Nikaya Vidor, tem 27 anos, é mulher trans, Cientista Social e militante do PSTU | Foto: PSTU - Rio Grande do Sul
Secretaria Nacional LGBT

Wilson Honório da Silva, pela Secretaria Nacional LGBTI+ do PSTU

Para falar sobre o significado e importância do Dia da Visibilidade Trans, particularmente no atual contexto, conversamos com a companheira Nikaya Vidor, mulher trans, de Porto Alegre (RS), que, aos 27 anos, é Cientista Social e militante do PSTU, tendo sido candidata a deputada federal nas últimas eleições.

Nikaya, fale um pouco sobre por que existe um dia específico para celebrar a Visibilidade Trans e qual é a importância da data?
O Dia da Visibilidade Trans foi criado para marcar a realização de um imenso protesto que aconteceu em Brasília, em 29 de janeiro de 2004, como parte da campanha “Travesti e Respeito”. É uma data simbólica da luta e resistência, material e política, das pessoas trans perante as muitas formas de violência que o capitalismo lança sobre essa população, como o desemprego crônico, a expulsão das salas de aula, a segregação no mercado de trabalho, a imposição da prostituição, as violências físicas, psicológicas e simbólicas.

O “Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras”, lançado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), revelou que o Brasil, pelo 14º ano consecutivo, é o país onde mais pessoas trans são mortas. Foram 131 assassinatos e 20 suicídios, só em 2022. Além disso, como a transfobia se manifesta entre nós? (Leia o artigo “Brasil é o país onde um LGBTI+ é assassinado a cada 34 horas e, pelo 14º ano, mais transexuais são mortas”).

A quantidade absurda de mortes e a crueldade que as caracteriza se contrapõem com outro dado que diz muito sobre a hipocrisia que corre solta no capitalismo: ao mesmo tempo em que permitem que morramos como moscas, nos tratam como mercadorias. No dossiê, a Antra também discute que, no Brasil, 90% das mulheres trans estão presas na prostituição e que somos o país, no mundo inteiro, que mais consome pornografia trans.

A “fetichização” de nossos corpos no mercado pornográfico e a imposição da prostituição sobre as mulheres trans têm origem na tendência do capitalismo de usar as diferenças humanas para explorar e oprimir. Uma combinação que nos aliena da sociedade no sentido mais marxista do termo: nos segrega e, ao mesmo tempo, tenta nos “coisifica”.

É similar ao que dizemos em relação ao racismo, repetindo os versos cantados por Elza Soares: “a carne mais barata do mercado é a carne negra…”
Exato. E é uma coisa particularmente real em relação às mulheres trans, negras, periféricas ou da classe trabalhadora. A prostituição e a pornografia são mercadorias que os capitalistas extraem de corpos transfemininos, para lucrar e oprimir. Em poucas palavras, o sistema econômico do capitalismo lucra em cima da transfobia. Por isto, também, defendemos a necessidade da destruição do capitalismo. Este é um sistema que transforma todas atividades humanas, particularmente o trabalho, em mercadoria e lucro. Precisamos criar um sistema que redirecione o trabalho diretamente às necessidades humanas e não ao lucro. Só assim poderemos garantir condições plenas de existência para as pessoas trans, assim como todos demais setores da classe trabalhadora e setores oprimidos.

Este é o primeiro Dia da Visibilidade Trans depois de quatro anos de governo Bolsonaro. Como a vida das/os trans foi impactada pelo caráter deste governo?
O governo Bolsonaro foi resultado direto da crise capitalista e da imensa decepção da classe trabalhadora com os ataques neoliberais dos governos petistas, que em nada contribuíram para melhorar as condições materiais de vida da classe trabalhadora e, apesar de medidas pontuais, que na verdade foram impostas pelas décadas de lutas dos movimentos, também não mudaram as vidas de LGBTI+, negros e negras, mulheres, indígenas e demais setores oprimidos.

Não é um acaso que a ultradireita seja um fenômeno mundial e, em todos os países, tenha o mesmo caráter extremamente LGBTIfóbico, racista e xenófobo, como Putin (Rússia), Órban (Hungria), Giorgia Meloni (Itália) ou Andrzej Duda (Polônia). São todos resultados da crise global do capitalismo.

Bolsonaro, no Brasil, é uma expressão particularmente asquerosa desta tendência, que efetivou vários ataques à classe trabalhadora LGBTQIA+, incentivando a violência e os assassinatos, fortalecendo o projeto “Escola Sem Partido”, querendo eliminar o debate sobre de gênero e sexualidade das escolas, e agravando a homofobia e a transfobia praticada pelo Estado e suas instituições, particularmente o judiciário e as forças de segurança. Isso pra não falar de sua base “militante”, que não parou de nos atacar, seja nas ruas, escolas e locais de trabalho, seja através das redes sociais.

