação do seu fim em nome de um melhor cenário econômico, a maioria da esquerda agarrou-se ao campo burguês decadente, ao antigo campo governista[3].
Passados cinco anos, o campo majoritário na esquerda não apenas reitera sua visão rasa sobre o que se passou com a gestão Rousseff, como também usa da mesma superficialidade em relação ao atual governo. Depois de chamar de “golpe” o fracasso do projeto petista de administração do Estado, os mesmos autores desse tipo de análise reduzem a ameaça bolsonarista a um simples aprofundamento de uma ruptura anterior, ignorando completamente as diferenças de cada situação – uma atitude que, mais do que expressar uma indigência teórica, consiste em tremenda leviandade política, em postura que desarma a classe trabalhadora perante os perigos existentes.
Enquanto que em 2016 havia um governo que pereceu juntamente com as suas condições de negociação, na medida em que nada tinha a oferecer, tamanha a sua debilidade, o que se vê agora em 2021 é uma gestão que ainda se mostra promissora para uma parte não desprezível do agronegócio, principalmente por conta de sua política ultraliberal em face do meio ambiente. O governo Bolsonaro, por mais fragilizado que esteja, ainda é sustentado por um segmento da classe dominante que, aliás, recorre a métodos coercitivos ilegais com mais frequência do que ocorre em outros ramos.
Também é importante destacar que, ao distribuir cargos os mais diversos na administração pública, a atual gestão reforça as posições da burocracia militar, intensificando seus interesses de aparato e esboçando uma perigosa aproximação entre o poder civil e a caserna. Em adendo, quando isso se verifica na direção das empresas estatais, forma-se uma nova “burguesia de Estado”, uma camada militarizada de gestores dos capitais cuja titulação jurídica é de natureza pública, mas que nem por isso deixam de operar como capital. Transformados em capitalistas emergentes, os altos oficiais convertem-se em agentes duplamente interessados na manutenção do atual mandatário. Assim, ao contrário do que ocorria em 2016, os grupos capitalistas ligados ao governo estão em ascensão, não em decadência (apesar de serem minoritários no conjunto do grande capital), além de apresentarem um perfil mais agressivo. Um perfil que, aliás, converge bastante com o projeto bonapartista de Bolsonaro.
Vale reforçar que a hipótese de um golpe não é a mais provável, por mais que o presidente e seus aliados desejem um regime que lhes conceda poderes especiais, atuando para manter viva essa possibilidade (ao menos no cultivo cuidadoso de uma base social entusiasta desse projeto). Seja como for, tratar os cenários de 2016 e 2021 como substancialmente similares, como se o golpe sonhado pelo bolsonarismo fosse parte de um golpe anterior, significa destituir de sentido o conceito de golpismo, significa banalizá-lo ao extremo, a ponto de torná-lo irrelevante. Não há golpe de Estado sem uma mudança brusca e pretensamente duradoura nas relações entre os três poderes. Do ponto de vista interno à democracia liberal, tão festejada pelos reformistas em suas estratégias eleitoreiras, a derrocada do regime só se verifica com a subversão da predominância do Legislativo sobre o Executivo.
As principais formas burguesas de autoritarismo estatal são caracterizadas, basicamente, pela hipertrofia do Executivo em detrimento do Legislativo, algo que assume distintos graus e características em regimes como o bonapartismo, a ditadura militar e o fascismo (três regimes diferentes, vale dizer). A instauração e a manutenção dessa hipertrofia dependem de medidas policialescas, de uma intensificação da prática repressiva por parte do Estado, tal como se verifica nos autênticos golpes de Estado. Não foi o que aconteceu em 2016: a queda de Dilma Rousseff não exigiu um único toque de recolher, já que os trabalhadores não saíram de suas casas para defender seu mandato. Não se dispuseram a salvar um governo que consideravam detestável, por maiores que sejam os esforços neorreformistas para embelezar as administrações petistas.
Para se entender seriamente a gravidade do momento atual, é preciso recusar tanto a histeria catastrofista do golpe bolsonarista iminente quanto o rechaço à acomodação diante da democracia liberal, como se ela não pudesse degenerar ainda mais e se converter num regime ainda mais repressivo. Mas isso só será possível se tivermos uma compreensão sóbria acerca do que é, afinal, um golpe de Estado. Se seguirmos a orientação dominante na esquerda, estaremos totalmente despreparados para lidar com um possível revés mais grave na conjuntura: no que depender das leituras que grassam hoje em dia, a farsa do discurso sobre 2016 poderá facilitar o caminho para uma tragédia real no futuro. Afinal, dentre as diversas maneiras de se subestimar Bolsonaro, a mais perigosa é a que faz crer que um golpe de Estado poderia ocorrer, como supostamente na votação do impeachment de Rousseff, sem que nenhum incremento expressivo na atividade de repressão estatal seja introduzido na vida social. Precisamos, pois, dar às palavras a sua dimensão: se a geração atual acreditar que sobreviveu a um golpe, e que está capacitada para lidar com esse tipo de experiência, ela será uma presa fácil.
[1] Falamos sobre essa contradição no livro “Operação Lava Jato e luta de classes: forma jurídica, crise política e democracia liberal”, publicado neste ano pela Editora Sundermann. A relação complexa entre o Executivo e o Legislativo no âmbito da democracia liberal foi pensada a partir dos apontamentos de Marx sobre a forma constitucional do presidencialismo em sua obra “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”.
[2] https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/entrevista-dilma-rousseff/.
[3] Considerações mais aprofundadas sobre a configuração da democracia liberal e sobre a dinâmica do sistema político, bem como sobre as relações orgânicas entre o PT e certos setores capitalistas, estão presentes na obra “Operação Lava Jato e luta de classes: forma jurídica, crise política e democracia liberal”, a qual já mencionamos em nota de rodapé anterior.