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Roberto Aguiar, de Salvador (BA)

Roberto Aguiar, Salvador (BA)

Ela não foi um bom exemplo, mas era gente boa“. Essa foi frase que Rita Lee achava que deveria constar em seu epitáfio, conforme revelou em sua autobiografia (“Rita Lee — Uma Autobiografia”, 2016). Ontem, 8 de maio de 2023, ela nos deixou. Mas essa frase é curta demais para definir o que ela foi. A rainha do rock brasileiro foi mais do que gente boa: foi símbolo de coragem e revolução.

Foi com muita coragem e humor que enfrentou o câncer que atingiu seu pulmão. Ela “carinhosamente” apelidou o tumor de Jair, em referência a Bolsonaro, então presidente do Brasil.

Foi também com muita coragem que enfrentou o mundo da música, dominado por homens, uma espécie de “clube do Bolinha” que diziam que “para fazer rock, era preciso ter colhão”. Rita Lee mostrou que também “dava para fazer com útero, ovários e sem sotaque feminista clichê“.

Enfrentando a ditadura

Coragem que a levou a enfrentamentos com a ditadura militar. Os milicos não gostavam de Rita Lee, a classificavam como inimiga da “moral e dos bons costumes”. Além de que era amiga de outros artistas perseguidos pelos militares, a exemplo dos baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso. Ela foi presa no dia 24 de agosto de 1976, grávida de três meses de seu primeiro filho, Beto Lee, acusada de ter em casa 300 gramas de maconha.

Em uma entrevista à revista “Quem” em 2010, ela disse que foi tudo plantado pela polícia. Na época, ela garantiu que a droga não era sua e que tinha parado de fumar devido à gravidez. Mas os agentes não deram ouvidos. Outra grande artista da nossa música foi visitá-la na cadeia. Elis Regina ajudou ela a sair da cadeia naquele difícil momento e foi apelidada por Rita de “Nossa Senhora das Roqueiras”.

Quebrando paradigmas

Mas Rita Lee não perdeu um pingo se quer de sua coragem por causa dos milicos, mesmo sendo uma das artistas mais censuradas na ditadura. Seguiu ousada, com a mesma coragem que subia nos palcos com Os Mutantes — a banda brasileira de rock mais cultuada no mundo, criada em 1966, com os irmãos Arnaldo Batista e Sérgio Dias — colocando o som da guitarra na música brasileira, mesmo recebendo vaias nos festivais e vendo artistas realizarem marchas contra a introdução do objeto sonoro eletrônico na “refinada” Música Popular Brasileira.

Importante ressaltar que tais vaias eram alimentadas por organizações stalinistas, que faziam coro com setores conservadores, em nome de um falso discurso contra o “imperialismo das guitarras” na música brasileira. Rita Lee desabrochou com a Tropicália, movimento que os setores stalinismo chamavam de alienado e pró-imperialista.

Foi com coragem que se tornou um símbolo da luta pela libertação das mulheres e das LGBTs. “Minha força não é bruta / Não sou freira, nem sou puta / Porque nem toda feiticeira é corcunda / Nem toda brasileira é bunda / Meu peito não é de silicone / Sou mais macho que muito homem”, afirma na música “Pagu”.

Ela também foi a primeira artista brasileira a cantar sem pudor sobre sexo e prazer, quebrando o velho paradigma das demais artistas que cantavam o amor romântico. Em “Mania de você”, fala do companheiro que lhe dá água na boca, que a faz vestir fantasias e tirar a roupa, que a deixa molhada de suor de tanto beijos e de tanto imaginar loucuras.  Já em “Banho de espuma” convida o parceiro para uma banheira de espuma, para um encontro entre dois corpos quentes, sem nenhuma culpa.

“Gol Rita Lee”

Sua coragem era tanta que também invadiu o mundo do futebol. Torcedora do Corinthians, ela cantou o seu amor pelo clube na canção “Amor Preto e Branco”, de 1972. Rita Lee participou ativamente da Democracia Corinthiana, como lembrou o time em nota publicada nas redes sociais. Em 1982, na final do Campeonato Paulista diante do São Paulo, ela foi homenageada com o “gol Rita Lee”. Casagrande batizou o seu gol da vitória por 3 a 1 contra o rival com o nome da cantora. Foi o primeiro título da “Democracia Corinthiana”.

