Periodismo de Barrio

“Sem gaceñiga não há revolução”

É 11 de julho. Um domingo qualquer com seu tédio e parcimônia de costume. Ou isso parece ser, até que vejo em uma transmissão ao vivo que em San Antonio de los Baños as pessoas saíram às ruas para protestar. É um protesto numeroso e inesperado. Espontâneo e muito cubano: ao ritmo de conga, bicicletas, dores, assovios, “singaos”[2] a Díaz-Canel, reclamos de liberdade.

Um amigo me enviou o link da transmissão.

— Você viu isso? —, ele me pergunta. Eu respondo que sim, acabei de ver e não consigo acreditar. Sinto ansiedade. Ele me diz que também.

— Tenho vontade de sair à rua — acrescenta —, ou estar lá.

Nas redes, as pessoas compartilham e comentam com júbilo e esperança o vídeo do protesto. San Antonio de los Baños de repente se torna viral e a maioria vê na cidade a faísca da liberdade. Ela deu o empurrão. Em seguida, une-se o povoado de de Palma Soriano, em Santiago de Cuba e, pouco a pouco, vão sendo acrescentadas outras comunidades e cidades da ilha. Alguns perguntam nas redes: “E Havana?”.

―O que fazemos? ―me pergunta meu amigo―. ¿Maleconazo[3]?

Respondo a ele com três emojis de gargalhadas.

―Não ria e prepare a bolsa. Vamos para o Malecón.

Estou indecisa. Minha indecisão tem a ver mais com a preguiça dominical.

―Vamos, mulher. E te levo uma gaceñiga.

Deixo-me subornar e começo a me vestir. De fato, é algo que me devo: um dia provar o que é fazer uso do direito de me manifestar. Não fui à marcha cuir[4] em 11 de maio de 2019 porque um funcionário da Segurança do Estado me avisou que era melhor não sair de casa naquele sábado. Tampouco participei da vigília em frente ao Ministério da Cultura no histórico 27 ​​de novembro de 2020. Não posso deixar esse 11 de julho passar, quando tudo indica que já não será um domingo qualquer.

Afinal de contas, o que pode acontecer? Que em Havana ninguém saia às ruas ou que as três ou quatro pessoas mais encorajadas a sair sejam reprimidas pela polícia e afastadas de qualquer outra tentativa de manifestação? Sempre haverá a opção de sentar-se por aí e comer a gaceñiga.

Meu amigo e eu combinamos de nos encontrar em algum lugar perto do Malecón, mas depois descobrimos que um grupo de artistas e ativistas iria para o ICRT. Melhor nos encontrarmos no El Vedado. Enfim, um lugar fica perto do outro. Mais tarde veremos o que decidimos. A ideia, por enquanto, é sair. Nesse ponto, nem ele nem eu podemos ficar tranquilos dentro de casa. Mais e mais lugares estão surgindo. Efeito dominó. Ou uma espécie de contágio por “transmissão autóctone”, falando em termos de pandemia, quando a causa não é um agente estrangeiro, mas sim local.

Saio para pegar um táxi e me dou conta que já cortaram a internet. Tinham demorado, penso. O Governo tomou a primeira das medidas para controlar o “contágio”: restringir a informação que entra e sai, a possibilidade de outros protestos se organizarem através de redes e grupos de mensagens rápidas e, ao mesmo tempo, esconder do mundo, pelo menos em tempo real, os atos de violência e a investida repressiva que usa contra os que discordam.

O próprio Governo nos ensinou, desde a noite de 26 de novembro de 2020, quando tirou os aquartelados de San Isidro de sua sede, que se corta a internet é porque algo está acontecendo, alguma porta está derrubando para tirar os grevistas opositores, alguma moradia está sendo invadida, um ministro está dando um murro, algum grupo de artistas/jornalistas está sendo colocado aos golpes em um ônibus. Cortar a internet em Cuba é um alerta de repressão.

Quando o táxi passa por Neptuno, perto de entrar no El Vedado, nos deparamos com um grupo de pessoas que se manifestam. A população do bairro de Centro Habana foi às ruas. Dão passos firmes, uns cantam “Pátria e vida”, outros apenas gritam “Liberdade”. Aparecem cada vez mais pessoas. Fico impressionada. Há policiais em uma esquina. Eles também assistem à demonstração com walkie-talkie em mãos, atordoados, como se não soubessem o que fazer e aguardam indicações do alto comando.

