Cleuton Araújo, de Fortaleza (CE)
“Canto para anunciar o dia
Canto para amenizar a noite
Canto pra denunciar o açoite
Canto também contra a tirania
Canto porque numa melodia
Acendo no coração do povo
A esperança de um mundo novo
E a luta para se viver em paz!”
(Trecho do samba Minha Missão, de Paulo César Pinheiro e João Nogueira)
Nascido e criado no subúrbio carioca, neto de uma índia guarani, Paulo César Francisco Pinheiro é, sem dúvida, um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. Com incrível talento com as palavras, escreveu mais de duas mil letras de música (sozinho ou muito bem acompanhado). Entre seus parceiros, podemos citar Pixinguinha, João de Aquino, Baden Powell, Aldir Blanc, João Nogueira, Tom Jobim, Eduardo Gudin, Mauro Duarte, Carlos Lyra, Raphael Rabello, Dori Caymmi, Guinga, Elton Medeiros, Wilson das Neves, Edu Lobo, Francis Hime, Roque Ferreira, Ivan Lins, Yamandu Costa, dentre outros tantos bambas.
Sua primeira parceria com João de Aquino, Viagem, foi escrita aos 14 anos. Conta que “fazia poemas e cantava os poemas para decorar, então fazia música sem saber“. Nessa mesma época é apresentado ao violonista Baden Powell por João de Aquino. Aos 16 anos, escreve a letra para Lapinha – um lamento de Besouro, personagem mítico das rodas de capoeira da Bahia (eternizado no imaginário popular). Daí “Baden se encantou comigo. Me levou a todos os lugares. Conheci a noite carioca e todos os compositores com Baden”, conta. Lapinha vence a Primeira Bienal do Samba, em 1968, com uma interpretação magistral de Elis Regina. Após o estrondoso sucesso, Paulo César, com então 20 anos, começa a ser requisitado por inúmeros intérpretes. A parceria com Baden Powell rendeu cerca de cem canções.
Fascinado com a obra de Guimarães Rosa, o jovem Paulo César compõe Sagarana. Tom Jobim, ao ouvir a canção em um festival, propõe parceria e surge então Matita Perê, que é uma espécie de continuidade de Sagarana. Nós “amávamos autores regionais mais que os urbanos. E Guimarães Rosa acima de todos. Li toda a obra de Guimarães dos treze aos quinze anos, com tamanha paixão que escreveria em seu estilo”. Posteriormente, com este mesmo enredo, Paulo César escreve o romance Matinta, o Bruxo.
Já com o companheiro e parceiro João Nogueira surgem várias pérolas, dentre elas Espelho e o que Paulo chama de Trilogia do Alumbramento: Súplica, O Poder da Criação e Minha Missão. Também em coautoria com João Nogueira, ele escreve Xingu, que homenageia o cacique Raoni e a causa indígena.
Paulo César afirma que teve muito problema com a censura, nos tempos da ditadura militar. E “era uma batalha para driblar os caras, dizer as mesmas coisas com outras palavras, dar o mesmo sentido da frase eliminada no verso substituído”. Em seus shows, as primeiras filas do teatro eram ocupadas pelos censores. Também conta que, como produtor musical, percebeu que algumas músicas eram liberadas de imediato enquanto outras demoravam e tinham diversos versos censurados. Para burlar tal modus operandi, resolveu enfiar “a música [Pesadelo] no meio de uma pasta que tinha as músicas de um disco do Agnaldo Timóteo e que um rapaz ia levar para a censura avaliar. Passou, veio tudo liberado, sem ressalvas”. Pesadelo, que foi gravada pelo MPB4, é uma canção de repúdio escancarado ao regime. Foi “a música mais poderosa de contestação que se apresentou durante a ditadura. Foi o hino da guerrilha do Araguaia, contado a mim por quem lá esteve e sobreviveu”, recorda.
“E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí…
Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente, olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo troco”
Com Maurício Tapajós, emplacou a música Tô Voltando, inspirada na saudade que o músico tinha de casa ao sair em turnê. E lembra que “no primeiro avião que trazia uma leva de exilados anistiados, todas as pessoas vinham cantando. Você faz a música inspirado em um fato, e o povo faz a música virar outra coisa. Virou hino da anistia, o que me comoveu de ir às lágrimas“.
Em 1974, Paulo, juntamente com Gudin e Márcia, realizam o show O Importante é que a Nossa Emoção Sobreviva. O trabalho, engajado na resistência à ditadura, marcou toda uma geração. Sobre isso, ele comenta “éramos jovens, e como todos naquela época, lutávamos para mudar o mundo, denunciávamos injustiças, encarávamos o poder autoritário de uma ditadura sangrenta e obscura” através de “nossa arte”.
Os anos passaram, mas a revolta com as injustiças sociais segue viva no coração do poeta. Podemos notar isso na belíssima O Dia em que o Morro Descer e não for Carnaval, feita em parceria com Wilson das Neves.
“O dia em que o morro descer e não for carnaval
Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
E cada uma ala da escola será uma quadrilha
A evolução já vai ser de guerrilha
Que a alegoria é um tremendo arsenal
O tema do enredo vai ser a Cidade Partida
No dia em que o couro comer na avenida
Se o morro descer e não for carnaval
O povo virá de cortiço, alagado e favela
Mostrando a miséria sobre a passarela
Sem a fantasia que sai no jornal
Vai ser uma única escola, uma só bateria”
Em relação a fazer sambas, Paulo César diz que aprendeu o ofício, de fato, na Mangueira. E foi na Portela que conheceu Clara Nunes, com quem foi casado por oito anos (até sua precoce morte em 1983). Clara Nunes eternizou vários destes sambas como, por exemplo, As Forças da Natureza (parceria de Paulo e João Nogueira), O Canto das Três Raças e Portela na Avenida (ambas em parceria com Mauro Duarte).
Paulo César também é, possivelmente, o único compositor brasileiro a dedicar todo um disco a um capoeirista, Capoeira de Besouro (2010). A capoeira nasceu e morrerá revolucionária, afirma o artista.
Em 1985, casou-se com a musicista Luciana Rabello (irmã do violonista Raphael Rabello), tornando-se também sua parceira em diversas canções.
Em uma época de pouca reflexão e consumismo desenfreadamente irracional, inclusive da arte, o Poeta, em oposição à realidade tangível, defende a importância do ócio para a criação da arte. E torce para que a emoção sobreviva.
Os amantes do samba e da música popular reconhecem na obra de Paulo César Pinheiro um alicerce sólido da cultura brasileira. Sua vastíssima obra, que além da música inclui poesia, romance e teatro, segue viva e presente em todos os cantos do país.
Para ouvir
Viagem, Lapinha, Violão Vadio, Refém da Solidão, Vou Deitar e Rolar, Aviso aos Navegantes, Lá se vão meus anéis, Vento Bravo, Pesadelo, Cicatrizes, Matita Perê, Espelho, Tô voltando, As Forças da Natureza, Portela na Avenida, O Canto das Três Raças, O Poder da Criação, Minha Missão, Súplica, O Samba é Meu Dom e O Dia em que o Morro Descer e não for Carnaval.
Principais Referências
Histórias das Minhas Canções, de Paulo César Pinheiro (Leya, 2010).
Paulo César Pinheiro – Letra e Alma, de Andrea Prates e Cleisson Vidal (documentário, 2021).