Gilda Midani / Divulgação
Tácito Chimato

O Brasil ama distribuir seus títulos. Tim Maia, o rei do Soul, nos deixou há décadas e, a despeito de outros artistas do gênero, segue absoluto em seu trono. Dona Ivone Lara, eterna imperatriz do samba, reina e reinará independente de qualquer rainha ou duquesa. O próprio rei dos reis, Roberto Carlos, mesmo amplamente questionado, segue impassivo, descongelado anualmente para que seu fiel séquito preste suas homenagens.

Quem nos deixou nessa semana nunca foi rei. Erasmo estava longe de ter a voz, a presença e a boa aparência que os portões do Olímpio exigem de quem queira passar. Com poucos acordes, uma voz mais fraca, distribuídos em 1,93 metros, que começavam em seus enormes pés e iam até a ponta dos dedos. Mas esses dedos eram tão talentosos que compensavam qualquer revés: são mais de 600 músicas de sua pena. Dessa parte, a mais destacada no imaginário popular são frutos de sua parceria de mais de uma década ao lado do tal rei Roberto, emprestando seu talento: “As curvas da estrada de Santos”, “Amigo de Fé”, “Festa de Arromba”, “O Calhambeque”, “Eu sou terrível”, “É proibido fumar”, “Detalhes”, “É preciso saber viver” … Uma lista extensa e, o mais deliciosa, irregular, pois caminhou entre vários gêneros, expressões da língua portuguesa, sem nunca perder seu estilo inconfundível.

Erasmo Carlos passa e passou por todos. Basta lembrar que Gal Costa, que nos deixou recentemente, recebeu de presente dele um desabafo que imortalizou com sua voz de cristal e uma guitarra – “Meu nome é Gal”.

Mas esse texto não é para falar sobre luto. Afinal, estamos falando do Tremendão. O homem que, mesmo tentando manter sua “Fama de Mau”, nos deixa como o “Gigante Gentil”.

A Turma do Matoso

Erasmo Esteves, como veio ao mundo, nasceu no Rio de Janeiro na década de 40, mais precisamente no bairro da Tijuca. Filho de mãe solteira, teve poucas referências masculinas na sua formação, fator que sempre citaria como fundamental em suas composições. Entre carinho, rádio e estripulias, ralava seus joelhos com o pequeno Sebastião Maia, o Tim, na época o “valentão” entre a garotada do bairro. Apaixonados por música, captaram nas ondas AM o soul americano a primeira geração do rock, decidindo ainda crianças o que fariam da vida.

Em 1956, passados alguns anos, os dois se tornaram assíduos frequentadores do Bar Divino, na esquina da rua Haddock Lobo com o Matoso. Uma geração inteira de artistas, ainda que não soubessem de suas próprias magnitudes, gastava o tempo livre de suas juventudes lá: Wanderleia, Jorge Ben, Wilson Simonal e a turma da Bossa Nova, que entre um mergulho no mar e passeios na areia, via graça naquela juventude tão diversa entre si. Afinal, enquanto a Bossa impunha seu talento com elegância do violão de João Gilberto, o outro lado era muito mais endiabrado, barulhento e muito, muito jovem. Estamos falando de garotos e garotas que orbitavam entre 15 e 18 anos, enquanto os “veteranos” músicos da Bossa já caminhavam por seus 20.

Erasmo, sem mal saber tocar, acompanhava seu amigo de infância, e já era afinado o suficiente para fazer as vozes secundárias na rodinha de violão do time então conhecido como a “Turma do Matoso”, como batizaram os “veteranos”. Ali Tim esgoelava suas versões da música negra americana, enquanto Erasmo aprendia os primeiros acordes com quem tivesse paciência para lhe ensinar.

Um dos visitantes, Roberto Carlos, começou a chamar a atenção dos frequentadores por seu talento em reproduzir canções do rock americano. Tim logo percebeu que poderia somar forças, e montou seu grupo Sputniks com ele e Roberto dividindo as vozes. O grupo acabou implodindo e Tim foi para um lado, formando os Snakes, um grupo vocal, com Erasmo entre os integrantes. Roberto forma os Blues Caps, e a noite na Tijuca passou a se dividir entre os fãs do Little Richard brasileiro e os admiradores do Elvis nacional. Carlos Imperial, que começava a traçar sua carreira como produtor, nota o destaque de Tim e separa-o do grupo, passando a apresentar o artista como um cantor solo. Os Snakes tornam-se acompanhantes de Tim, e Carlos, que também gerenciava os Blue Caps, coloca-os para fazerem as vozes de ambos artistas.