O táxi anda devagar para não atropelar ninguém. Fico impaciente e ao mesmo tempo acho que nunca me senti tão feliz em um engarrafamento como esse. Vale a pena. Eu quero descer e me juntar aos manifestantes, mas meu amigo me espera. Quando chego, ligo para ele e digo que já estou no El Vedado. Vou em direção ao ICRT.

De longe, vejo um grupo de jovens em frente à entrada. Gritam algo, levantam as mãos, gesticulam, se movem. Alguns veículos e pessoas param para olhar. À medida que me aproximo, descubro rostos familiares. Também está se tornando mais claro para mim o que reivindicam. Pedem alguns minutos de resposta na televisão. Uma televisão única em Cuba, controlada pelo Partido Comunista, que há meses se encarrega de assassinar publicamente a reputação de todos eles, acusando-os de mercenarismo, revelando detalhes de suas vidas íntimas, violando a privacidade de suas redes sociais. Uma televisão sem contrapartida, difamatória e paternalista com seus usuários, a quem tenta explicar, através da condescendência, o que chama de “farsa dos artistas e opositores pagos pelo inimigo”.

Os artistas em frente ao ICRT pedem, além disso, respeito aos direitos de expressão, criação, demonstração e associação sem mediação da violência. “Direito a ter direitos!”, clamam. Chego justamente no momento em que os manifestantes cantam o Hino Nacional. Fico emocionada. Abraço o ator Daniel Triana, cumprimento Yunior García Aguilera e outros conhecidos. Em seguida, uno-me às suas demandas.

Os trabalhadores do Instituto, parados na porta do prédio, respondem com consignas pró-Governo. Lançam vivas à Fidel, Raúl e à Revolução. De vez em quando se lembram de Díaz-Canel. Mais trabalhadores se unem a eles. Pela forma como chegaram, parecem ter sido convocados às pressas. Trazem bandeiras cubanas, como se dessem mais importância à Cuba do que o resto. “Somos cubanos!” “Nós somos iguais a vocês!”, nós os recordamos a plenos pulmões. Sentamos no chão. Não queremos confronto. Mesmo sentados, continuamos firmes a pedir que sejam respeitados os direitos que viemos exigir.

Querem provar nosso verdadeiro interesse em Cuba, repetindo consignas como “Abaixo o bloqueio!”, “Cuba sim, ianques não!” . Rapidamente nos levantamos e, ao contrário deles, mostramos que podemos dizer suas consignas, as que conservam um pouco de sensatez. Isso os confunde. Não se espera que falemos abertamente contra o bloqueio e contra a interferência norte-americana. Mas, como bons repetidores, eles retomam seu discurso. Não conseguem pensar em outra coisa.

Suas consignas carecem de criatividade. São as que o oficialismo ensinou desde 1959. Desde então, toda originalidade e espontaneidade morreram. A Revolução sem revolucionários. Ou com muito poucos, os poucos que também foram expulsos do oficialismo e difamados por terem se atrevido a discordar no mínimo.

Os “segurosos” ou agentes da Segurança do Estado começam a chegar. Vão se localizando estrategicamente entre nós. Alguns parecem nervosos, recebem ligações, desligam, suam, enxugam suor, olham para nós, mexem no celular, metem a mão no bolso, olham para nós, roem as unhas, tentam se camuflar entre nós. Mas sabemos como distingui-los. E geralmente estamos certos.

Eles estão esperando o momento propício para prender violentamente as figuras-chave da manifestação e dissipar tudo. Estamos cercados. Eles estão atrás e nas laterais; em frente, os trabalhadores do ICRT, que aumentaram o tom, tornaram-se agressivos. O que eles entendem como um confronto para ver quem grita mais alto e quem mais defende Cuba, para nós é uma tentativa de diálogo, um desafio ao poder, um ensaio de democracia.

Eles nos olham com ódio e gritam “Abaixo a gusanera[5]!”. Aproximam-se para reafirmar na nossa cara: “Cuba Sim, ianques não!”. Seguimos: “Cuba sim, ianques não, autoritarismo oficialista e violações dos direitos humanos tampouco!”. Respondemos a eles com “Viva Cuba Livre!”, Livre dos ianques e, também, dos autocratas e ditadores erroneamente chamados de revolucionários.