Coragem

Mesmo quando se despediu dos palcos, em 2012, em um show histórico, que eu tive a felicidade e a honra em participar, na cidade de Barra dos Coqueiros, na Região Metropolitana de Aracaju (SE), a corajosa Rita Lee se impôs contra a Polícia Militar, que reprimia com violência alguns espectadores flagrados fumando maconha.

Ela chamou os agentes policiais de “cachorros”, “cavalos” e “filhos da puta”. Foi levada para uma delegacia e liberada logo depois. Mas saiu convicta de que fez o certo e não retirou uma única palavra que tinha dito durante a apresentação. “Sou do tempo da ditadura. Pensam que tenho medo?”, disse. Não, ela não tinha medo. Ela é “Rita Lee Coragem”.

Revolução

Toda essa coragem transformou Rita Lee em uma revolucionária. Foi rebelde e quebrou regras, paradigmas, padrões e estereótipos. Criou uma outra imagem sobre o que é ser mulher na vida e na arte. Uma imagem única, inconfundível. Todo mundo reconhecia Rita Lee.

Sua arte foi libertária e ela sabia disso. Por isso, preferia ser chamada de “padroeira da liberdade”, pois achava o título de “rainha do rock brasileiro “cafona”. O impacto da arte da Rita Lee é imensurável. É tão forte que seguirá reverberando após a sua morte. Quando falamos que ela fez uma revolução é porque a história da música brasileira é uma antes dela; é outra, depois. É impossível contar a história do Brasil, não só na música, mas no seu conjunto, sem falar de Rita Lee.

Na canção “Sampa”, Caetano Veloso diz que Rita Lee é a mais perfeita tradução do que é a cidade de São Paulo. Ela é isso e muito mais. É a mais completa tradução daquelas e daqueles que tem coragem, que quebram as regras do sistema, que enfrentam a injustiça, que não se calam frente aos poderosos, dos que lutam por liberdade e por igualdade social. Rita Lee é revolução!

Rita Lee no lançamento de sua autobiografia em São Paulo, em 2016 | Foto: Divulgação

“Meu sonho é ser imortal meu amor”

Nascida em São Paulo em 31 de dezembro de 1947, Rita Lee morreu nesta segunda-feira, dia 8, em sua casa, na capital paulista, ao lado da família. O velório acontecerá nesta quarta-feira, dia 10, das 10h às 17h. Será aberto ao público, no Planetário do parque Ibirapuera, em São Paulo (SP).

Rita Lee começou a carreira aos 16 anos, quando integrou um trio vocal feminino, as Teenage Singers, que realizava apresentações amadoras em festas de escolas. Em 1964 ela entrou em um grupo de rock chamado Six Sided Rockers que, depois de algumas mudanças de formações e de nomes, deu origem aos Mutantes em 1966.

Nos inícios dos anos 1970, pós-Mutantes, sua carreira tomou forma com o grupo Tutti Frutti, no qual ela gravou cinco álbuns. A partir de 1979, ela começou a trabalhar em parceria com o marido Roberto de Carvalho, e se firmou de vez na carreira solo. Ao todo foram 40 álbuns, sendo 6 dos Mutantes, 34 na carreira solo.

Ela também passeou pelo mundo da literatura. Em 2016, ela lançou “Rita Lee: uma autobiografia”. A série “Dr. Alex”, escrita em 1983, foi relançada em 2019 e 2020 e tem foco na luta pela causa animal e ambiental da cantora. Ela também escreveu “Amiga Ursa: Uma história triste, mas com final feliz” na literatura infantil. “FavoRita”, “Dropz”, “Storynhas” e “Rita Lírica” são outros livros escritos pela cantora. Em março de 2023, ela anunciou “Outra Autobiografia”, que está em pré-venda.

Rita Lee é múltipla. Mas como canta em “Jardins da Babilônia”, não tinha uma saúde de ferro. Não resistiu ao tratamento iniciado em 2021 contra um câncer no pulmão. Mas a força de sua arte será eterna e sua obra é imortal!

Viva Rita Lee!