Foi através desse ritmo tresloucado de trabalho que Erasmo se desenvolveu, com um particular talento para compor versões. Algo interessante para a época era que, uma vez que os recursos eram infinitamente mais limitados, essa geração acostumou-se desde sempre a criar muito e ser econômica para atender o ritmo de produção das rádios. As músicas deveriam ter poucos acordes, serem curtas, com compassos marcantes e refrões grudentos – característica que viria a se tornar algumas das marcas registradas de Erasmo. Ele começa a criar suas primeiras versões de rock,  “abrasileirando” sucessos americanos. Isso chama a atenção de Carlos Imperial, que passa a cogitá-lo para voos maiores, num molde semelhante ao que tentava com Tim Maia.

Porém, com o sucesso estrondoso da Bossa Nova mundo afora na primeira metade dos anos 1960, a peneira afinou para a “Turma do Matoso”. Não era mais interessante para as rádios e produtores investirem tão pesado nessa geração e, aos poucos, os holofotes que restaram se viraram para dois cantores: Roberto Carlos, que já galgava sua carreira como o grande fenômeno midiático de sua geração e Wilson Simonal, posteriormente prejudicado pelo própria indústria que ajudou a edificar. Tim, frustrado, decide ir para os Estados Unidos para conhecer pessoalmente a música negra americana. Jorge Ben se insere na bossa, tornando-se expoente de seu próprio estilo de tocar.

Por conta da baixa vendagem dos Snakes, o grupo acabou sendo desligado de seus contratos. Sem chão, Erasmo recorreu a Carlos Imperial, que intervém nos Blue Caps e coloca-o como integrante da banda em 1962. Com a entrada dele no proeminente grupo, era questão de tempo até ele e Roberto encontrarem suas afinidades, e não demorou para o próprio pedir para Erasmo assumir a função de “maestro” do grupo que o acompanhava. A boa execução garantiu a confiança de Roberto, que aceitou a versão em português de “Splish Splash” escrita por Erasmo. O sucesso arrebatador abriu o caminho para uma das parceiras mais produtivas da música brasileira.

A Jovem Guarda vem aí

Em 1964, quatro garotos de Liverpool desembarcavam nos Estados Unidos diante de um aeroporto apinhado de fãs histéricos. A multidão consagrou o momento dos Beatles como o maior fenômeno então visto na cultura pop, e a cena foi exibida em diversas televisões preto e branco nos principais telejornais do mundo. A Beatlemania era um fato, que se impunha diante da segregação racista americana nas explosivas declarações de Lennon: ”nunca tocamos para plateias segregadas, e não vamos começar agora. Preferimos perder o show”. E assim foi feito, com o primeiro show para uma plateia de negros e brancos em Jacksonville.

Um ano depois, a TV Record, que certamente passou à exaustão tudo que tinha acesso sobre o grupo, perde uma queda de braço com a Federação Paulista de Futebol e deixa de exibir os jogos de São Paulo. Com a grade de domingo aberta, a emissora decide em uma atitude inédita abrir o horário para licitação de agências publicitárias de todo o país. Vence uma proposta, no mínimo, ousada. Atribuída a Lenin, o mote seria a frase: “O futuro pertence à jovem guarda, porque a velha está ultrapassada”. A ideia era reproduzir uma versão brasileira da Beatlemania, um verdadeiro fenômeno comercial entre jovens de todas as cidades, que irritava profundamente os “veteranos” ligados à Bossa que acusavam os artistas do chamado “iê-iê-iê” de cederem aos estrangeirismos da música yankee. Ninguém melhor para comandar a atração que o Rei do rock brasileiro, Roberto Carlos, que passearia no auditório cantando com diversos artistas de toda uma geração inspirada nos Beatles.