O governo da Frente nomeou a travesti Symmy Larrat como Secretária Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, no Ministério dos Direitos Humanos. Como você avalia isto?
A nomeação de Symmy Larrat indica uma conquista histórica do movimento trans. Foi muito importante. Porém, dificilmente conseguirá alterar de forma significativa a vida das pessoas trans, tendo em vista que está inserida num governo de conciliação de classes, cuja prioridade é o “mercado”: os banqueiros, o agronegócio e os empresários, que se beneficiam com a opressão. Além disso, o Congresso, com o qual o governo Lula-Alckmin também está fazendo todo tipo de aliança, é uma instituição que só aprova projetos que beneficiam os ricos.

Qualquer projeto que contemple a classe trabalhadora só passa sob forte pressão e intensa mobilização. E, mesmo assim, são facilmente retiradas posteriormente, quando a crise aperta e é mais conveniente para esta “ricocracia”. Portanto, a chance do Congresso aprovar algum direito significativo para população trans é muito pequena.

Também temos que considerar as teias de relações políticas que o presidente Lula estabeleceu com setores conservadores e fundamentalistas, no interior de seu próprio governo e dentre seus apoiadores.  No fim das contas, a institucionalidade do capitalismo é insuficiente para satisfazer as necessidades da classe trabalhadora, principalmente da população trans.

Nikaya Vidor em atividade da campanha eleitoral 2022. Ela foi candidata a deputada federal pelo PSTU | Foto: PSTU – RS

Então, para o PSTU, qual é o caminho para as/os trans, particularmente neste momento?
É preciso resgatar o espírito radical e rebelde de Stonewall, de combatividade, luta direta e aliança com “os de baixo”, e, também, da Revolução Bolchevique, que não só teve a participação de pessoas trans, que foram apagadas pela história pelo stalinismo, de acordo com Sherry Wolf, autora de “Socialismo e Sexualidade”, como também foi pioneiro na criação de um Estado que descriminalizou a sexualidade, concedeu amplos direitos às LGBTI+ e, inclusive, permitiu o uso do nome social por homens e mulheres trans e a realização de procedimentos de redesignação sexual, coisas que, na época ou mesmo até hoje, sequer estão no horizonte de muitos países capitalistas.

Temos que organizar esta radicalidade de forma independente, tanto em termos de classe quanto em relação ao atual governo, para exigir nossos direitos. Temos muita luta pela frente. Além de termos que nos preparar para barrar todos os possíveis ataques que sejam feitos pelo próprio governo ou como frutos de sua omissão, teremos, com certeza, de continuar enfrentando a extrema direita, que continua organizada e disposta a nos perseguir e matar.

Para isso, precisamos começar lutando pelas necessidades colocadas pela própria população trans, lutando para organizá-las e, também, para construirmos comitês populares, com a participação de trans, nos locais de trabalho, de estudo, em nossas entidades e organizações, dentre os desempregados e onde quer que elas ou eles estejam.

Graças às traições e distorções provocadas tanto pelo stalinismo quanto pelos reformistas, muitos setores do movimento LGBTI+ não vêm a luta pelo socialismo como o caminho para sua própria libertação. O que você tem a dizer?
Desde os primórdios da organização das LGBTI+, os verdadeiros socialistas revolucionários e marxistas estiveram ao lado da luta dos setores oprimidos, defendendo que é necessário combinar o combate pelas “liberdades democráticas” (já que a burguesia transformou em poeira sua promessa de “liberdade, igualdade e fraternidade”) com a luta pela construção de uma sociedade socialista.

E isto não é uma luta pra “depois da revolução”. É pra aqui e agora. Inclusive para garantir nossa autodefesa. Por isso, nossa primeira tarefa é reunificar aquilo que as ideologias burguesas dividem através da opressão, o que passa, como Marx insistia em relação ao racismo e à xenofobia, por combater os preconceitos enfiados nas cabeças de nossa própria classe.

Mas, na sociedade que queremos construir, num sistema socialista, queremos que sejam comitês ou conselhos populares que organizem a sociedade como um todo, de forma coletiva, com toda a diversidade que caracteriza a classe trabalhadora. Que sejamos nós que comandemos os rumos do Estado, a produção e distribuição das riquezas e, também, a garantia de direitos, igualdade e liberdade.

Numa sociedade como esta, as pessoas trans terão poder direito de decisão sobre os empregos, acesso à saúde e aos processos transsexualizadores, através do Sistema Único de Saúde, com cirurgias e hormônios; direito formal e prático à identidade de gênero, reconhecido pelo Estado; além do combate efetivo à LGBTIbobia na Educação e todos setores da sociedade. Aí, sim, poderemos ser livres e viver com dignidade e plenitude.