Jean-Jacques Marie é militante trotskista e um dos maiores especialistas franceses em URSS | Foto: Divulgação
Redação

O primeiro tomo da coleção Havia alternativa ao stalinismo?, de Vadím Rogóvin, chegou ao Brasil pela Editora Sundermann. O livro dá início à publicação dos sete volumes produzidos pelo historiador e sociólogo russo ao longo da década de 1990. A pré-venda já está disponível no site da Editora. Clique aqui.

O objetivo Rogóvin era retratar a história da oposição marxista revolucionária e as lutas políticas no interior da União Soviética durante as décadas de 1920 e 1930, ou seja, a verdadeira história do combate ao stalinismo na União Soviética, que tem início com a Oposição de Esquerda, em 1923, e vai até o pacto Stálin-Hitler, em 1939, no início da Segunda Guerra Mundial, e o assassinato de Leon Trotsky, em 1940.

Estamos disponibilizando, em primeira mão, o texto de Jean-Jacques Marie de apresentação dessa obra inédita no Brasil, já à venda pela Editora Sundermann.

Uma obra de amplitude impressionante…

Jean-Jacques Marie[1]

No dia seguinte à queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Vadím Rogóvin se lançou numa grande empreitada: redigir e publicar sete volumes consagrados à história do combate ao stalinismo na URSS, desde os primeiros passos da Oposição de Esquerda, em 1923, até a aliança entre Stálin e Hitler, em agosto de 1939, e o assassinato de Trotsky, em 20 de agosto de 1940. Esse trabalho resultou na publicação de seis volumes em vida, antes da sua morte na noite de 17 para 18 de setembro de 1998. Ele havia concluído então quatro quintos do sétimo volume, o qual foi completado com base em suas anotações por sua esposa e seu assistente, Marc Goloviznin. Os sete volumes têm o duplo mérito de fornecer uma análise concreta detalhada do surgimento e da natureza da contrarrevolução stalinista e da atividade dos trotskistas na URSS até seu massacre. Nesse sentido, constituem uma fonte de conhecimento e reflexão incomparável.

Para este enorme trabalho, sem paralelo na Rússia de então e de hoje, Vadím Rogóvin utilizou a massa dos documentos publicados na URSS a partir de 1998; os documentos dos arquivos parcialmente abertos; e, evidentemente, o Boletim da Oposição, publicado por Trotsky de 1929 até a sua morte, que naturalmente só podia entrar na URSS de forma clandestina e, portanto, rapidamente ficou desconhecido. Para apreciar o porte desse trabalho, é preciso recordar a forma como o stalinismo difamou, caluniou e caricaturou a luta daqueles que se denominavam “bolcheviques-leninistas”, todos massacrados em 1938 e 1939, com duas ou três raríssimas exceções. Ainda que a historiografia oficial, a partir de 1956, tenha parado de apresentar os trotskistas como agentes dos serviços secretos alemão, japonês e outros, ela os classificava sempre como inimigos do “socialismo”.

O historiador russo Mikhail Voiekov, em uma resenha da obra de Vadím Rogóvin, escrita um ano após sua morte, afirma: “A amplitude deste trabalho é realmente impressionante. Sua história da União Soviética até a Segunda Guerra Mundial ultrapassa de longe, por sua profundidade e por seu alcance, tudo que foi escrito até hoje na Rússia”. E precisa:

O mais importante é que o leitor russo encontra nos livros de Rogóvin uma história completamente diferente daquela que costumava ler na época soviética, bem como daquela que tentam impor hoje a um público crédulo de ideólogos prontos a virar a casaca e uivar com os lobos.[2]

A empreitada a que então se lançou Vadím Rogóvin foi ainda mais notável por ir contra a corrente da moda midiática. Na época, os paladinos da burocracia eram com frequência reconvertidos em paladinos da dita “democracia” burguesa e da propriedade privada, portanto da “liberalização” que se traduziu, no decorrer dos anos 1990, numa privatização selvagem e num desmoronamento social sem precedentes, demarcados por uma denúncia histérica da Revolução de Outubro.

