Júlio Anselmo
Lula fez um discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) pautado na resolução da crise climática, no combate à desigualdade e em pedidos por reformas das instituições de governança global. Em seguida, fez uma declaração conjunta com Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, “em defesa dos direitos dos trabalhadores”.
É compreensível que muitos ativistas e pessoas de esquerda tenham visto o discurso com bons olhos. Até há pouco tempo, com Bolsonaro, discursos em órgãos semelhantes eram recheados de negacionismo, pautas conservadoras e reacionárias.
Em um mundo cada vez mais polarizado por diferentes setores burgueses e potências imperialistas, com uma crise econômica e social permanente, que se agrava, acrescida de uma brutal crise climática, sem contar conflitos bélicos, como o da Ucrânia, parece que faz sentido saudar uma preocupação minimamente humanista. No entanto, apesar das belas palavras, o discurso de Lula é desmentido pelo o que ele vem fazendo em seu governo.
Combate à desigualdade social não avançou
A desigualdade só vem aumentando no mundo. Em seu discurso, o próprio Lula destacou o dado lastimável de que os dez homens mais ricos do mundo têm a mesma riqueza que 40% da população mundial mais pobre.
Contudo, ao mesmo tempo que clamou pelo fim da desigualdade, Lula se reuniu com os seus principais promotores: as grandes empresas capitalistas. A agenda de Lula e Haddad em Nova York incluiu reuniões com empresários estadunidenses e brasileiros, com direito a um evento na Bolsa de Valores norte-americana. O objetivo era fechar negócios.
O problema é que, em nome de supostos “investimentos no Brasil”, o que ocorre é a venda do país. As empresas multinacionais ou brasileiras vivem em busca de lucros. Elas só entram em negócios caso sejam vantajosos para elas. Por isso, o governo tem que atraí-las dando todo tipo de benefícios: isenção fiscal, leis contra os direitos dos trabalhadores, garantias de lucratividade e todo tipo de ajuda.
Saque das riquezas
Essas empresas dos países ricos, quando vêm para cá, não têm interesse no desenvolvimento do país. Não vêm para trazer tecnologia ou ajudar os trabalhadores. Ao contrário, vêm saquear as riquezas naturais e empregar o mínimo de gente possível, pagando um salário rebaixado.
Além disso, compram as empresas nacionais e públicas em processos de privatização para lá de suspeitos. Isso tudo aprofunda a dependência do país em relação aos países ricos, perpetua um modelo de desenvolvimento que nos mantém atrasados em relação ao resto do mundo e agrava a subalternidade do Brasil em relação aos países ricos. Sem contar que as multinacionais dos países ricos pegam os lucros e riquezas arrancadas daqui, mandam para suas matrizes e remuneram os acionistas com gordos dividendos.
Não há desenvolvimento do Brasil que garanta direitos para os trabalhadores e que acabe com a desigualdade social (que é estrutural no capitalismo) que não passe, obrigatoriamente, pela expropriação das multinacionais e das grandes empresas brasileiras.
Discurso e prática
O que o Lula não disse é que não há jeito de combater essa desigualdade sem enfrentar esses homens mais ricos. Para que os trabalhadores ganhem, as grandes corporações bilionárias e seus donos devem perder. Mas não é isso que Lula, em seu governo, vem fazendo. Ele defende que é possível que todos, trabalhadores e burgueses, saiam ganhando.
O próprio governo de Lula é prova de que isso não acontece. A aprovação do Arcabouço Fiscal e da Reforma Tributária ajudou aos ricos e aos bilionários, com isenção de impostos e garantia dos lucros. Isso, em detrimento da redução de recursos para as áreas sociais, das quais os trabalhadores e trabalhadoras dependem, como a Saúde e a Educação, e com a manutenção da carga tributária pesada sobre as costas dos trabalhadores, enquanto os ricos seguem pagando menos impostos.
É preciso expropriar as maiores e principais empresas, colocando-as sob o controle dos trabalhadores, já que o problema no capitalismo não é meramente de distribuição de riqueza. Esta situação se perpetuará enquanto não mudarmos a própria forma de produção capitalista.
Por isso, mesmo as propostas distributivas mais radicais, que são cada vez mais raras de serem implementadas, não resolvem problema. Assim, o mundo se arrasta por décadas sem cumprir qualquer tipo de meta de redução da desigualdade, combate à fome ou diminuição da pobreza, como o próprio Lula reconheceu em seu discurso.
Declaração conjunta de Lula e Biden
Após uma longa fala contra a desigualdade social, Lula se reuniu justamente com o chefe da burguesia imperialista mundial: o presidente dos EUA, Joe Biden, aquele que é responsável direto pelas maiores desigualdades e barbaridades do capitalismo mundo afora.
A declaração que se diz “em defesa do direito dos trabalhadores”, contudo, ignora a realidade dos trabalhadores e trabalhadoras de ambos países e as políticas implementadas por ambos presidentes.
Lula não revogou a Reforma Trabalhista de Temer ou a Reforma da Previdência de Bolsonaro. Biden segue uma política econômica a favor da burguesia dos EUA, liberando trilhões de dólares para grandes empresas seguirem seus domínios, diante do agravamento das disputas com os monopólios chineses. Hoje, os EUA vivenciam uma onda de greves e sindicalização. Neste exato momento, está ocorrendo uma das maiores greves metalúrgicas da história recente.
