Daniela do Waguinho e Marcelo Freixo
Maria Costa

As manifestações golpistas da última semana, pela sua dimensão e gravidade, tiraram o foco de um escândalo que começou poucos dias depois da posse do atual presidente, a nomeação de Daniela do Waguinho, esposa do prefeito de Belford Roxo, o Waguinho, para ministra do Turismo. Daniela e seu marido têm na sua ficha inúmeras suspeitas de ligação a grupos milicianos, que incluem não só fotos de campanha como milicianos condenados trabalhando, por nomeação, na prefeitura.

O PT e a frente ampla se colocaram desde o início da campanha eleitoral como a solução para enfrentar o avanço das milícias, não só no Rio de Janeiro, mas também no seu assalto ao poder federal. Assim a nomeação de Daniela, compreensivelmente, causou espanto e revolta em muitos ativistas que, honestamente, e com muito esforço, tocaram a campanha de Lula ao longo de quase todo 2022. Mas não foi só a atitude de Lula que causou desconcerto e espanto, mas também a de integrantes do novo governo que tiveram o seu percurso marcado pelo combate às milícias, Marcelo Freixo e Anielle Franco, ou de Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos, e reconhecido como um dos grandes especialistas brasileiros acerca da questão racial.

A sessão de posse de Anielle e Sônia Guajajara foi carregada de simbolismos, e depois de 4 anos de barbárie bolsonarista, é difícil não emocionar, até mesmo quem não confia neste governo. Mas não é possível também não sentir a contradição entre o discurso de Anielle e a foto que tirou junto com Daniela do Waguinho, a quem se referiu como querida Dani: “Desde o dia 14 de Março de 2018, dia em que tiraram a Marielle da minha família e da sociedade brasileira, tenho dedicado cada minuto da minha vida a lutar por justiça, defender a memória, multiplicar o legado e regar as sementes da minha irmã(…) nós estamos aqui porque a gente tem um projeto de país, um projeto de país onde uma mulher negra possa acessar e permanecer em diferentes espaços de tomada de decisão sem ter a sua vida ceifada com cinco tiros na cabeça”

Também causa desconcerto que Freixo, a grande referência pública do combate às milícias, tenha minimizado a relação de Daniela com estas organizações criminosas, e aceite estar num cargo que a tem como superior hierárquica.[1]

O que são as milícias? São fundadas as suspeitas da ligação de Daniela do Waguinho com milicianos? Em sendo, o que mudou (ou não) na política do PT, do PSOL, de Freixo e da própria Anielle, para apoiarem a presença de uma ministra com ligações à milícia? são as perguntas que tentaremos responder neste artigo.

As Milícias

Esse debate das milícias representa o debate mais sério que nós temos e que vai muito além de um debate de segurança pública, é um debate sobre estado, sobre crime organizado, sobre corrupção, sobre estado democrático de direito e poder representativo. Diz respeito a uma das crises mais profundas do poder público no Rio de Janeiro, diz respeito ao verdadeiro estado paralelo, e o verdadeiro crime organizado que é aquele que se estabelece dentro do poder público para atender interesses privados.”

Estas são palavras do deputado estadual Marcelo Freixo, numa sessão da ALERJ sobre a CPI das milícias, aberta pouco tempo depois da tortura e assassinato de dois jornalistas do Dia, por uma milícia na favela do Batan. Cerca de um ano antes Freixo tinha protocolado um pedido de CPI motivado, segundo ele mesmo, pelo recente assassinato do irmão por um grupo miliciano, e por terem sido eleitos vários deputados ligados à milicia nesse mandato.