Vejo meu amigo à distância e saio da multidão para encontrá-lo. Um seguroso me agarra pelo braço e pergunta para onde estou indo. Eu não respondo e apenas olho para a mão dele em mim. Ele me solta. Ele está impaciente e sufocado. Já quer começar sua manobra repressiva. — Estão à mostra — digo a ele. Enquanto me afasto, ouço-o dizer a um:  —O que você está fazendo aqui? Dá o fora ou levo você também.

Chego no local no qual está meu amigo e conto a ele o que aconteceu. Mantemos uma distância prudente. Ele pensa que esta é uma tentativa fracassada. Um caminhão estaciona logo atrás dos manifestantes. Os trabalhadores do ICRT abafaram a manifestação. Meu amigo fica irritado:

— Mas você vê as idades? Você se dá conta? O problema de Cuba é geracional — sentencia. — Vamos ao Malecón porque deve haver algo lá.

À medida que nos afastamos, o caos se arma. Colocam alguns artistas e ativistas à força no caminhão. A aglomeração raivosa “revolucionária” grita para eles embaixo, aprova a violência. É cúmplice. Vemos pessoas correndo entre os carros, policiais e agentes da Segurança do Estado perseguindo e atacando jornalistas que filmaram os fatos. O mais certo é que queiram apagar o que foi gravado e destruir seu equipamento de trabalho. Sinto frustração e um pouco de angústia. O que vai acontecer com eles?

Descemos La Rampa e atravessamos Centro Habana pelas ruas próximas ao Malecón. A ideia é aderir a qualquer protesto que apareça. Ao longo do caminho, somos acompanhados por outros amigos e conhecidos. Um deles nos conta que Díaz-Canel, na televisão, acaba de chamar os revolucionários às ruas para conter as manifestações, o povo para enfrentar o povo. Ele disse que a ordem de combate foi dada. Singao começa a perder ar homofóbico e agora me parece um adjetivo muito pobre para descrevê-lo.

No momento não vemos nada, embora as ruas estejam tumultuadas. Nota-se que algo aconteceu. Cuba despertou com mais desejos de liberdade do que nunca. O sol está forte e estou começando a ter sede. Chegamos ao Prado. Aí também não há nada. Finalmente compramos água em uma lanchonete do Museu de Bellas Artes. Subimos em direção ao Parque Central, cansados ​​e sem esperança. Acreditamos que tudo acabou.

Conforme nos aproximamos, um coro de vozes mais alto é ouvido. Já no parque somos surpreendidos por uma imensa quantidade de pessoas se manifestando. Isso é impressionante. Não vi uma concentração assim em Cuba, portanto, não é para os atos convocados pelo oficialismo, geralmente sob coação. A alegria das pessoas é contagiante. Meu amigo sorri, grava com seu celular. Fica emocionado e encorajando os que passam. Eu o ouço dizer: “Isso, isso é o que precisávamos fazer. Amanhã Cuba amanhece livre”.

Imediatamente nos colocamos entre os manifestantes, que estão passando pelo Prado em direção ao Malecón. Ninguém pede intervenção militar, ninguém pede anexação aos Estados Unidos. Pelo menos lá, “Pátria e Vida!”, “Estamos com fome!”, “Remédios!”, “Fechem as lojas do MLC[6]!”, “Abaixo a ditadura!”, “Chega de violência e repressão!” e “Liberdade!” São as reivindicações e consignas que dominam o protesto. É verdade que também de vez em quando dedicam um singao a Díaz-Canel.

Os “boinas negras” e os poucos “revolucionários” que surgiram, tentam tomar o controle e nos isolar. Mas somos muitos; Somos uma massa de pessoas que nunca pensei que veria reunidas um dia. Os boinas negras nos intimidam com as suas armas e respondemos gritando que não temos medo, porque “o povo unido nunca será vencido”. A consigna que o oficialismo nos fez memorizar, hoje usamos contra ele. Há assobios, aplausos, sorrisos, entonações do Hino Nacional cada vez que os boinas negras tentam aplicar sua força.

Impedem nossa passagem, mas descemos a toda velocidade uma rua perpendicular ao Prado até chegarmos à do Museu da Revolução. É uma virada inesperada para quem quer dissipar o protesto. As pessoas correm pelas laterais e jardins do museu em direção ao Malecón. Eu gosto do caos. O trânsito para, ônibus e carros dão buzinadas, algumas pessoas nos encorajam das janelas dos ônibus.

