Este é o primeiro artigo da série “Desvelando a Transexualidade” sobre transexualidade e seus mais variados aspectos
A importância dos recortes na luta trans
A transexualidade é um tema muito complexo e pouco discutido e conhecido. Por isso, é de vital importância voltar à pauta sempre que possível. É importante fazer uma ressalva antes de continuar: tratarei, no texto, sobre transexualidade por ser uma mulher transexual e por ter vivência sobre esta realidade.
Sou uma mulher trans privilegiada por ser branca, de classe média, que não foi expulsa de casa pela família, que conseguiu concluir todo o ensino fundamental e médio. Tenho graduação, entrei no mestrado agora e não estou no mercado da prostituição. Enfim, tenho um monte de privilégios se comparada com outras mulheres trans, travestis e homens trans. O que nem por isso faz com que não passe por transfobia diariamente.
Contudo, mulheres trans, travestis e homens trans devem ser incentivados a falar sobre suas respectivas interseccionalidades, fazendo seus devidos recortes, de classe, raça etc., que pioram e intensificam suas opressões: cor, raça, classe, religião, educação, profissão. Uma trans negra, periférica, que não completou os estudos, deficiente, de religião de matriz africana, no mundo da prostituição, passa por muito mais problemas do que eu. Além da transfobia lida com racismo, classismo, intolerância religiosa, preconceito quanto às deficiências, nível de instrução/educação e profissões exercidas.
Retomando alguns conceitos
1) Sexo biológico é aquele que é anatômico, fisiológico, gonadal e que pode ser observado pelos órgãos sexuais externos (macho e fêmea, sendo que macho nasce com pênis e testículos, e fêmea com vagina).
2) Identidade de gênero é o modo como a pessoa se vê no mundo, como pensa em si mesma, como se sente. Em termos psicanalíticos, seria a sua psique. Em termos subjetivos, sua essência, sua autoconsciência. Quando há uma correspondência entre a psique e o sexo biológico, a pessoa é denominada cisgênera, podendo ser homem cisgênero ou mulher cisgênera. Quando não há correspondência entre psique e órgão sexual, a pessoa é transgênera, transexual, podendo ser uma travesti, uma mulher transexual ou um homem transexual.
3) Orientação Sexual é para quem se dirige o afeto, a atração, o desejo, as relações afetivo-sexuais e, por isso, a pessoa pode ser heterossexual quando alguém do gênero masculino se interessa por alguém do gênero feminino e vice-versa; homossexual quando se relaciona com o mesmo gênero – gays e lésbicas; bissexuais quando sentem-se atraídas por ambos os gêneros.
Causa ainda confusão, mas uma mulher trans ou travesti que se relaciona com um homem é heterossexual e, caso se relacione com outra mulher, é lésbica. Um homem trans que se relaciona com uma mulher é heterossexual. Se ele se relacionar com outro homem, é gay.
Sintetizando: sexo biológico não tem relação com identidade de gênero, e identidade de gênero nada tem a ver com orientação sexual.
A diferença entre as travestis e as mulheres transexuais
Partindo dessa introdução, inicio com a polêmica distinção entre mulheres transexuais e travestis, tema que dá pano para a manga inclusive dentro da própria militância T. Arrisco-me a escrever tendo plena consciência de que posso ser crucificada, mas aberta aos comentários, críticas e divergências sobre tal distinção polêmica.
O senso comum simplifica a questão da seguinte forma: mulheres trans querem fazer a cirurgia de redesignação sexual (CRS), e as travestis não. Também há o pré-conceito de que as travestis são promíscuas e que são todas prostitutas. É uma distinção limitada que não abarca toda a pluralidade de autoidentificações. Autoidentificação é a palavra-chave: basicamente, trata-se de uma questão subjetiva de autopercepção.
Mulheres trans se autoidentificam como mulheres e podem ou não querer fazer a CRS: há as que desejam, porém há também as que estão satisfeitas apenas com hormonização, implante de próteses mamárias, depilação a laser da barba, não fazendo com que sejam menos mulheres ou menos mulheres trans por isso. A autoidentificação travesti é mais diversa, ampla: muitas se autoidentificam como mulheres, assim como mulheres transexuais; outras como nem mulher nem homem; outras como homem gay, apesar de usarem nome feminino e exigirem ser chamadas pelos respectivos artigos e pronomes femininos e outras mais possíveis autoidentificações.
Observo que a autoidentificação “mulher transexual” costuma ser mais pautada numa subjetividade relacionada ao campo dos afetos e das vivências afetivo-sexuais dessas mulheres, enquanto o termo “travesti” é mais pautado numa questão histórica, social, econômica e política relacionada à exclusão, marginalidade, vistas como bandidas, criminosas, “putas”. O que é senso comum entre as travestis é que, independentemente de qualquer outra autoidentificação, elas se autoidentificam como travestis. Há, porém, mulheres trans que também se autoidentificam como travestis, pois ,para a sociedade, todas (mulheres trans e travestis) somos “os travecos/os travestis”.
A transfobia mata!
Por Frida Pascio Monteiro, ativista trans, mestranda em Educação Sexual e militante do PSTU de Fernandópolis (SP)