Pablo Biondi, de São Paulo (SP)

Numa fala com o objetivo de minimizar a ausência de Dilma Rousseff no jantar que esboça o enlace eleitoral entre Lula e Alckmin, Washington Quaquá, vice-presidente nacional do PT, não apenas afirmou que a ex-presidente não tem nenhum papel eleitoral a cumprir, como também desmentiu, à sua maneira, a tão alardeada tese do impeachment como golpe de Estado. Suas palavras são reveladoras: “Existe um pedaço pequeno do PT que ainda fica nesse negócio de golpe. Política não se faz com ressentimento, se faz pensando em estratégias para transformar a vida do povo”.

Quaquá foi um tanto quanto ambíguo em seu posicionamento. Alegou que a direita “resolveu rasgar a democracia” ao promover o impeachment, mas ponderou que “o governo Dilma se atrapalhou na negociação com o Congresso e abriu a brecha para que se formasse maioria contra ela”. Assim, houve golpe, mas o governo cavou seu próprio túmulo. De todo modo, para o dirigente petista, qualquer que seja o balanço sobre o passado, quaisquer que tenham sido os efeitos da deposição da presidente, o PT deveria mirar o porvir: “Se você se apegar ao passado, não vai nem querer o voto de quem votou no Bolsonaro. Temos que desconsiderar o passado para pensar no futuro”.[1] Houve golpe, mas ele se tornou irrelevante, foi engolido pelas areias do tempo (leia-se: pela reabilitação judicial da candidatura Lula).

O desdém pela tese do golpe no próprio PT não é novidade. Em outubro de 2017, Lula já dizia que estava “perdoando os golpistas”,[2] tratando o evento do impeachment como uma rusga banal. Com o coração transbordante de perdão, o líder petista já vislumbrava o reingresso do seu partido no jogo político pelo método da composição com as forças conservadoras. Desde então, os satélites do petismo têm se prestado ao ridículo papel de denunciar o “golpe de 2016” com mais ênfase e indignação do que o próprio petismo stricto sensu.

O PT serviu-se da narrativa do golpe para movimentar sua base e para cooptar a esquerda frentepopulista, tendo por objetivo sobreviver à tormenta iniciada em junho de 2013 e intensificada no segundo mandato de Dilma Rousseff. Tão logo assegurou sua sobrevivência, o partido de Lula tratou de restabelecer laços com os partidos e quadros que se esquivaram do abraço dos afogados. Para os filopetistas, essa esquiva foi uma atitude golpista: esperavam que, em nome da “democracia”, o MDB de Renan Calheiros e legendas da mesma estirpe considerassem seu vínculo com o governo da época como uma estrutura inquebrantável – e com a mesma “ingenuidade” com que aguardavam (e como ainda aguardam) uma guinada do PT à esquerda, a começar pela sonhada ruptura com as alianças com partidos e candidatos da direita tradicional.

Como sempre, a virada de mesa do PT em desfavor da direita ficou para uma próxima oportunidade, desta vez sob o pretexto de se derrotar Jair Bolsonaro. Tal virada pode ser postergada infinitamente, já que a fé supersticiosa nas vias eleitorais da democracia burguesa e no reformismo também se recompõe infinitamente no campo da esquerda, mostrando-se imune às evidências. As tratativas entre Lula e Alckmin, por mais “didáticas” que sejam, são incapazes de demover a esquerda neorreformista do seu horizonte eleitoral. Aliás, esse nítido aceno performático à burguesia, que diz mais do que dez “Cartas ao povo brasileiro” (Alckmin é sabidamente dispensável mesmo sob a lógica do estrito cálculo eleitoral), será mais um revés que o neorreformismo suportará estoicamente, além de mais uma evidência política a ser sistematicamente negada.

De certo modo, o neorreformismo prova-se refém do discurso do golpe, ao contrário do PT, que se desvencilha desse script com tanta facilidade. Depois de tanto pelejar contra uma suposta ruptura institucional, o filopetismo parece condenado a “exigir” coerência dos quadros petistas, mas tais pleitos são sabidamente desprovidos de consequência. Todos sabemos que a maioria da esquerda foi longe demais nessa narrativa (muito mais do que o próprio PT) para justificar sua capitulação ao moribundo governo de frente popular, e para fazer da frente popular a política oficial do nosso período histórico. As organizações que seguiram por esse caminho chegaram a um ponto de não retorno: revisitar essa caracterização implicaria a autocrítica de uma linha de ação levada a cabo ao longo de cinco anos – uma linha que há de ser canonizada em razão dos seus frutos eleitorais.

Na perspectiva neorreformista, negar o “golpe” (ou minimizá-lo) é uma prática que se soma aos chamados “erros” do PT. Todas as condutas desse partido que possam desmentir o caráter do evento de 2016 serão vistas como equívocos, e não como o que são de fato: medidas de reiteração dos laços do PT com o sistema político no qual ele se inseriu de maneira tão orgânica e irrevogável.

De todo modo, como disse Quaquá, ainda há uma fração do petismo que insiste “nesse negócio de golpe”. É conveniente que, dentro do PT, esse discurso não desapareça por completo. É preciso que figuras como Gleisi Hoffmann mantenham viva essa leitura dos fatos na matriz do petismo, garantindo um vínculo discursivo mínimo com o que é propagado pelas suas sucursais. Enquanto isso, a política real vem sendo urdida nos jantares e demais expedientes de bastidores.

Enquanto Washington Quaquá quer “desconsiderar o passado” para solidificar os compromissos petistas de pré-governabilidade, o neorreformismo agarra-se à sua falsificação. Submete-se à humilhação pública de sustentar a descrição de um crime que é veemente negado (em atos e em palavras) pela suposta vítima – uma “vítima” que, aliás, exige apoio incondicional do denunciante em relação aos seus conluios com os criminosos, e que sabe que poderá contar com ele, quem quer que seja o ocupante do lugar de vice na candidatura de Lula à presidência. Situações como essa só reforçam, assim, a constatação de que “a proposição teórica do golpe pode ser considerada como o maior conto do vigário na história da esquerda brasileira”.[3]

Assista também

[1] https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/vice-presidente-do-pt-diz-que-dilma-nao-tem-mais-relevancia-eleitoral?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter

[2] https://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/10/1931 75-lula-diz-que-esta-perdoando-os-golpistas-e-trara-democracia-de-volta.shtml

[3] BIONDI, Pablo. Operação Lava Jato e luta de classes: forma jurídica, crise política e democracia liberal. São Paulo: Sundermann, 2021, p. 192.