A CPI das milícias foi, dentro dos limites próprios de um processo parlamentar, um marco importantíssimo para a compreensão da dimensão que essas organizações criminosas ocupavam no Rio, do seu alcance político e dos seus métodos bárbaros. Foi fundamental para iniciar um processo de conscientização da população de que a milícia não é “um mal menor”. Também garantiu o desenvolvimento de investigações que levaram à condenação e prisão de importantes chefes milicianos como Jerominho, Natalino, Beto Bomba, Cristiano Girão, entre outros. Essas condenações e prisões, sendo muito importantes, não acabaram com as milícias no Rio e também não impediram a sua expansão. Nos últimos 16 anos as milícias aumentaram seus territórios em 387,3% e são hoje o maior grupo criminoso do Rio de Janeiro.

Antes de avançar, relembramos o que está por trás do conceito milícia. Centralmente, as milícias são uma associação criminosa com fins lucrativos, de agentes de segurança pública, em associação com elementos de todos os três poderes, legislativo, executivo e judiciário. São compostas também por civis e, inclusive, alguns grupos milicianos são chefiados por civis, como o caso do bando do Ecko, mas a conexão orgânica com o aparato do Estado é fundamental para garantir a sua atuação e impunidade.

O objetivo central dos grupos milicianos é o lucro, e tudo o que possa dar lucro pode ser seu alvo, inclusive o tráfico de drogas. No entanto, elas surgem por via da ilegalização de serviços que são na sua origem legais, e /ou pelo estabelecimento de monopólios territoriais de vários serviços, nomeadamente “taxas de segurança”, venda de gás, distribuição de internet, construção imobiliária, extração e comercialização de areia, coleta e descarte irregular de lixo. O monopólio destes negócios estabelece-se, de forma semelhante às facções de narcotraficantes, pelo domínio territorial armado.

Como disse o próprio Freixo em entrevista ao jornalista Bruno Paes Manso, publicada em 2021: “Hoje a milícia com o avanço que tem em relação ao Rio de Janeiro compromete a economia do Rio de Janeiro inteira, não é um problema de polícia, é muito mais complexo, então por exemplo o gás, que é um bem fundamental para as famílias, a gente fala muito do auxílio emergencial, da compra de cestas básicas… você compra uma cesta básica mas para cozinhar você depende do gás que a milícia vende, e aí o gás é caríssimo no Rio de Janeiro porque a milícia inflaciona o gás. Depois a política, então ela tem um projeto de poder, de eleger gente.[2]

A relação de Daniela do Waguinho com milícias

As relações de Waguinho, prefeito de Belford Roxo, e da sua esposa Daniela, com milicianos são inúmeras, vamos listar aqui apenas as mais flagrantes e que demonstram que essa relação não pode ser minimizada.

O caso que mais causou alvoroço na imprensa foi o de Juracy Alves Prudêncio, o Jura, ex-PMERJ indiciado na CPI das milícias e posteriormente condenado a 22 anos de prisão. No relatório da CPI Jura é tido como líder de um grupo de 70 milicianos que atuava na região de Nova Iguaçu, o “bando do Jura”. Para além da exploração irregular de serviços de segurança, gás, sinal de TV a cabo, água, moto táxi e vans, Jura e o seu bando ameaçavam os moradores da região a votar nele para vereador. Também fizeram ameaças de morte a Freixo e ao delegado da Polícia Federal Robson Dartagnan Nunes Barbosa, responsável pela apuração da denúncia de que Jura realizava segurança clandestina.[3]

Em 2018, Jura participou da campanha de Daniela para deputada federal, havendo várias fotos dos dois entregando santinhos da candidata. Pouco tempo depois da eleição, mesmo estando cumprindo pena de prisão em semiaberto, Jura foi nomeado como diretor do departamento de ordem pública da prefeitura de Belford Roxo, dirigida por Waguinho desde 2017.

Outro que, em 2018, fez campanha e tirou foto com Daniela foi o ex-PMERJ Márcio Rodriguez, mais conhecido como Marcinho Bombeiro, preso em 2019 por duplo homicídio e suspeita de chefiar milícia. Familiares de Marcinho foram nomeados para cargos da prefeitura de Broxo em 2021 e 2022.