Encontramos algumas jovens trans e travestis que também vão à manifestação. Meu amigo me diz: “A comunidade LGBTIQ está presente”, e nós dois rimos. Ele aperta minha mão com força e continuamos. Eu paro para olhar para as pessoas que estão protestando. A maioria delas são afrodescendentes, gente do bairro. Somos um batalhão. Somos as pessoas que vivem em bairros e comunidades vulneráveis, para quem a Revolução foi feita. “Marginais”, “vulgares”, “confusos”, “delinquentes”, diriam o presidente e alguns intelectuais.

Atravessamos o túnel e nos aproximamos cada vez mais do Malecón. Os boinas pretas estão atrás de nós. Quando eles se aproximam de alguém em particular, corremos para cercá-los com as mãos para cima. Não seremos violentos, mas não permitiremos que agridam ninguém. Corremos de um lado para o outro. Nós os sufocamos. De repente, perco meu amigo. Ele me liga e me diz que está na estátua de Máximo Gómez. A esplanada circular está cheia de manifestantes. O grande bloco parece ter se fragmentado: alguns chegaram ao Malecón, outros recuaram ou permaneceram sob o Generalíssimo gritando “Liberdade”.

Encontro meu amigo, que fica feliz por ver tudo o que se armou. Começamos a nos sentir cansados ​​e com sede e decidimos ir embora. Um grupo de idosos armados com paus passa por nós. São os convocados pelo presidente para lutar contra os manifestantes. São alguns velhos cansados. Podem ser meu avô. Naquele momento fico feliz porque meu avô, o combatente, morreu e morreu decepcionado. Ninguém vai forçar meu avô a dar pauladas. Ninguém vai buscá-lo para isso.

Mais atrás, vemos uma formação de soldados do serviço militar obrigatório e ônibus do qual descem civis para nos enfrentar. Alguns destes últimos nos alcançam na Rua Habana quando pretendemos sair. Eles vêm com bandeiras e consignas automáticas, seus aplausos a Fidel e à Revolução. Vêm com sua tradição de atos de repúdio[7], cantam para nós “Pin pon fora, abaixo a gusanera”, gritam: vende-pátria, comprados, mercenários. Ainda me assombro com a facilidade dos oficialistas em chamar qualquer pessoa com um pensamento dissidente de mercenário.

Cantam “Eu sou Fidel!” e dizem que contra esta Revolução ninguém pode. A maioria são mulheres. Gritam e suas veias saltam, o rosto corado. Meu amigo pede a uma delas para levantar a máscara. A mulher responde que tem mais coragem do que ele. Gritam-nos para sairmos, que abandonemos o país, que Cuba é deles, os “revolucionários”. Exibem suas bandeiras com orgulho, como se desejássemos outra bandeira. Como se apenas eles fossem dignos de carregá-las.

Sinto uma profunda impotência e desejo de respondê-los. Meu amigo me convence da improdutividade de tentar algum diálogo com eles. Os fanáticos só acreditam em seus dogmas e, portanto, não há ninguém que os mova dessa posição. Finalmente partimos. A tarde vai terminando. Ainda estamos sem internet, mas ficamos sabendo que em toda Cuba houve protestos, prisões, violência excessiva das forças policiais e até feridos.

Voltamos para o Prado. Há um tumulto confuso de “revolucionários” e manifestantes antigoverno. Encontramos outros amigos que nos dizem ter sido feito algo grande em Carlos III, também. Aqui vamos nós. Já estou cansada, ainda sigo sedenta e suando, mas, de fato, agora não há nada mais importante no meu país do que estar na rua e apoiar.

No caminho, uma senhora nos pergunta:

“E vocês, de que grupo são?” Da Pátria e Vida ou da Pátria ou Morte?

Primeiro rimos, depois entendemos o que ele quis dizer. Um de nós respondeu que da “Pátria e Vida.” “Somos os que queremos uma vida melhor, liberdades, que nossos direitos sejam respeitados, uma Cuba Livre”, agrego. Entendo também o que meu pai – eletricista e negro marginal de San Miguel del Padrón, segundo a descrição da cúpula do poder – quer dizer quando canta “Pátria e Vida”. Ele e os milhares que cantamos em todo o Prado.

