Nikolas Ferreira (PL) ataca as mulheres transexuais e as travestis no dia 8 de Março na tribuna da Câmara Federal | Foto: Pablo Valadares/ Câmara dos Deputados
Secretaria Nacional LGBT

Debbie Leite, da Secretaria Nacional LGBTI do PSTU

O 8 de março, dia marcado pela luta das mulheres trabalhadoras pelo mundo, o deputado da ultradireita Nikolas Ferreira (PL) sobe ao microfone na Câmara dos Deputados com uma peruca, ironizando: “hoje eu me sinto mulher, deputada Nikole”.

O alvo do ataque foram as mulheres transexuais e as travestis, oprimidas duplamente, pela sua identidade de gênero e pelo machismo, uma combinação que as submete a uma violência brutal, à exclusão do mercado de trabalho e ao acesso aos direitos mais básicos.

Não podemos tolerar um ataque desses no país que mais assassina transexuais no mundo. O mandato de Nikolas deve ser cassado imediatamente e ele deve ser julgado por crime de transfobia.

A transfobia é uma realidade, não um “sentimento”

Primeiramente, é preciso explicar: uma mulher transexual não é um “homem que se sente mulher”. O gênero não é definido unicamente pelo sexo biológico. O que é “papel da mulher” e “papel do homem” na sociedade, a lista de características e comportamentos que associamos com um gênero ou outro, são atribuições construídas socialmente, inclusive variando ao longo da história e ao redor do mundo.

Mesmo o machismo, opressão sobre o gênero feminino, não é resultado de um traço biológico dos homens, de serem “mais violentos” ou “mais propensos à liderança” – é uma construção social, que pode e deve ser questionada e combatida.

As mulheres transexuais sofrem uma dupla opressão: são violentadas por assumirem o gênero feminino e assim renunciarem ao suposto status masculino na sociedade, e por serem mulheres sofrem também o machismo. Isso aparece, por exemplo, na objetificação sexual, que as empurra para um lugar de “fetiche”, para a prostituição e a pornografia.

A brutal violência fica evidente nos índices de expectativa de vida, de apenas 35 anos. As mulheres trans pobres da classe trabalhadora são levadas à morte precoce, seja porque muitas são assassinadas, seja porque são jogadas na miséria. Tudo isso não é um “sentimento”, é a realidade que vivem essas mulheres todos os dias.

Discursos irônicos como do deputado Nikolas Ferreira, que acusa as mulheres trans de serem homens com más intenções, que querem invadir espaços femininos para sua própria vantagem, incitam essa violência. Aliás, vale questionar que vantagem seria essa, uma vez que a vida das mulheres trans é marcada pelo desemprego, marginalização e violência.

As mulheres cis estão perdendo seus espaços?

Enquanto o discurso do deputado associa trans e travestis com um comportamento predatório sexual, na verdade, essas mulheres são muito mais frequentemente as vítimas das situações estupro e assédio.

Um exemplo disso seria o uso do banheiro feminino. A realidade é que ao entrar em um banheiro feminino, quem está sob o maior risco de sofrer uma agressão é a própria mulher trans, que muitas vezes é exposta e humilhada, tendo o básico direito de atender às suas necessidades fisiológicas negado. Assim como se ela entrasse em um banheiro masculino, estaria sujeita à assédio sexual e violência física. Ao serem impedidas de acessar os banheiros, as pessoas trans são efetivamente expulsas dos lugares de estudo, trabalho e convivência social.

Outro exemplo citado foram os esportes. Segundo essa visão, as mulheres trans competindo nas categorias femininas teriam uma vantagem natural sobre as mulheres cis, por isso, seria necessário impedi-las de competir, ou empurrá-las para categorias masculinas. Uma discussão similar ocorre hoje nos Estados Unidos, com um projeto legislativo que impediria até mesmo crianças e adolescentes trans de praticar esportes.

Essa definição é tão arbitrária que até mesmo mulheres cisgênero já foram impedidas de participar de competições esportivas por conterem, naturalmente, níveis de testosterona considerados elevados demais. Duas mulheres afetadas por isso nas últimas Olimpíadas, conforme reportado pela BBC, eram jovens negras da Namíbia. Nesse esforço de supostamente “proteger as mulheres esportistas”, esses impedimentos não fazem nada mais que expulsar as pessoas trans dos esportes e prejudicar inclusive pessoas cisgênero, muitas vezes afetando ainda mais as atletas negras.

A verdade é que as mulheres trans seguem marginalizadas, e quando conquistam algum espaço, isso não é uma derrota ou um risco para as mulheres cisgênero (isso é, pessoas que nasceram com o sexo feminino e se identificam assim ao longo da vida), é um avanço na luta por direitos das mulheres e LGBTIs.

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Transfobia é crime e deve ser punida

Como o próprio deputado ironiza em sua fala, a transfobia é crime, desde 2019, a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar de muito limitada e carente de uma lei específica, a criminalização da transfobia foi resultado de muita luta, uma vez que a violência física e moral contra as pessoas trans sempre foi alvo de muita invisibilização, desaparecendo das estatísticas oficiais, encobertas nas notícias, que chegam inclusive a se recusar a usar o nome social das vítimas ao reportar um assassinato.

É importante lembrar que a criminalização não é suficiente para reverter esse cenário, o Brasil segue sendo o país que mais mata trans e travestis, mesmo com a enorme subnotificação dos crimes. Contudo, é essencial que a lei reconheça a existência e a necessidade de combater o discurso de ódio motivado especificamente pela identidade de gênero.