Voiekov sublinha:

O monopólio ideológico existe hoje como ontem. Antes era simplesmente stalinismo, depois (sob Bréjnev) o “stalinismo elucidado”; hoje, é a ideologia ieltsiniana, que se reduz ao cinismo do dinheiro. Se antes o ditame ideológico era feito pelo Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e pela KGB, hoje ele passa pelo grande capital mafioso e pela mídia que ele compra.[3]

A situação se agravou ainda mais sob Putin, com o desenvolvimento de uma corrente ultranacionalista, organizada simultaneamente por uma força policial corrupta, a serviço de oligarcas, de uma Igreja ortodoxa também profundamente corrupta e de um Partido Comunista da Federação Russa, herdeiro do velho PCUS, que tem como uma das atividades principais a caça a trabalhadores migrantes, super explorados, vindos das antigas repúblicas soviéticas (Uzbequistão, Cazaquistão, Tajiquistão, Quirguistão) e denunciados por esses herdeiros do stalinismo, aliados à Igreja ortodoxa, como elementos criminosos.

O nacionalismo chauvinista proclamado por Putin e seu clã exige, de forma mais ampla, uma reformulação da história e a definição de uma política memorial oficial voltada a controlar a história e os historiadores. O ministro de Situações de Emergência da época, Serguei Choigu, mais tarde nomeado ministro da Defesa, declarou em 24 de fevereiro de 2009, numa reunião de antigos combatentes, que o Parlamento deveria “adotar uma lei contra aqueles que negassem a vitória da URSS na Grande Guerra Patriótica”. Um projeto de lei nesse sentido, apresentado na Duma, prevê sanções contra quem o fizer.

Em 19 de maio de 2009, o presidente Medvedev, mero executivo de Putin, criou uma “comissão voltada a combater as tentativas de falsificação da história em prejuízo dos interesses da Rússia”, encarregada de reunir e analisar as informações sobre “a falsificação de fatos e eventos históricos realizada com o objetivo de manchar o prestígio da Federação Russa no cenário internacional” e de elaborar “uma estratégia voltada a contra-atacar as tentativas de falsificação”[4]. O nome da comissão destaca que ela perseguirá (supostas) tentativas de falsificação que afetem os “interesses da Rússia”, ou seja, de seu governo. As que favorecem esses interesses podem frutificar em paz.

A composição da comissão ressalta sua alta função policial: sob a presidência do chefe administrativo da Presidência, Serguei Narychkin, ela engloba representantes do FSB (antiga KGB), do Serviço de Inteligência Estrangeiro, do Conselho de Segurança, do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Justiça, incluindo o chefe do estado-maior das Forças Armadas e Serguei Markov, vice-presidente da comissão parlamentar responsável pelas associações e organizações religiosas. Só três de seus vinte e oito membros são historiadores, entre eles Aleksandr Tchubarian, diretor do Instituto de História Geral da Academia de Ciências da Rússia, e uma historiadora um tanto especial: a senhora Narotchnitskaia, vice-presidente da Comissão das Relações Exteriores da Duma e diretora do Instituto Andrei Sákharov[5] de História Russa da Academia de Ciências da Rússia.

Em um livro publicado na França, ela apresenta as conquistas territoriais do tzarismo ao longo dos séculos XVIII e XIX (a divisão da Polônia pela Rússia, Prússia e Áustria-Hungria, a conquista sangrenta do Cáucaso e de toda a Ásia Central) como “incontestáveis e legítimas, adquiridas em plena conformidade com as normas legais da época”[6].