Roberto prontamente aceita a proposta, porém, com uma condição: não teria como dar conta sozinho. Negocia, logicamente, um contrato superior para si e convoca seu amigo Erasmo e Wanderleia, antiga camarada dos tempos da “Turma do Matoso”. Em agosto do mesmo ano, pela primeira vez, o programa Jovem Guarda vai ao ar.

Se de um lado a Bossa Nova elevou a música brasileira a outro patamar, abrindo o caminho para outra forma de cantar sem as altas notas impostas na música estadunidense, foi a Jovem Guarda que “plugou” pela primeira vez uma guitarra com amplificadores em rede nacional. O programa, um fenômeno instantâneo de sucesso, chegava a impressionante audiência média de 3 milhões de paulistas. Nas reexibições do programa ao longo da semana onde não era possível ver ao vivo, o número se multiplicava, tornando Roberto, Erasmo e Wanderleia os maiores sucessos entre a juventude.

Enquanto Roberto e Wanderleia eram o estilo, com suas vestir calças boca-de-sino, cintos, botinhas coloridas e minissaias, Erasmo cumpria outro papel, consolidando a fama de durão, mas, no final o mais boa praça, querido pelo conjunto dos convidados. É dele boa parte das famosas expressões reproduzidas nos anos a seguir: “brasa”, “bicho”, “brotinho”, “pão”, “cocota”, papo firme”, “pra frentex”, “carango” e aquela que se tornaria sua marca registrada – “Tremendão”, que usava quando um convidado de sucesso visitava o trio. O próprio batiza sua grife de roupas com a expressão, tornando uma gíria então popular entre os jovens em seu segundo nome artístico.

A “Turma do Matoso” ia em peso, com Jorge Ben e Tim Maia cativos. Cantores de todo o país, como Reginaldo Rossi, davam seu ar de graça, e até figuras hoje da constelação bolsonarista, como Sérgio Reis, começaram ali. Celly Campelo, a musa dos sapatinhos com laço cor-de-rosa, era um dos maiores sucessos, e Laffayete e seu Conjunto consagravam os teclados como um instrumento extremamente popular país afora.

Mas ninguém brilhava mais que Roberto e Erasmo. Ao longo dos três anos do programa, a dupla se consolida como uma das de maior sucesso da história da música brasileira: em 1965, “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”, adotada por Nara Leão para o desespero do público dos festivais universitários, que os acusava de alienados, chega a ter uma versão em castelhano nas paradas argentinas. No mesmo ano, “Gatinha Manhosa”, que fala sobre uma discussão de um casal adolescente, é a favorita das crianças, sendo exibida largamente na programação infantil. Em 1967, com filmes do trio principal começando a ser exibidos em cinemas de todo o país, “Como É Grande o Meu Amor Por Você” explode entre os namorados e recém-casados. Elis Regina, outrora desafeta do movimento, se rende e regrava “Se Você Pensa” em 1969, dois anos depois de ser figura pública nas manifestações contra a guitarra, quando a música estourou na voz de Roberto pela primeira vez. Gal Costa toma para si a balada “Sua Estupidez”, transformando uma singela declaração de amor num grito contra a ditadura no disco “Fa-tal: Gal a todo vapor”.

O impacto da Jovem Guarda só teve rival com seu antigo antagonista, a Bossa Nova, sendo paralelo em termos de alcance e influência cultural. Em 1968, Roberto, sem grandes explicações, decide sair do programa, encerrando um movimento avassalador que em três anos mudou todo o comportamento de uma geração. Ao longo dos anos, a dupla ainda assinaria mais sucessos, em uma lista que por si só ocuparia páginas e mais páginas de regravações. Pese a figura controvérsia que Roberto Carlos viria a se tornar, inegavelmente, poucos artistas mudaram de forma tão expressiva o conjunto da sociedade brasileira. Cada vez mais recluso e distante, Roberto foi se afastando do rock, deixando a batuta com seu eterno camarada.

O Gigante Gentil

Vale pontuar que todo esse furacão no qual Erasmo estava inserido foi ao longo de sua juventude. Em 1968, às portas de seus 30 anos, ele também estava de olho na transformação dos Beatles em “Sgt Peppers”, na Tropicália, e na subida de tom do regime com o AI-5, que vetava as poucas liberdades de expressão permitidas até então. Mais maduro musicalmente, começa a passear na MPB ao regravar uma versão tímida de “Saudosismo”, de Caetano Veloso, em 1970. Na mesma época, recebe seu outro epíteto: Gigante Gentil, já que do alto de sua longa estatura, fazia questão de apoiar os novos artistas da época, como Gil, Rita Lee e Tom Zé.