Quem também fez campanha para Daniela, em 2022, foi Fabinho Varandão, vereador de Broxo, muito próximo ao atual prefeito, como pode ser visto em centenas de fotos nas suas redes sociais. Varandão foi preso no final de 2018 acusado chefiar uma milícia que atua em 10 bairros da cidade e monopoliza serviços como sinal clandestino de internet, venda de gás de cozinha e de cigarros contrabandeados. Neste momento responde ao processo em liberdade.

Existem várias denúncias de uso de violência e coação por parte da campanha de Daniela. Uma das denúncias veio inclusive de uma candidata do PT em 2018, Tainá Sena, que protocolou BO na 54ª DP, registrando agressões físicas dos seguranças da campanha dos candidatos do MDB a deputados estadual Márcio Canella e a federal Daniela do Waguinho:  “Além dela, outras quatro pessoas da campanha da petista também ficaram feridas. Segundo a candidata, ela falava ao microfone sobre uma possível coação que funcionários da prefeitura estariam sofrendo ameaças de exoneração caso não fizessem campanha para os candidatos do prefeito quando começou a confusão. (…) Eles estavam armados e deram tiros para o alto. O Waguinho, a Daniela e o Canella ficaram de longe, rindo – conta Tayná. (…) Disseram que se eu levasse essa história para frente eu não terminaria essa campanha viva.”[4]

Outra denúncia veio a público na campanha de 2022, desta vez pelos candidatos a deputado estadual Danielzinho (PSDB) e Sula do Carmo (Avante) que relataram agressões atribuídas ao grupo de Daniela, quando faziam uma caminhada no bairro Roseiral. Na confusão, uma mulher grávida se feriu e perdeu o bebê.[5]

A conformação de curral eleitoral

No relatório final da CPI das milícias há um capítulo dedicado ao desempenho eleitoral de candidatos ligados à milícia, na introdução deste capítulo está escrito o seguinte:

Ao analisar esses dados, mapas de votações, particularmente nas eleições proporcionais, percebem-se padrões de concentração de votos em diversos locais denunciados por fontes variadas como sendo áreas controladas por milícia. (…)

Aqueles locais nos quais os objetos de investigação da CPI apresentavam uma concentração igual ou superior a 15% foram apontados como tendo elevada concentração de votos. Se analisarmos o histórico eleitoral no país, observaremos que o padrão médio de concentração de votos por local de candidatos em eleições proporcionais varia em torno de 10% quando não há curral eleitoral.

Daniela foi só a candidata proporcional que registrou o maior domínio eleitoral numa cidade média ou grande em 2022, tendo obtido 49% dos votos válidos de Belford Roxo. A CPI considerou um percentual de 15% de votos por zona eleitoral como elevado, no entanto está bem abaixo dos percentuais de Daniela: o percentual mínimo que obteve em Broxo foi de 32,6%, no Complexo Educacional Arco-Íris e chegou a 60,3% dos votos válidos na Escola Júlio César de Andrade Gonçalves.[6]

Se a todos estes dados juntarmos o aumento exponencial do patrimônio declarado por Daniela à Justiça Eleitoral: 62% entre 2018 e 2022: de R$ 450.817,66 em 2018 para R$ 733.291,33 —sendo R$ 180 mil em dinheiro vivo[7], fica bastante evidente que a relação com as milícias não é um mero problema da prefeitura de Broxo, como declarou Freixo.

O que justifica a aliança do PT, Freixo e Anielle com Daniela do Waguinho?

A ligação do PT com grupos torpes da política fluminense não é inédita. O PT fez parte do governo do Rio de 1999, até 2014, sempre em coligação com o MDB e vários partidos de direita e mesmo reacionários, partidos com inúmeros integrantes ligados a grupos milicianos. Essas conexões sempre tiveram o aval de Lula. Aliás, o crescimento exponencial das milícias se dá justamente nos governos de Garotinho e Sérgio Cabral, integrados pelo PT.  Assim, não nos espanta que Lula tenha aceito se aproximar politicamente de Daniela e Waguinho em troca de palanque eleitoral. Waguinho foi o único prefeito da Baixada Fluminense a declarar e fazer campanha para Lula no segundo turno.