Caso Lula e Biden, de fato, quisessem defender o direito dos trabalhadores seria fácil. Bastaria implementar a cláusula da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que impede a demissão imotivada. No Brasil, seria preciso apenas aprovar medidas de aumento geral do salário e redução da jornada de trabalho.
Cooptação
Não fazem nada disso porque a política de ambos é atrair e cooptar o movimento sindical dos trabalhadores. A ideia deste setor burguês é derrotar a luta dos trabalhadores. Não apenas pela repressão e pela violência; mas também pela neutralização, através da disputa do movimento para um projeto burguês de conciliação de classes.
Mas, a greve dos metalúrgicos nos EUA está tão forte, que após a visita de Biden a uma das unidades paralisadas, até mesmo Trump, o reacionário representante da ultradireita, participará de um ato e prestará apoio à greve. Ou seja, além de tudo há uma disputa sorrateira por votos, já em andamento por conta da eleição dos EUA, no ano que vem.
Capitalismo é insustentável
Desenvolvimento sustentável e a enganação do capitalismo verde
Como é reconhecido pelo próprio Lula, nesses últimos 20 anos, pouco foi feito dos compromissos firmados para redução das emissões de carbono ou para angariar recursos para preservação dos biomas. Ao ponto que, hoje, estamos assistindo ao aumento dos desastres ambientais e climáticos e chegando ao ponto de não-retorno, no patamar da destruição do planeta.
Ao mesmo tempo em que os capitalistas etiquetam suas empresas com selos de sustentabilidade ambiental, social e de governança corporativa, eles abrem novos ramos de produção ligados à tecnologia verde, que seguem poluindo e destruindo o planeta de novas maneiras. Não à toa, as mesmas empresas que defendem a “saída verde”, defendem tirar até a última gota de petróleo do fundo do mar.
As posições expressas por Lula sobre o meio ambiente são a repetição da defesa de um suposto desenvolvimento sustentável, que nada mais é que um capitalismo supostamente verde.
Mas, colocar nas mãos das empresas capitalistas o cuidado sobre o meio ambiente é uma falácia. A irracionalidade do sistema capitalista, na sua busca por lucros a qualquer custo, entra em aberta contradição com um manejo racional e sustentável dos recursos naturais, concedendo-lhe, sempre, um caráter predatório e destruidor.
Pluralismo?
Os fóruns da ONU e governança global
Lula reafirmou sua posição por uma suposta democratização dos espaços de governança global. Reivindicou que o Brasil tenha um papel no Conselho Permanente de Segurança da ONU. Denunciou o privilégio que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial dão à Europa e aos países ricos. E pediu mais pluralismo nos fóruns internacionais.
Porém, os órgãos internacionais são controlados pelos países ricos e pela poderosa burguesia imperialista mundial. Não há democratização da governança global que impeça a burguesia de exercer seu domínio ou controle sobre os trabalhadores e os povos.
Vejamos o exemplo dos BRICs (grupo fundado por Brasil, Rússia, Índia e China), o qual o próprio Lula dá como exemplo de tentativa prática de implementar esse suposto multilateralismo, que daria força aos países emergentes. Esse espaço, longe de servir para um enfrentamento com os capitalistas ou as instituições que controlam o mundo, é subserviente à outra ala da burguesia mundial, hegemonizada pelos interesses imperialistas chineses e russos.
O que estamos assistindo no mundo não é um multilateralismo democratizante em prol dos trabalhadores, mas o agravamento do fracionamento e da polarização de diversos setores burgueses e imperialistas, onde nenhum desses lados representa os interesses dos trabalhadores ou uma saída realmente democrática e soberana para os povos e países pobres.
A lógica do capital
Neoliberalismo, ultradireita e os compromissos da ONU
Lula criticou a ultradireita, o neoliberalismo e a letargia da ONU em resolver os problemas da humanidade. Mas, na prática, seu governo aplica as políticas neoliberais. A diferença é que defende um relativo aumento de alguns gastos sociais e uso de parte do orçamento público para, supostamente, impulsionar um crescimento econômico.
Mas, até isso fica no discurso, visto que os gatos sociais estão sendo comprimidos pelo Arcabouço Fiscal, enquanto, ao mesmo tempo, o governo expande as Parcerias Público-Privadas (PPPs), que servem para enriquecer as empresas capitalistas e deixar os serviços caros e ineficientes para os trabalhadores.
Mesmo na esfera do combate à ultradireita, o governo Lula vem falhando. ao não enfrentar sequer os militares golpistas, além de buscar aliança com setores do Centrão e da ultradireita.
O problema é que, ao ignorar que estes problemas são gerados e alimentados pela própria lógica do sistema capitalista em que vivemos, Lula reforça o sistema que se mostrou incapaz de resolver os problemas da humanidade. A ONU construiu uma série de objetivos, como erradicar a fome e a miséria, mas está cada vez mais longe dessa meta. Às vezes, a beleza das palavras esconde a feiura da realidade.