Essa geração teve profundo impacto na obra de Erasmo, que grava o disco considerado por muitos o maior de sua carreira. “Carlos, Erasmo”, de 1971, abre com “De Noite na Cama”, uma letra que Caetano lhe dera de presente. A música é elaborada com um gingado que lembra os sucessos do amigo de infância Tim Maia, enquanto na sequência “Masculino, feminino”, remete experimentações com a psicodelia, populares nas bandas de rock da época. “Dois Animais Na Selva Suja Da Rua” era seu acolhimento com Taiguara, o cantor mais censurado nos anos de chumbo e que passara por períodos de penúria por conta do veto imposto sobre seu trabalho. A “Turma do Matoso” volta com “Agora Ninguém Chora Mais”, de Jorge Ben, em que Erasmo desmonta o samba rock do artista e cria sua própria versão, muito mais pesada. Mas, como sempre, o sucesso não viria sem seu amigo de fé, Roberto Carlos. Dessa lista, a criação mais exótica é “Maria Joana”, uma ode à maconha que povoava os estúdios onde os dois se reuniam para compor, para despeito do hoje conservador Roberto. “É Preciso Dar Um Jeito Meu Amigo” é uma típica música da dupla, mas interpretada de maneira totalmente distinta da primeira fase de ambos. “Mundo Deserto”, um protesto contra o regime, cai nas graças de Elis, que a regrava anos depois.

“Carlos, Erasmo” abriu às portas de para Erasmo como um músico eclético, desvinculando sua figura do fenômeno da Jovem Guarda. Se o sucesso comercial da década anterior garantiria seu passaporte na indústria fonográfica nacional, os anos 1970 seriam o período onde seu nome se popularizaria como um dos maiores compositores do país, explorando todos os temas possíveis nas suas canções.

O próximo disco, “Sonhos e Memórias”, de 1972, tem uma visão autobiográfica de quem viveu de perto a evolução da música brasileira. Feito inteiramente em parceria com Roberto Carlos, o disco consolida a nova fase da dupla amplia as turnês de Erasmo para dois anos, levando o cantor a focar no formato dos compactos antes de um disco completo. Dessa fórmula surgem duas de suas melhores composições: “Sou uma criança, não entendo nada”, que fala sobre a fragilidade do homem adulto, acostumado desde cedo a posição de poder sem saber com problemas complexos e “Cachaça Mecânica”, uma referência ao filme “Laranja Mecânica” lançado em 1971. A canção, em ritmo de samba, chega às paradas do carnaval carioca, mostrando que Erasmo ainda sabia ter um alcance no morro e nas camadas mais populares. As duas músicas foram incluídas no próximo disco “Projeto Salva Terra”, de 1974, mais um estrondoso sucesso comercial.

Em 1978, o disco “Pelas Esquinas de Ipanema” tem as letras mais ousadas do Tremendão, evocando a defesa da natureza e a urbanização sem freio das capitais brasileiras. “Panorama Ecológico”, maior sucesso do LP, cita diversas espécies de flores que conhecera com sua esposa Nara, na época, estudante de paisagismo. “A terceira força” e “Meu Ego” tem um tom de indignação contra a exploração do meio ambiente, enquanto questiona a figura humana sobre o planeta.

No final da década, em 1980, emplacaria o arrasa quarteirão “Erasmo Convida”, um especial para seus 20 anos de carreira, onde desfila duetos com nomes de peso da música brasileira: dos parceiros da “Turma do Matoso” Jorge Ben, Tim Maia e Wanderleia, às amizades da época tropicalista como Rita Lee, Doces Bárbaros e Gal Costa, até um dueto especialíssimo com o amigo de fé Roberto Carlos, em uma rara ponta onde o Rei aceita o papel de convidado. O formato do show, com diversas participações, tornou-se uma espécie de padrão da indústria fonográfica, muito por conta do sucesso desse disco.