Já o caso de Marcelo Freixo, é diferente, como escrevemos em outro artigo: “Sem nunca ter sido socialista, Freixo se construiu como um defensor dos Direitos Humanos, se enfrentando com a milícia do Rio e denunciando a violência policial contra as comunidades. Nós do PSTU desde antes alertávamos que sua luta, mesmo sendo louvável, apresentava sérios limites. Freixo alimentava a ideia que seria possível resolver os problemas de violência policial, para-policial (as milícias) e dos grandes negócios burgueses ilegais (tráfico de drogas e armas, jogos ilegais, etc.) sem atacar o próprio capitalismo. Alimentava a ilusão que “outra cidade” seria possível sem se enfrentar com o empresariado do turismo, dos transportes, das construtoras. Para nós, a milícia era e continua sendo parte da podridão deste sistema que precisamos destruir.

Com a chegada de Bolsonaro à presidência Freixo iniciou um processo de aproximação com vários políticos liberais em nome do combate ao neofascismo. Esse processo o aproximou de Rodrigo Maia, filho de César Maia, na construção da PEC emergencial na pandemia, e mais tarde do próprio César Maia, já quando se encontrava no PSB, que foi seu vice na candidatura a governador do estado. César Maia, o mesmo que foi acusado por Freixo em 2008, de fortalecer as milícias no Rio, virou aliado para o combate à extrema-direita e às próprias milícias.

A relação com Daniela do Waguinho é mais um passo no mesmo sentido, agora aparentemente, para Freixo e mesmo para Anielle Franco, é justificável a unidade com gente ligada à milícia, desde que sejam supostamente contra o bolsonarismo.

Não existe milícia do bem, independentemente de fazer o L ou arminha, a milícia é o pior tipo de crime organizado que existe, pois se impõe pela extorsão da classe trabalhadora mais pobre, pelo medo, pela ameaça à vida e a integridade física da população que domina.

Para combater a fundo as milícias, o bolsonarismo e agora também os setores golpistas, é fundamental a ação consciente da classe trabalhadora. O primeiro passo dessa ação é a independência de classe, e, mesmo nos raros momentos em que seja necessária alguma ação comum com setores burgueses (como a unidade de ação contra um golpe, por exemplo), ter nítido que a classe trabalhadora não pode e não deve se misturar, nem política nem organizativamente com a burguesia. A crença de Freixo de que era necessária uma frente amplissima para derrotar Bolsonaro, que ele disse (e nisso nós concordamos com ele) que era um aliado das milícias, uma expressão das milícias no poder, levou ele, Freixo, a estar junto com uma… miliciana. A lógica implacável da conciliação de classes, deu um fruto amargo e irônico.

 

 

[1] Eu acho que cabe a ela falar sobre isso. Minha relação com ela é muito recente, mas muito boa e de muito diálogo. Não muda em nada e pelo que eu li da defesa, isso tinha mais a ver com a prefeitura [de Belford Roxo] do que com ela. (declaração de Freixo)

[2] Podcast República das Milícias, episódio 6, Tudo Azul

[3] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/01/milicia-de-ex-pm-que-fez-campanha-para-ministra-do-turismo-ameacou-freixo-de-morte-diz-mp.ghtml

[4] https://extra.globo.com/noticias/brasil/candidata-deputada-pelo-pt-acusa-seguranca-de-adversarios-de-agressao-em-belford-roxo-23116814.html

[5] https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/10/06/rj-parentes-de-prefeitos-dominam-votos-para-o-legislativo-em-suas-cidades.htm

[6] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/01/ministra-de-lula-desgastada-por-elo-com-milicianos-teve-dominio-local-recorde-de-votos-no-pais.shtml

[7] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/04/quem-e-daniela-do-waguinho.htm