Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

“Doutor Gama” é, antes de tudo, um filme necessário. Demorou, inclusive. Mas, é extremamente significativo que tenha sido produzido exatamente neste momento da História. Como também não é pouca coisa que a cinebiografia do abolicionista, advogado, jornalista, escritor e militante negro Luiz Gama (1830-1882) tenha ganhado vida pelas mãos do cineasta Jeferson De.

Afinal, além de vários filmes importantes, foi ele que, em 2000, ainda quando era estudante de Cinema escreveu o manifesto “Gênese do Cinema Negro Brasileiro”, que fez uma profunda crítica à representação dos negros e negras no cinema brasileiro, e lançou as bases de um movimento “Dogma Feijoada”, que aglutinou cineastas negros como  Noel Carvalho, Zózimo Bulbul, Daniel Santiago, Billy Castilho e Lilian Solá Santiago.

Uma voz pela liberdade que ecoa até hoje

A primeira cena do filme é genial. Luiz Gama surge discursando num tribunal: “Se você tivesse a oportunidade de ganhar muito, muito, dinheiro, você teria a coragem de matar a família inteira da pessoa que está sentada, hoje, aqui, do seu lado? Você teria coragem de violentar a esposa dele? (…) De torturá-los, de sufocá-los até a morte? Vocês conseguiriam dormir tranqüilos depois de cometer estes crimes? Porque é isto que vocês estão fazendo. Todos os dias (…). E dormindo como anjinhos.”.

Neste momento, Gama já é retratado como um rábula, um advogado sem diploma, já que este direito lhe foi negado pela Faculdade do Largo São Francisco. E a cena representa um julgamento ficcional que serve, no filme, como síntese das muitas defesas que fizeram com que Gama libertasse judicialmente mais de 500 escravizados.

A construção de um herói

Quando do lançamento do filme, Jeferson De declarou à imprensa que sua intenção foi, abertamente, contar a história de Gama, traçando “uma trajetória pessoal muito parecida com a de um herói”. Uma opção que, mesmo resultando em escolhas passíveis de questionamentos, é, inegavelmente, legítima e necessária, principalmente num país em que livros didáticos, praças e avenidas estão apinhados de nomes de carrascos, ditadores, exploradores e opressores, enquanto aqueles e aquelas que lutaram e deram suas vidas pela liberdade são invisibilizados.

A cena de abertura é sucedida por uma breve passagem pela Salvador de 1840, onde sua mãe, Luiza Mahin, que desaparece na noite, em função de suas atividades rebeldes (sabe-se que ela se envolveu na direção tanto da Revolta dos Malês, em 1835, quanto da Sabinada, em 1837) e o canalha de seu pai, um aristocrata português, supostamente abolicionista, vende o garoto de 10 anos para pagar suas dívidas.

A fase seguinte, nos mostra o jovem escravizado na região de Campinas (SP), onde aprende a ler com a ajuda um jovem estudante de Direito que se hospeda na fazenda; se apaixona por aquela que seria sua companheira durante toda a vida, Claudina Fortunado, e “reconquista” sua liberdade, partindo para São Paulo.

Aproveitando “brechas” e quebrando correntes

O filme, então, se foca na atuação de Gama como rábula, em São Paulo, a partir de 1870.  E é preciso dizer que há um viés um tanto “legalista” demais na narrativa desta fase, expresso, inclusive, no título e no formato do clássico “filme de tribunal”, característico do cinema norte-americano.

Em suma, pode-se dizer que há uma ênfase demasiada no “Doutor Gama”, em detrimento do “Rebelde Gama”. E não que isto diminua a importância e mesmo a beleza do filme. Primeiro, porque foi uma opção consciente do diretor, que, também fez questão de ressaltar que “esta não é uma obra definitiva sobre Gama; sua história pode ser, e espero que seja, desdobrada em muitas outras obras.”

E, de fato, Gama teceu muitas outras histórias que merecem ser contadas. Muito ainda pode ser dito sobre sua afiadíssima veia poética, seus artigos explosivos, e, acima de tudo, sua atuação na “clandestinidade”, principalmente ao lado do advogado e jornalista Antonio Bento (branco que, diga-se de passagem, rompeu radicalmente com sua classe), e à frente do grupo Caifazes, movimento radical, que organizava fugas coletivas de escravizados e os encaminhava para o Quilombo do Jabaquara ou para fora do estado.

Contudo, mesmo focando em sua atuação no Tribunal e na sua luta para colocar as próprias leis de sua época no banco dos réus, o filme não deixa de traçar um panorama da sua luta incansável contra as injustiças, expondo os estupros a que nossas ancestrais eram submetidas, as humilhações de sinhás e sinhôs, que tratavam negros e negras, mesmo quando livres, como seres inferiores a animais.

E filme não se omite no resgate do discurso que respondeu a tudo isto de forma quilombola: “todo escravo que mata o senhor age em legítima defesa”, diz Gama na defesa do escravizado que matou o sinhô que estuprava sua mulher. “Porque quando o escravo mata o seu senhor”, explica Gama, “não estamos falando de assassinato, não, não senhores, estamos falando de legítima defesa. Não é ódio, não é vingança, não é barbárie, é pura e simples legítima defesa. Um direito de todos.”, sentecia.

Uma lição que não pode ser esquecida. Jamais. Por isso, salve, “Doutor Gama”! E que o filme possa inspirar aqueles e aquelas que possam levar para as telas vidas tão importantes e heróicas como as de Dandara, Mahin, João Cândido, Teresa de Benguela e tantos outros e outras.

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