Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU
A passagem de Lula pela Europa repercutiu mundo afora e seus discursos foram efusivamente saudados por seus apoiadores. Contudo, como discutido no artigo “Meio ambiente: a hipocrisia do imperialismo e a diferença entre discurso e prática de Lula”, “boas intenções e belas palavras” à parte, o problema é que “tanto as ações passadas [dos governos petistas] quanto presentes, e as que se projetam para o futuro” significam “implementar um projeto ao país em prol do capital estrangeiro e do imperialismo”.
Uma verdade que não se aplica somente ao meio-ambiente, mas também é particularmente válida em relação a um tema que Lula tocou rapidamente num discurso e em um tuíte, no sábado, dia 24: a terrível situação vivida pela população do Haiti, o país que, há décadas ,é apontado como o mais pobre das Américas.
Na postagem, Lula “denuncia” que o fato da “questão do Haiti não entrar na pauta, é como se não fosse uma questão de ninguém, mas na verdade é um problema de todos nós”, supostamente distanciando-se desta postura por ter se reunido, na quinta, 22, com Ariel Henry, o primeiro-ministro haitiano (a pedido do haitiano, diga-se de passagem).
Em seu discurso, Lula chegou até mesmo a lembrar que o Haiti “paga o preço de ser o primeiro país a conquistar a independência, o primeiro país em que os negros se libertaram”. Tudo muito bonito, se não fosse por um monte de “poréns” que revelam o verdadeiro sentido das práticas dos governos petistas.
Um passado marcado pela promoção de uma violenta e criminosa ocupação militar, entre 2004 e 2017. Um presente que vê o Haiti como fonte de lucro. E um futuro que ameaça patrocinar mais uma intervenção internacional no pais.
No passado, a Minustah, um vergonhoso crime cometido pelos governos petistas
Em seu discurso, Lula se vangloriou de ter sido responsável por ter feito o Brasil “passar 13 anos no Haiti” e ter sido único país “que colocou dinheiro vivo lá: 40 milhões de dólares”. Exemplo execrável da detestável “mania” pós-moderna e reformista de tentar transformar a História em “narrativas”, distorcendo e moldando a realidade, ao fatiá-la em pedaços que condizem com os interesses de quem discursa.
E, neste caso, a História, de fato, é toda outra. Pra começo de conversa, o nefasto papel cumprido pelos governos petistas só pode ser chamado de “fazer o trabalho sujo” do imperialismo, particularmente do presidente George Bush (naquele momento, muito ocupado com os ataques ao Iraque). E isto usando o Haiti como moeda de troca por um assento no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em agosto de 2017, Eduardo Almeida, membro da direção do PSTU e da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI), e que viajou três vezes ao Haiti, como parte de iniciativas do nosso partido e da CSP-Conlutas, escreveu um “balanço” categórigo da atuação da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), comandada por Lula e Dilma, em parceira com outros governos ditos de “centro-esquerda”, como Evo Morales (Bolívia), Michelle Bachelet (Chile) e Tabaré Vázquez (Uruguai), entre 2004 e 2017.
No artigo intitulado “Algumas verdades que não serão esquecidas sobre a Minustah”, Eduardo lembra que a ocupação militar comandada pelos governos petistas, sob os farsescos argumentos de “ajuda huminatária” e única forma de se “conter a violência”, foi “um dos episódios mais vergonhosos da história latino-americana”, que não resultou em melhora social alguma, sendo que as tropas não fizeram sequer uma obra nas áreas de saúde, rede de esgotos, educação, transporte etc.
Pelo contrário. O que caracterizou os 13 anos do Brasil no Haiti foram a violência e a opressão do povo haitiano. Algo particularmente cruel depois do terremoto de janeiro de 2010, que deixou 300 mil pessoas e mais de 1,5 milhão de desabrigados, quando a principal “tarefa” das tropas foi reprimir as explosões de justa revolta e proteger os quartéis contra a população faminta, além de disseminar uma epidemia de cólera, que matou 30 mil pessoas e deixou outras 700 mil doentes.
