No segundo dia no país, editor do Opinião Socialista conversa com operários que contam com orgulho como foram os protestos na jornada de agosto, pelo salário mínimoFaz calor por aqui, mesmo no início do inverno como agora. As pessoas nas ruas usam camisetas, blusas e camisas de mangas curtas, seja de dia ou de noite. Não existe grande variação de temperatura entre o verão (33 graus) e o inverno (27). O povo haitiano não tem roupas diferentes para uma estação ou outra.

Estou em Belair, um dos bairros pobres de Porto Príncipe. Cinco operários e duas operárias da organização Batay Ouvriyé (Batalha Operária) me descrevem a grande greve operária de agosto. Foram golpeados pela polícia ou pela Minustah, alguns foram presos, todos estão ameaçados de demissão ou já foram demitidos. Mas falam com orgulho da greve. E têm razão.

Primeiro contaram como o salário mínimo no Haiti era no primeiro semestre deste ano de 75 gourdes por dia, mais ou menos R$ 70 mensais, quase sete vezes menor que o brasileiro. É bom lembrar que os preços das mercadorias aqui são semelhantes aos do Brasil.

As grandes empresas têxteis norte-americanas produzem aqui a um preço baratíssimo (salários menores que os chineses), com custos de transporte muito pequenos (o Haiti é praticamente na costa dos EUA). Empresas como a Nike, Wrangler e Levis confeccionam seus produtos no Haiti. Neste momento já existem 25 mil operários têxteis, e os planos de construir cinco novas zonas francas podem elevar este número em seis anos para 400 ou 500 mil. Para discutir este plano, esteve no Haiti recentemente o ex-presidente dos EUA Bill Clinton, com 150 empresários. Do Brasil esteve também uma delegação de doze empresários, incluindo um representante de José Alencar, vice-presidente do Brasil e dono da Coteminas, uma grande empresa têxtil.

Enquanto os operários falam, lembro que um dos motivos centrais para que a revolução haitiana de 1804 fosse vitoriosa foi que sua base social era de um tipo diferente de escravos. O Haiti era a mais rica das colônias, e produzia açúcar para o mercado mundial em grandes plantações. Os escravos eram concentrados em grandes fazendas, se aproximando à condição do proletariado agrícola. Isso lhes deu uma consciência coletiva, uma forma de agir e combater que foi decisiva para a vitória. Agora, o imperialismo está repetindo a dose, com a indústria têxtil. Pode acabar tendo a mesma resposta.

O motivo do orgulho dos operários de Batay Ouvriyé é que neste ano, a capital, Porto Príncipe, viveu uma grande luta pela elevação do salário mínimo. Um exercício em grande escala da moderna classe operária haitiana.

A reivindicação era de 200 gourdes por dia, algo próximo a R$ 190 por mês. As mobilizações começaram em maio, com Batay Ouvriyé organizando junto com outros grupos protestos junto ao parlamento, que depois de muita pressão, votou em julho pelo reajuste. Mas o presidente Préval, atendendo às pressões das multinacionais, vetou o reajuste para a indústria têxtil, só aceitando os 200 gourdes para os demais ramos da produção. Para os têxteis, permitiu somente 125 gourdes, mais ou menos R$ 120 por mês.

As mobilizações se radicalizaram, agora contra Préval. As fábricas têxteis da zona industrial pararam todas, se mantendo em greve por duas semanas. A patronal deixou de pagar os salários (que são pagos aqui todas as semanas), para estrangular a mobilização pela fome. Houve quebra de escritórios e mesas dos gerentes.

Dos 25 mil em greve, dez a quinze mil operários faziam passeatas diárias que percorriam a cidade, saindo da zona industrial e indo até o parlamento ou até o palácio presidencial. Pelas ruas, eles gritavam “Abaixo Préval” , “Préval, capacho dos patrões”, “Abaixo a Minustah”. Como é tradição aqui, levavam galhos de árvores nas mãos que sacudiam com força enquanto marchavam. No caminho, passavam pelos bairros pobres da capital. A população vinha lhes dar água ou simplesmente aplaudir.

As passeatas tinham de enfrentar a repressão da polícia e da Minustah. Muitas vezes se dispersavam e reagrupavam logo depois. Uma vez viraram um carro da ONU, obrigando seus ocupantes a gritar “200 gourdes”. Outra vez puseram para fugir uma brigada da Minustah em frente ao Parlamento.

A burguesia e Preval atacaram Batay Ouvriyé como responsável pela greve. Um dirigente da burguesia ameaçou processá-los pelas depredações dentro das fábricas. Nos bairros e nas fábricas os operários associavam Batay à luta pelos 200 gourdes.

Uma das operária me fala: “Foi a primeira vez na história daqui que a classe operária de uma categoria tão importante se moveu de conjunto, e com tanta força”. Por duas semanas seguidas, a cidade foi sacudida por mobilizações cada vez mais radicalizadas. O apoio dos bairros pobres fechou o circuito. Na verdade uma fortíssima mobilização operária com apoio majoritário popular levou a uma crise política ao governo, ao parlamento e à ocupação militar.

Foi marcada então uma mobilização para 17 de agosto, em que pela primeira vez os bairros pobres não só apoiariam as passeatas, mas se somariam à mobilização. As organizações populares de Cité Soleil (a maior favela do Haiti), Belair, Solino se comprometeram a participar. Esse ato poderia parar toda a cidade, e dar um novo salto na mobilização.

Aí entrou em cena com força a Minustah, comandada pelas tropas brasileiras. A cidade foi toda ocupada militarmente, em particular as ruas de acesso à zona industrial e aos bairros pobres mais importantes. Foram proibidas todas as mobilizações. Durante uma semana, as fábricas ficaram paradas e a cidade semi paralisada pela ocupação militar e a repressão. Muitos ativistas ficaram quinze a trinta dias presos.

Os operários gritavam em creole: “Si se pa t pou Minista nou ta gen jete Préval” ( se não fosse pela Minustah, derubaríamos Préval).

No dia 19, o congresso voltou atrás e votou na imposição de Préval. Dizem que as empresas deram milhões de dóalres aos parlamentares.

As fábricas voltaram a funcionar uma semana depois, com policiais armados em seu interior, que impediam qualquer ação e resitência. Cansados, sem salários e frente à uma repressão brutal, os operários voltaram ao trabalho. Dois meses depois centenas de ativistas que estiveram a frente da luta foram demitidos das fábricas.

Transmito aos operários brasileiros, o recado de seus camaradas de classe haitianos: “A Minustah está aqui para nos fazer aceitar o inaceitável”. O verdadeiro papel das tropas do governo Lula no Haiti é este: reprimir uma mobilização justa que reivindicava receber menos da metade do salário mínimo dos operários brasileiros. Não existe nada de humanitário na missão das tropas. Estão defendendo a exploração brutal dos haitianos, a serviço das multinacionais e da burguesia brasileira.

A classe operária haitiana foi à luta e foi derrotada. Mas tirou dessa mobilização conclusões muito importantes sobre o papel de Préval e da Minustah. Pixações contra o governo e as tropas inundaram os muros do país. Foi apenas o primeiro exercício como classe de uma longa batalha. O Haiti rebelde começa a tomar um rosto proletário.

LEIA TAMBÉM

  • Cartas do Haiti – ‘Estou em casa’ (primeiro dia)