Subimos pela Belascoaín. A rua está cheia de gente e todos falam a mesma coisa: protestos e violência policial. Carlos III tem mais policiais do que civis. Parece que algo aconteceu aqui. Sentamos em um parque wi-fi. Uma das que vieram conosco consegue se conectar à internet e nos conta o que aconteceu em outros municípios e cidades do país. Aparentemente, na Plaza de la Revolución houve um grande confronto. “Esse é o lugar”, diz meu amigo. E para lá iremos. Talvez cheguemos a tempo de algo.

O cansaço e a sede aumentam. Minhas pernas não aguentam mais e estou com fome. Todos olham para nós na rua. As pessoas começam a olhar com desconfiança. Nós também a eles. Serão? O que serão? Serão “Pátria e Vida” ou “Pátria ou Morte?” Chegamos a uma das ruas que levam à Plaza. Na esquina, há um grupo de pessoas observando algo. É um desfile de “reafirmação revolucionária”, preparado pelo Governo. Uma forma de limpar a honra da Revolução.

Mais à frente, sob algumas árvores, civis mais velhos também estão observando. Nós passamos atrás deles. Um menino que vem correndo conta que para lá está militarizado. Não vão nos deixar passar até o final do desfile. Decidimos voltar. Os senhores que deixamos atrás começam a gritar coisas para nós. Um deles, o mais velho, pergunta-nos o que fazemos e para onde vamos. Nós respondemos que vamos para a casa.

— Vocês sabem que isso é mentira  —  diz alterado. —Vocês não estavam indo para casa. Saiam daqui provocadores.

Eu vou em frente. Tento não me deixar provocar. Lembro-me das palavras do meu amigo: “O problema de Cuba é geracional”. Não vou negar que esses senhores reacionários me intimidam. Ficam agressivos em um minuto. Mas na realidade o que eles têm é um profundo medo: alguns de perder sua posição social e privilégios, outros de perder algo que lhes faz falta há muito tempo.

— Vão embora. As ruas são dos revolucionários — diz o ancião.

— Não, as ruas pertencem a todos os cubanos — respondeu um de nós.

O velho fica gritando enquanto nos afastamos. Mais tarde, antes de entrar no El Vedado, vemos outro grupo de “revolucionários”. Uma mulher nos intercepta e nos pergunta também para onde vamos. Eu a reconheço. É um daquelas que chegaram como reforço e com bandeiras cubanas ao ICRT.

— Vamos para casa — dizemos a ela que nos olha com desconfiança. Estão convencidos de que as ruas são deles.

São 8 da noite, estou com sede, não consigo sentir minhas pernas. Eu preciso de um banheiro. Na verdade, não estou com muita fome. O que menos pensei foi na gaceñiga. Meu amigo não fez sua parte. Da próxima vez será, penso. Já ninguém pode nos parar.

Naquela noite eu fico na casa dele. O toque de recolher me pegou. Não consigo dormir, apesar do cansaço. A experiência durante o dia me mantém extasiada. Foi uma injeção de energia. Finalmente adormeço, satisfeita. Poderão nos tirar as ruas, mas já perdemos o medo. Tivemos outro gostinho de liberdade e é como quando descobrimos o sexo ou algum vício. Sentimos a necessidade de repetir uma e outra vez mais.

Eles podem nos assustar com seus cães, com seus tiros; podem nos violentar com seus bastões e paus; deter, sitiar, interrogar, meter aos empurrões em um caminhão, cortar nossa internet, mas não podem negar que esta noite dormimos em uma Cuba um pouco mais livre. Eles podem criar desafetos familiares, com amigos e vizinhos, mas não me farão esquecer que tenho uma gaceñiga pendente para as próximas revoluções.

Veja o mapa das manifestações em Cuba


[1] A gaceñiga cubana ou “pan de Gazzaniga” é um pão doce, muito simples de preparar e popular. A receita foi feita em sua homenagem à cantora italiana Marietta Gazzaniga, que se apresentou em Havana no século XIX.

[2] Singao: insulto de origem homofóbica, semelhante a dizer um palavrão como “arrombado/cuzão”.

[3] Manifestação em La Habana, em 1994.

[4] Manifestação pelo direito das LGBTIs cubanas, 11/05/2019

[5] Gusano/gusanera: referência aos desertores à direita do regime.

[6] Lojas que vendem produtos apenas em moeda estrangeira, inacessíveis à maioria da população,

símbolos da desigualdade no país.

[7] Escrachos organizados pelo governo aos opositores do regime.