Repressão e violência que tiveram como alvos centrais os movimentos populares, as lutas da classe trabalhadora e, inclusive, seus setores mais “vulneráveis”, como mulheres, jovens e crianças. Algo que tomou proporções trágicas, inclusive porque o principal trabalho de “reconstrução” da Minustah foi recompor uma Polícia Nacional, com 15 mil soldados.
Exemplos não faltam. Em 2008, reprimiram um levante contra a fome; em 2009, se voltaram contra a greve dos operários têxteis; em 2010, invadiram uma das principais universidades do país; e, se isto já não bastasse, durante os 13 anos, vimos relatos dolorosos e asquerosos de estupros praticados contra mulheres, jovens e crianças.
Enquanto isto, a grana enviada, também teve um destino bastante distinto da “narrativa” petista. Pra começar, segundo pesquisa realizada na ápoca, somente entre 2004 e 2012, Lula e Dilma gastaram cerca de R$ 3,04 bilhões para manter as tropas no país caribenho. Isso quando o Brasil naufragava numa crise infernal. Além disso, os milhões de dólares captados para a tal “ajuda humanitária”, principalmente depois do terremoto, nunca chegaram de fato ao povo, indo parar nos bolsos de governantes e ONGs corruptas.
Outro capítulo omitido na “narrativa” de Lula é o fato do Haiti ter servido como um bizarro laboratório para as forças de repressão brasileiras, responsáveis pelo genocídio da juventude negra e periférica, particularmente as famigeradas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs, criadas em 2008) e, inclusive, para inflar a carreira de importantes porta-vozes do bolsonarismo e da extrema-direita.
O primeiro comandante militar da Minustah, entre junho de 2014 e setembro de 2015, foi o Genera Augusto Heleno, hoje filiado ao Patriota e ex-chefe do golpista Gabinete de Segurança Institucional no governo Bolsonaro, entre 2019 e 2022. Já em 2013, Dilma deu o comando das tropas para o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que ocupou a Secretaria de Governo de Bolsonaro, até junho de 2019.
No presente, a miséria e a violência semeadas pelas intervenções militares e os planos neoliberais
Em seu discurso em Paris, Lula disse que o Haiti é “um país abandonado à própria sorte, dominado pelas gangues, onde não tem mais eleições há algum tempo”, destacando em seu tuíte que o país é exemplo da desigualdade crescente mundo afora, o que exige que a comunidade internacional o encare como um “problema de todos nós”.
Mais uma vez, estamos diante de uma “narrativa”, portanto, uma vislumbre da realidade, parcial, distorcido e, em última instância, perigosamente falso. E, para confrontá-la com a História, comecemos por uma curtíssima nota publicada no portal da Presidência, em 23 de junho, sob o pomposo título “Presidente Lula conversa sobre reconstrução, estabilidade e desenvolvimento com primeiro-ministro do Haiti”.
No texto, pra além de elogioos à Minustah, o principal destaque é dado para o fato de que “nas relações comerciais, o Brasil exportou (de janeiro a maio de 2023) US$ 25,8 milhões [cerca de 123,4 milhões, principalmente em soja e produtos pecuários] para o Haiti”, enquanto as importações foram “na ordem de US$ 300 mil” (R$ 1,4 milhão, com destaque para petróleo e seus derivados).
Ou seja, no fim das contas, para o governo petista, o grande projeto de “reconstrução” do Haiti passa por ver o país como um “mercado”, algo que sempre esteve por trás da ocupação militar, utilizada para facilitar a aplicação dos planos neoliberais, principalmente através da imposição de zonas francas, com multinacionais produzindo para o mercado norte-americano, livre de taxas alfandegárias, e, em geral, sem quaisquer direitos trabalhistas.
Isto intensificou em muito a miséria e o verdadeiro caos que correm soltos no país, como denunciado no artigo “Haiti: a reação popular avança contra a barbárie”, publicado, em 07/06/2023, no site da LIT-QI.
Um breve resumo já diz muito: em fevereiro, a inflação bateu em 48,5%; algo entre metade e 70% da população sofrem com insegurança alimentar aguda; 70% dos trabalhadores estão desempregados; e, dentre os que trabalham, 80% estão na “informalidade”.
