Ricardo Coutinho, Flávio Dino Guilherme Boulos, Fernando Haddad e Sonia Guajajara
Júlio Anselmo

Em artigo na Folha de S. Paulo, Guilherme Boulos discorre de maneira sucinta sobre o grande debate na esquerda hoje. Partimos de um grande acordo: derrotar Bolsonaro é uma tarefa urgente. Mas o interessante é que a nossa divergência começa nas próprias perguntas que Boulos se faz: “O que é preciso para derrotar Bolsonaro? É preciso fazer aliança com a direita tradicional nas eleições? É preciso abrir mão, ainda que momentaneamente, de nossos valores e propostas, em nome de uma plataforma de defesa da democracia?”

Pelo encadeamento das perguntas, para Boulos, há uma relação direta entre a luta para derrotar Bolsonaro em 2021 e a eleição de 2022.

De fato, podemos lutar pela queda de Bolsonaro hoje e discutir, desde já, as eleições em 2022. Não é este o debate. O problema é colocar a derrubada do presidente como tarefa de 2022, o que significa relegar para as eleições de amanhã algo que deve ser resolvido nas ruas hoje. O erro está em postergar no tempo, mas também em submeter a rua à urna.

Primeiro, a tática de jogar as esperanças em eleição futura é confiar na incerteza. Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje. Nada garante que Bolsonaro seja derrotado na eleição. Este jogo, inclusive, é dominado pelos ricos e poderosos.  Inclusive, as ameaças autoritárias e golpistas de Bolsonaro, que diz que não aceitaria a derrota eleitoral, enquanto usa o tempo para ir organizando a sua base militar e paramilitar, impõe ainda mais a necessidade urgente de derrotá-lo o quanto antes.

Segundo, a cada minuto que passa são mais mortes por conta da política negacionista do presidente. A discussão sobre impeachment não foi para frente ano passado por conta do discurso falso de que atrapalharia a luta contra a pandemia. Imaginem quantas vidas teriam sido salvas se Bolsonaro tivesse sido derrubado no início da pandemia? Cometerão o mesmo erro este ano? É preciso tirar Bolsonaro já com a força das ruas.

Mas o mais perigoso e importante é que não podemos misturar dois debates diferentes. Uma coisa é “unidade na luta contra Bolsonaro”, outra é “unidade na eleição para governar com a burguesia”.

Temos acordo que para derrotar Bolsonaro precisamos de unidade. Na luta, na rua, na ação, a unidade e amplitude deve ser total, construída em cima de um ponto político concreto: Quem quiser derrubar Bolsonaro é bem-vindo!

O problema é que ninguém governa um país, estado ou cidade, tendo acordo em apenas um ponto político. É preciso debater um programa político. E se é verdade que crescem os setores de oposição a Bolsonaro, também é verdade que há diversos programas políticos em seu interior, desde os socialistas até setores da direita recém-arrependidos de terem apoiado Bolsonaro. De modo que uma frente ampla eleitoral contra Bolsonaro é tentar apagar esta contradição entre projetos políticos completamente antagônicos. Significaria fazer acordo com aqueles que defendem desde a privatização, a garantia dos lucros dos grandes empresários, o neoliberalismo, os ataques aos direitos dos trabalhadores, etc. É colocar o justo anseio do povo pela queda do governo a serviço de projetos políticos que só beneficiam os ricos.

A política atual do PT e Freixo, de frente ampla com a burguesia, ao invés de derrotar a direita, é governar com a direita. Esta frente seria com os banqueiros, a Fiesp, e não negam acordos até mesmo com a direita tradicional do PSDB e MDB. Não à toa, Freixo coloca André Lara Resende e Raul Jungman para compor seu projeto.

Boulos parece discordar dessa tática de aliança eleitoral amplíssima. Bravo. Mas o artigo deixa margem a interpretações ao afirmar, mais de uma vez, que é preciso amplitude eleitoral. E propõe uma localização política para esta amplitude eleitoral:  “Quem pauta essas agendas no Brasil é a esquerda. Esse é o nosso lugar político”

Ou seja, aliança eleitoral não tão ampla. Mas com quem? É com o PT? Mas estes já governaram o país, já demonstraram na prática o caráter burguês tanto do governo quanto do projeto político que defendem.  Estão cada vez com um programa mais à direita e não menos, e isso se expressa inclusive na busca de aliança cada vez mais amplas e mais bizarras, podendo incluir até militares que estavam na cúpula do governo Bolsonaro até ontem.

Enquanto eu lia o artigo de Boulos, saiu a notícia de um encontro entre ele e o PDT para tentar avançar esta aliança. Existem várias notícias nesse sentido. Então a pergunta é: Esta “amplitude sem diluição” de Boulos seria então com partidos como PDT, PSB, e outros partidos burgueses considerados por ele de esquerda?  Estes partidos tem a direção ligada a setores do empresariado, com programas capitalistas ainda que com retórica supostamente desenvolvimentista. Governam por décadas estados pelo país em aliança com a direita tradicional. Márcio França, do PSB, por exemplo já foi vice de Alckimin. PDT neste momento está buscando DEM e PSDB para unidade em torno de Ciro Gomes.

No fim, para Boulos, esta “amplitude não significa diluição de projeto”. Completa afirmando que: “É possível ter a amplitude que o momento exige e, ao mesmo tempo, afirmar um projeto de transformações.” E o que seria este projeto? Resume em um “combate às desigualdades, à fome, ao desemprego, com retomada do investimento público e enfrentamento a privilégios.”.

O problema aqui é que o próprio projeto já é diluído. Esquerda e direita são termos com uma imprecisão grande e não ajudam a especificar o conteúdo da proposta. Qual o projeto da esquerda? Como combater a desigualdade, a fome e o desemprego? É possível fazer isso com receio de avançar para o socialismo, para a ruptura com o capitalismo? É possível construir um capitalismo mais humano e com direitos? É possível desenvolver o país sem romper com a dominação imperialista? A candidatura de Boulos em São Paulo estará a serviço de aprofundar a luta dos trabalhadores? Avançará nas pautas democráticas urgentes como a desmilitarização da Polícia Militar? Não titubeará em atacar a propriedade dos capitalistas? Avançará na organização de um poder dos trabalhadores, com uma verdadeira democracia operária, através de conselhos populares para, inclusive, ter mais poder que a ALESP ou o Executivo estadual?

Colocar os projetos da esquerda nos marcos restritos do capitalismo é parte central do problema. É a preparação das derrotas futuras, gerando mais desmoralização para a esquerda que inclusive ajudariam a própria direita.

O dilema apresentado por Boulos se resume, na verdade, a qual o tamanho da amplitude eleitoral.  E também qual o nível da diluição do programa. 1) Frente amplíssima com todos os setores da direita defendida por Lula e Freixo; ou 2) Frente não tão ampla, mas que poderia englobar partidos de “esquerda” como PDT ou PSB, defendida por Boulos. Ambos com programa nos marcos do capitalismo. Mas os trabalhadores não podem ficar presos nesse dilema.

Para derrotar de uma vez por todas a ultradireita, Bolsonaro e todo reacionarismo, o único caminho é a construção e apresentação uma alternativa independente da classe trabalhadora, com um programa revolucionário e socialista que garanta os interesses dos trabalhadores, atacando os lucros dos mega milionários que dominam a economia e política brasileira e enriquecem à custa da miséria do nosso povo.