Rose Colombo, de Porto Alegre (RS)

Era início dos anos 2000. Sinto até hoje o cheiro de mar e o som das ondas batendo forte no Malecón – uma das principais vias em Havana. Foram somente 10 dias vividos na ilha, mas me consola o que Susan Sontag falava – para conhecer um lugar a gente não deve ficar muito tempo. A diversidade de ambientes em que transitei foi incrível – a começar pela estadia. Nas duas primeiras noites me hospedei no simbólico Hotel Habana Libre – primeira sede do governo revolucionário do Movimento 26 de Julho, naquele distante 1 de janeiro de 1959.

Nunca fui fã do Fidel, mas sim da revolução cubana, o que diz muito sobre o nível do impacto que senti em minhas vivências nesses dias. É possível defender a Revolução Cubana de 1959 e ao mesmo tempo ser contra a estrutura de poder que se consolidou na ilha? A resposta é sim, apesar da lógica binária instalada sempre que se discute o assunto. Tal lógica, aliás, passa bem longe da estrutura do pensamento marxista – a observação da realidade usando os instrumentos metodológicos do materialismo histórico e da dialética – e está na base de certas truculências quando se trata de fazer crítica dentro do “campo da esquerda”.

Foi exatamente utilizando o método marxista que os poucos revolucionários sobreviventes da degeneração da III Internacional Comunista conseguiram, já nos anos 20, teorizar sobre um novo fenômeno, dramático, mas real, de formação de castas privilegiadas e da burocratização dos partidos comunistas. Obviamente é uma longa história que não tem como ser contada aqui. Mas desde sua instalação cancerígena nos ditos partidos comunistas e até hoje, a deformação do ideário socialista e comunista produz uma imensa confusão entre a maioria do povo no planeta. Não há socialismo e muito menos comunismo se não houver democracia entre a maioria da população. A identificação do “comunismo” com autoritarismo é um triste subproduto de revoluções que foram traídas e/ou derrotadas e geraram privilégios nas cúpulas dos partidos comunistas ou similares.

Quem está indo às ruas em Cuba? São todos contrarrevolucionários pagos ou iludidos pela burguesia cubana exilada em Miami? É só isso? Claro que não. Há setores pró-capitalistas nas manifestações? Seria ingênuo achar que não. Impossível analisar o que se passa em Cuba usando chavões. Mas é inegável que há um movimento de massas que, em sua natureza, é essencialmente anti-capitalista: clama por comida, vacina e liberdade – condições básicas de uma existência digna.

Pois bem. Cheguei naquela noite de janeiro e do avião dava para ver a cidade quase totalmente no escuro – o já famoso apagão. No outro dia, fui tomar meu café da manhã no hotel vestindo uma camiseta que, enfim, achava conveniente para a ocasião. Nela estava estampada “Um outro mundo socialista é possível” e percebi olhares como se fosse uma E.T. Nem era de compañeros castristas, mas de turistas endinheirados, mesmo. Passados esses dois dias no tal hotel já deu para perceber que os cubanos entravam nele somente como empregados. E vejam, a primeira medida do governo revolucionário cubano de 1959 foi um decreto intitulado – La Playa para todo el Pueblo – porque os moradores eram proibidos de frequentar as maravilhas a não ser como empregados. Já no terceiro dia me instalei num modesto e bacana hotelzinho em frente à Universidade de Havana. Era lá que estariam meus tesouros de pesquisa para o mestrado. Mais dois pernoites. Estava começando a me aproximar da Havana dos havaneros.

Nos próximos quatro dias, minha morada foi a casa de Marguerita, uma simpática enfermeira e seu marido eletricista que alugavam quartos para turistas. Finalmente havia entrado numa típica casa de trabalhadores locais. Uma sucessão de prédios de andares baixos, com uma fachada sem manutenção, mas cujo interior tinha reparos típicos de quem recebia dólares enviados do exterior por parentes. Tudo muito simples é claro, mas era um lar. À noite a TV passava uma novela da Globo enquanto Marguerita preparava o jantar.  Meu quarto era pequeno, porém aconchegante depois de uma jornada diária de 10 horas por bibliotecas.

Lembro-me que um tempo depois, aqui no Brasil, ao chegar numa nova escola, na Restinga, vi conjuntos residenciais com o mesmo tipo de janela dos conjuntos cubanos – umas persianas de alumínio que me levaram de volta à ilha. Os meses seguintes da volta ao Brasil foram de pesquisa com a Revista Economia y Desarrollo, da Universidade de Havana. Para aliviar o peso do trabalho de crítica ao castrismo sob uma ótica marxista só aquele banho em Trinidad – no mar do Caribe – me salvou. Entrei na água de óculos para me certificar do que estava vendo; até minha unha encravada aparecia em versão azul turquesa.

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