Como parte da “herança maldita” deixada pela Minustah e, depois, levada a cabo pela Missão das Nações Unidas para o Apoio à Justiça no Haiti (Minujusth), criada pela ONU em 2017, majoritariamente com policiais, toda e quaisquer formas de manifestação contra esta terrível situação, bem como as organizações sindicais, sociais e populares, têm sido fortemente reprimidas.
Enquanto isto, a enorme maioria do povo vive sem acesso à água potável, rede de saneamento, gás de cozinha ou serviços públicos, como Educação, Saúde e, até mesmo, transporte.
Por tudo isto, não causa surpresa que os haitianos tenham protagonizado uma das maiores ondas de refugiados nos últimos anos, muitos deles tendo escolhido o Brasil como destino e, diga-se de passagem, terem, na primeira leva, sofrido com o descaso de governadores e governantes petistas, como Tião Viana, governador do Acre (principal porta de entrada, na época) e Fernando Haddad, então prefeito de São Paulo.
No meio deste caos, é verdade, sim, que o país foi tomado por gangues, como diz Lula. Mas, de novo, o presidente petista enveredou pelo terreno das “narrativas”, olhando pra realidade só do ponto de vista que lhe interessa. E, pior, como veremos abaixo, apresentando uma “solução” bem ao gosto do imperialismo.
Como destacado no artigo publicado no portal da LIT, mencionado acima, “nessa situação de extrema miséria, a violência e presença de grupos armados aumentou de forma dramática (…), a ONU calcula que cerca de 80% de Porto Príncipe, a capital do país, esteja sob controle ou influência de grupos criminosos (…), que têm relações com empresários e políticos de todos os matizes, agem livremente pelas cidades haitianas”.
Somente este ano, entre janeiro e março, esses grupos fizeram com que houvesse um salto absurdo, quando comparados com o ano passado, nos casos de homicídios (31%), sequestros (63%), roubos, estupros e outros crimes violentos. Sempre vitimando, é óbvio, os trabalhadores, trabalhadoras e a juventude.
Contudo, o que Lula não diz é que toda esta violência está a serviço da classe dominante e governante do Haiti e diretamente ligada à situação criada pelas constantes intervenções militares promovidas pela ONU desde 1993. E pior: sua proposta para “combater” a violência é se aliar ao governo ilegítimo do Haitir e instigar o imperialismo internacional a, mais uma vez, colocar suas garras no país.
A possibilidade de um futuro tenebroso: mais intervenções e exploração imperialistas
“Ninguém quer governar o Haiti, porque as gangues não deixam ninguém governar. É um enfrentamento direto com as gangues (…) conversei com [Emmanuel] Macron [presidente da França] sobre a necessidade de alguém puxar uma pauta e colocar o Haiti no centro da discussão”, afirmou o presidente petista, repetindo que o país “não pode ficar à própria sorte” e acrescentando que “o mundo deveria assumir um pouco mais de responsabilidade”.
Além de jogar no lixo o princípio básico do respeito à autodeterminação dos povos, ainda requentando a teoria (que resvala perigosamente no racismo) de que os haitianos são incapazes de se autogovernarem, Lula faz coro com o governo norte-americano e Secretário Geral da ONU que, há tempos, buscam parceiros para intervir novamente no país (sem muito sucesso até o momento, devido à forte oposição haitiana).
O fato é que, ao dizer que “nínguem quer governar o Haiti” e buscar diálogo com o governo francês, que nunca abriu mão de suas pretensões imperialistas em sua antiga colônia, Lula abre espaço para uma nova intervenção.
Seja ela direta (militar), “indireta” (através da manipulação das eleições, outra constante na história do país), ou através de uma combinação das duas coisas, como, aliás, ocorre no momento, já que o interlocutor de Lula, o primeiro-ministro Ariel Henry ocupa o cargo sem nenhuma legitimidade, já que o exerce, sem convocar eleições, desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021.