O “pai” do rock

A década de 1980 veio em parte com o reconhecimento, mas também com o deslocamento de Erasmo da vanguarda da música da época. Se de um lado, artistas do chamado BRock, como Blitz, Barão Vermelho e Kid Abelha viam nele um artista icônico, pioneiro no rock nacional, do outro, a juventude periférica já não alimentava essa devoção com Erasmo. Sua nova fase, particularmente voltada para danceterias como muito artistas de sua geração, era distante do rock pesado, embrutecido nas periferias das grandes cidades, e de novos movimentos ligados à luta do genocídio negro nos bailes, que prestavam seu respeito a Tim Maia, Cassiano, Jorge Ben e outras seleções dos primeiros DJ´s.

Em 1981, o disco “Mulher” é outro sucesso, com a música título “Mulher (Sexo Frágil)”, escrita com sua companheira Nara, alcança o topo das paradas.  “Minha Superstar” é outro destaque do disco, e o artista o considera sua fase mais madura até então. “Amar Pra Viver ou Morrer de Amor”, de 1982, possuí uma veia bem mais comercial. O Tremendão cria um de seus versos mais divertidos, quando brada em “Mesmo que seja eu”: “Antes mal acompanhado do que só!”. “Meu bumerangue não quer mais voltar” embala os programas da Xuxa, levando a venda do LP às alturas.

Em 1984, Erasmo polemiza na música “Dá o Close Nela”. Encomendada pelo Roupa Nova, Erasmo fala de diversas caraterísticas de Roberta Close, eleita a transexual mais bonita do Rio de Janeiro. A letra, repleta de estereótipos transfóbicos, há de ser contextualizada para uma época em que o debate sobre essa opressão ser bem mais marginalizado. A banda recusou-se a lançar, e o cantor escolheu-a como a canção principal. A canção estourou com exibições no Fantástico, levando Close a um status de subcelebridade e envolvendo Erasmo em uma série de polêmicas sobre sua vida privada. Enquanto o mesmo gastava milhares com advogados, ela dava entrevistas nos programas de tarde, foi capa da Manchete, e hoje vive na Suíça, não tendo reservas sobre o caso. Em um capítulo invisibilizado do Brasil, sua figura se esvaiu nas histórias sobre os anos 1980.

Em 1985, fica evidente o afastamento com a nova geração do rock nacional, em um erro de escalação crasso no Rock em Rio. O cantor se apresentaria na mesma noite que as bandas Whitesnake, Queen e Iron Maiden, para um público completamente distinto das baladas onde fazia sucesso. Ney Matogrosso não arregou. Começou o show sendo vaiado e com objetos atirados no palco, mas impôs sua apresentação e terminou aplaudido pelo público, sendo elogiado posteriormente pelo vocalista do Iron em uma entrevista. Pepeu Gomes e Baby Consuelo, dos Novos Baianos, tiraram de letra. Pepeu, na época considerado o melhor guitarrista do mundo, preparou um repertório especialmente ligado ao heavy metal internacional, e foi ovacionado o tempo todo. Mas Erasmo mal conseguiu se escutar. As vaias estrondosas e violência do público levou-o a diversas interrupções e um pedido decepcionado para Medina deixá-lo tocar em outra data. O empresário aceitou e encaixou-o na noite com o Barão e a Blitz para um ponta.

A apresentação desastrosa, porém, foi a exibida para milhões de televisores, e dá espaço para uma fase decadente da vida meteórica do cantor. Sua vida pessoal também entra em frangalhos com seu divórcio, e Erasmo, ainda que conseguisse produzir uma série de sucessos por conta das participações em trilhas sonoras, já não causa o mesmo rebuliço nas paradas.

Sua obra só volta a ser revisitada a partir de 1991, quando a cantora Marisa Monte lança seu primeiro disco “Mais”. Produzido em parceria com Nando Reis, conhecido de Erasmo, a cantora regrava “De noite na cama”, do clássico álbum “Carlos, Erasmo”, de 1971. Ali começaria uma segunda parceria das mais profícuas de sua carreira. Marisa passa a revisitar o repertório de Erasmo ao longo de seus trabalhos e o cantor participa de diversas turnês em conjunto, tornando seu repertório antigo objeto de culto. Chico Science também busca nas águas da Jovem Guarda um pouco de sua mistura na regravação manguebeat de “Todos Estão Surdos” de Roberto Carlos. A mídia passa a virar suas atenções novamente para toda a geração pioneira do rock brasileiro, quando uma coletânea imensa batizada somente de “Jovem Guarda-30 anos” entra novamente nas paradas, competindo com artistas de peso da atualidade, levando um show de grandes proporções exibidos pela Globo.