Por isso, a fala de Nikolas é sim um crime, que legitima e influencia as agressões e assassinatos contra trans, pois lamentavelmente encontra eco num setor da sociedade. Depois dessa declaração de ódio, de um dia para o outro, Nikolas ganhou 46,5 mil novos seguidores nas suas redes.

Ao contrário da posição vergonhosa do Partido da Causa Operária (PCO), que cada vez mais se confunde com o que há de pior na direita conservadora do país, exigir cassação não é uma “violação da liberdade de expressão” ou um caso de “censura”, é uma defesa do direito e da dignidade de um dos setores mais oprimidos da sociedade.

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A luta das mulheres é oposta à ideologia transfóbica

Não surpreende que, ao final de seu discurso, o deputado bolsonarista tenha incentivado as mulheres a assumirem o único papel que os machistas conservadores e o capitalismo nos reserva: a maternidade, a família, o lar. A transfobia, afinal, anda lado ao lado com o machismo, reforçando que a biologia e a designação de sexo no nascimento condicionariam as mulheres à submissão e homens à autoridade.

Contudo, reforçar que o mês de lutas das mulheres trabalhadoras deve incluir a todo momento a defesa dos direitos das mulheres trans não é consenso. Lamentavelmente, parte do discurso transfóbico e misógino do deputado encontra coro com as chamadas “feministas radicais” e parte da esquerda. Elas argumentam que as mulheres trans não são mulheres pois não nasceram biologicamente mulheres. Acusam as trans de impor sua ideologia à força e expulsar as mulheres cisgênero dos espaços.

O erro das feministas radicais

Ao não compreenderem que o machismo, o racismo e a transfobia estão a serviço de reproduzir as relações capitalistas para submeter um setor da classe à superexploração, ou seja, que são relações sociais que sustentam as opressões e não seu aspecto natural, acabam por cair na mesma visão tacanha da ultradireita, que vê a luta como uma guerra de gêneros. Por isso, é tão contraditório que as “feministas radicais” dediquem tanto de suas teorias e de seu “ativismo” a expulsar mulheres trans dos espaços do movimento de combate às opressões.

Isso foi visível na preparação para esse 8 de março, por exemplo, com ataques nas redes sociais contra as publicações da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) sobre a data. Em sua busca por se defederem de uma ameaça imaginária representada pelas trans e travestis, essas “feministas” adotam discursos que se confundem com os fundamentalistas e conservadores, resumindo tudo à pré-determinações biológicas, naturalizando a opressão.

Algumas, ainda, buscam justificar essa ideologia com um enfoque na “criação masculina”. A ideia que, para além da biologia, as crianças identificadas como masculinas seriam criadas desde cedo de forma a incentivar comportamentos como a agressão, que jamais poderiam ser corrigidos, constituindo um “privilégio” inato tanto de homens cis quanto mulheres trans.

O que isso despreza, contudo, é que a infância e adolescência são justamente momentos muitas vezes traumáticos e de extrema opressão para as pessoas trans – serem tratadas como homem no interior da família, e punidas por divergir desse papel, não é um privilégio, é um ataque contra suas identidades. É justamente nessa fase que muitas são expulsas de casa, da escola, e que desenvolvem transtornos psicológicos como a depressão.

Muitas das “feministas radicais” se identificam como “materialistas”, mas sua praxis não podia estar mais longe do materialismo dialético de Marx. Elas fecham os olhos para a realidade material da opressão contra as mulheres trans, que permeiam nossa sociedade de forma conectada com a exploração. Só o materialismo vulgar que ignora aspectos culturais do mundo à nossa volta, como a identidade de gênero. Pelo contrário, devemos entender a relação desses aspectos com o modo de produção capitalista, e como a transfobia serve à manutenção da exploração.

Marcha no Dia Nacional da Visibilidade Trans | Foto: Divulgação

Mulheres trabalhadoras, cis e trans contra a opressão e a exploração

Nós, do PSTU, acreditamos que a luta contra as opressões e a exploração só se fortalece com a participação das trans e travestis. Mais do que isso, não podemos avançar sem essas companheiras na linha de frente, junto ao conjunto da nossa classe.

Parafraseamos Frederich Engels ao dizer: “não pode ser livre quem oprime o outro”, e não vemos avanço nos direitos das mulheres trabalhadoras de conjunto se esse avanço não englobar as mulheres trans. É nosso dever garantir a presença e voz dessas mulheres em todos os espaços do movimento, contra qualquer tipo de ameaça ou exclusão.

Em nossa visão, é necessário unir as mulheres trabalhadoras trans, lésbicas, bisexuais, negras, indígenas e todas as que são oprimidas por sua origem, religião ou qualquer outra característica que seja usada para oprimi-la, pois não é o corpo no qual nascemos ou alguma determinação biológica, de origem ou diversidades que divide as mulheres, mas sim a condição de oprimidas e exploradas que as unifica numa luta comum. Não é a toa que o machismo submete as mulheres à superexploração e as mulheres trans à expulsão do mercado formal de trabalho por sua identidade.

É essa condição, imposta pelo capitalismo, de superexploração, violência e pobreza que faz das mulheres trans aliadas de todas as mulheres na luta contra o machismo e da classe trabalhadora explorada e oprimida de conjunto. De um lado estão as mulheres que produzem toda a riqueza sem ter acesso ao produto de seu trabalho, e do outro as mulheres burguesas, que exploram e lucram com o trabalho das demais. Entre as trabalhadoras e trabalhadores queremos a unidade para combater o machismo e a transfobia e derrubar esse sistema que nos oprime e explora.

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