O risco não é hipotético. No mesmo dia em que Lula fazia o seu discurso, o portal da “Carta Capital”, um dos principais porta-vozes do petismo, publicou uma matéria com o indisfarçado desejo de que provar que é o próprio povo haitiano (o governo, no caso) que quer que “alguém” faça alguma coisa (“Lula denuncia em Paris o descaso dos países ricos com o Haiti e diz que levará o tema ao G20”).
“Na semana passada, o ministro de Planejamento e Cooperação Externa do Haiti, Ricard Pierre, afirmou que o risco de guerra civil no país será bastante elevado sem a intervenção de uma força internacional que ajude a polícia”, afirma o artigo, reforçando sua defesa com a declaraçã do ministro haitiano:
“O governo solicitou ajuda internacional na forma de uma força armada robusta e com um mandato claro para apoiar a polícia nacional haitiana (…). O certo é que, se este pedido não for atendido em um prazo razoável, o risco de guerra civil é quase certo”, declarou Pierre, em uma conferência da ONU.
O único futuro possível: retomar a tradição dos “Jacobinos Negros” e lutar pelo poder
Apesar de lembrar que os haitianos pagam, até hoje, um altíssimo preço por terem ousado lutar pela independência e contra a escravidão, Lula também parece ter esquecido que eles fizeram isto através de um revolução e não em conciliação com a classe dominante, a constituição de um governo de “Frente” com seus exploradores e opressores e, muito menos, “convidando” as forças internacionais para intervir em seu governo.
Além disso, o presidente petista, assim como tem feito no Brasil, prefere olhar para o “andar de cima” do que entrar em sintonia com os desejos e lutas dos “de baixo”. A leitura dos artigos publicados nos sites da LIT e do PSTU mencionados acima deixa evidente que o povo haitiano não parou de lutar um só segundo durante os últimos 20 anos.
Greves, rebeliões e explosões operárias e populares têm se levantado constantemente contra as intervenções militares, os planos neoliberais, o saque promovido pelo imperialismo ou a miséria e violência crescentes. Sempre com a radicalidade e a coragem de seus ancestrais.
Algo, agora, também demonstrado contra a violência das gangues, como também foi destacado no artigo “Haiti: a reação popular avança contra a barbárie”, publicado pela LIT, em espontâneas ações de autodefesa.
“A reação popular mais importante nas últimas semanas começou a ocorrer contra os grupos criminosos (…). O ‘movimento’ recebeu o nome recebeu o nome de “Bwa Kale” [“bastão liso”, em tradução livre]. A população pobre saiu com facões, paus, facas e tudo o que tinham nas mãos para deter os grupos criminosos”, destaca o artigo, fazendo, contudo, um importante alerta:
“O movimento Bwa Kale, hoje, desempenha um papel progressivo, já que surge a partir de uma resposta direta da população ao problema da insegurança. Entretanto, se esse movimento não avançar em sua organização e democracia, poderá se transformar em seu oposto (…). As organizações do movimento operário, popular e camponês têm a grande tarefa de tentar canalizar o enorme descontentamento social e essa organização espontânea das massas para um projeto revolucionário”, conclui o artigo.
Um projeto que só poderá ser concretizado através de organismos (“conselhos”) criados pela classe operária, que se deve colocar à frente dos setores populares em luta. Uma perspectiva toda ela diferente daquela proposta por Lula e ansiada pelo imperialismo internacional, mas que já tem seus embriões, como a Coordenação de Lutas Políticas de Operários e Trabalhadores, uma organização de autodefesa criada no país.
“Para não defender os interesses das classes dominantes e do imperialismo, BK deve sair do espontaneísmo. Tem que ir nitidamente mais longe, estruturado, com uma orientação autônoma, onde sejamos nós, trabalhadores, camponeses, operários, quem fixamos nossos objetivos, atuais e a longo prazo. E aí, o objetivo maior é chegar a outra sociedade”, algo que só poderá ser possível através da destruição da burguesia, do imperialismo e todo e qualquer um que se coloque ao lado dos exploradores e opressores.
É nesta perspectiva que nós, do PSTU, apostamos. Não na de Lula.