Aproveitando o embalo, Erasmo volta às paradas em 1996 com um disco clássico “É preciso saber viver”. Econômico novamente como em seus tempos clássicos, a composição é voltada para baladas simples, do jeito que o Tremendão fazia, mas com uma produção muito superior. “É preciso saber viver” torna-se hit na voz dos Titãs. “Do Fundo Do Meu Coração” , com Adriana Calcanhoto, redime suas diferenças em relação a vanguarda, e mostra que a estrada ao lado dos novos nomes da MPB estavam lhe fazendo muito bem. Mas é no relançamento de “Como é grande meu amor por você”, retomando a mais clássica dupla do Matoso com Roberto, que marca o sucesso da obra. Infelizmente, o ritmo necessário para consolidar seu nome novamente foi interrompido pelo suicídio de sua ex-companheira Nara. Erasmo só voltaria para a estrada em 2001, mas devidamente acolhido pela MPB.

A vida infinita do Gigante Gentil

Erasmo Carlos estava em plena ascensão. Desinibido de estereótipos, finalmente o cantor se sentia à vontade para ostentar seu justo título de pioneiro, e um dos compositores mais criativos vivos no país. “Rock n´ Roll”, de 2009, é um disco a la Tremendão. Feito em parceria com Nando Reis, o cantor impressiona em “Olhar de Manga”, quanto cita nada menos que 57 referências femininas da história e cultura pop. “Sexo”, de 2011, vem no embalo dois anos depois do sucesso de “Além do horizonte”, executado a exaustão por conta da novela de mesmo nome.

Em 2014, entra na fase mais premiada de sua carreira. O disco “Gigante Gentil”, sem nenhuma parceria, recebe o Grammy Latino de melhor álbum de rock brasileiro. Em 2018, em “…Amor é isso”, realiza parcerias com Emicida e Duda Beat, recebendo mais um prêmio da revista Rolling Stone como um dos 25 melhores álbuns do ano. A União Brasileira de Compositores homenageia o conjunto de sua obra em um show antológico, com duetos de Gilberto Gil a Ludmilla. Sua saúde, porém, começa a dar os primeiros sinais de fraqueza com idas cada vez mais constantes ao hospital. Em 2022, no mesmo ano em que recebe mais um Grammy pelo disco “O futuro pertence a…Jovem Guarda”, o cantor falece.

A morte de Erasmo, porém, soa estranha. Em meio aos falecimentos de Gal Costa e Boldrin, a despedida de Milton Nascimento dos palcos para um justo descanso, sua despedida soou muda. As cenas de seu funeral, como num transe, não parecem na realidade. Ver Roberto Carlos sair de sua fortaleza e derretendo a figura de gelo que criou para si numa caricatura do outrora Rei, desconsertado, passam em meio a tantas notícias.

Erasmo era maior, talvez, que a própria morte. O Gigante Gentil deixou para o mundo não só uma obra vasta, mas ao que parece pelo teste do tempo, a prova de fracassos. Não seria estranho, em pleno 2023, Anitta estourar com uma versão de sua música. Ou, em um inventário sobre seus bens materiais, acharem um caderno com mais 600 sucessos que o cantor nunca gravou. A primeira opção já aconteceu repetidas vezes ao longo de 60 anos de carreira. Para a segunda, fica o desejo de que não precisemos nos preocupar que um dia, em um futuro talvez muito distante, as pessoas percam de novo a noção do tamanho de Erasmo Carlos.

Ele foi Tremendo. O primeiro e único de seu título. Aos fãs e familiares, nossas condolências. A cultura brasileira perdeu um de seus pilares. E isso deve ser celebrado, ao som de uma boa guitarra, dança e piadas do jeito que Erasmo gostava de brincar. Muito obrigado!