Nessa atmosfera de reação, a denúncia do trotskismo e dos trotskistas vai de par com a da própria Revolução Russa. Assim, segundo um tal de Semanov, em 1917 Trotsky teria sido financiado pelo Estados Unidos para desencadear uma revolução na Rússia que permitisse aos Estados Unidos pôr as mãos em uma parte do império russo. No mesmo espírito, um tal de Victor Lupan afirma que o verdadeiro inspirador e dirigente da Revolução de Outubro não foi o russo Lênin, figura, segundo ele, essencialmente decorativa, mas o cosmopolita Trótski.

No ocidente, a Revolução Russa é difamada de forma mais moderada, mas ainda é caricaturada ao ser apresentada como um simples golpe de Estado. Entretanto, o governo provisório, nomeado por uma câmara do império, a Duma, cujo mandato terminou em 1916, não tinha como legitimidade senão o apoio dos sovietes. Ora, os bolcheviques tomaram o poder em 26 de outubro de 1917 com a concordância, manifestada em votação, do II Congresso dos Sovietes. Detalhe significativo, mas raramente – se é que alguma vez – citado pelos historiadores, o dirigente dos mencheviques de direita, Lieber, durante o congresso extraordinário dos mencheviques, reunido de 30 de outubro a 7 de novembro, pronunciou uma acusação política contra os bolcheviques que difere radicalmente do que costumam afirmar seus adversários: ele os acusou de estarem a reboque das massas, o que não é exatamente característico de conspiradores organizando um golpe de Estado!

É uma mentira dizer [exclama ele] que as massas seguem os bolcheviques. Ao contrário, são os bolcheviques que seguem as massas. Eles não têm programa algum. Eles aceitam tudo o que as massas apresentam. Eis por que é evidente que eles deviam vencer lá onde nós não pudemos vencer. Nós, nós devíamos mostrar aos trabalhadores que suas reivindicações eram irrealizáveis. Os bolcheviques aceitam tudo deles, eis por que a esperança de que sejam abatidos em breve me parece falsa. Pode ser abatido quem tem um programa. Mas é impossível vencer aqueles que não têm programa e estão prontos a pôr sua assinatura embaixo de qualquer palavra de ordem das massas.[7]

Além de sua defesa e ilustração da legitimidade histórica da revolução, um dos méritos de Vadím Rogóvin é o de ter mostrado e demonstrado que a violenta repressão desencadeada por Stálin e seus lacaios (Mólotov, Kaganóvitch etc.) não foi ditada pela paranoia, com frequência evocada pelos literatos burgueses, mas respondeu, por meios terroristas e pela calúnia histérica, a uma insatisfação real das massas e a uma atividade dos oposicionistas trotskistas – e outros, mas em primeiro lugar dos trotskistas –, muito perigosas para a pilhagem e a camarilha reacionária no poder. Esta usou todos os meios para impedir a junção entre a insatisfação real que existia nas massas e a atividade dos trotskistas e, ao mesmo tempo, ao apresentar estes como agentes dos serviços secretos estrangeiros, buscou isolá-los da classe trabalhadora no resto do mundo. Esse foi o objetivo principal dos três processos de Moscou. Isso é o que Vadím Rogóvin demonstra com muita clareza.

Após resumir em seu artigo o conteúdo dos sete volumes de Rogóvin, Mikhail Voiekov escreveu: “Contá-los não faz sentido, é preciso os ler. Ainda mais porque são escritos com clareza e simplicidade. Eles se leem, como se diz, num só trago”[8]. Quase um quarto de século depois, o trabalho de Rogóvin guarda, de fato, toda sua atualidade. A defesa da revolução, estrangulada e caricaturada pela burocracia stalinista reacionária, na verdade é mais atual do que nunca, já que a decomposição do capitalismo assume uma amplitude mortal.

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[1] Jean-Jacques Marie é militante trotskista, formado em Letras Clássicas e em História e diplomado em russo no Institut National des Langues et Civilisations Orientales da Universidade Sorbonne. É um dos maiores especialistas franceses em urss. É membro do conselho editorial dos Cadernos do Movimento Operário, publicados no Brasil pela Editora Sundermann e pela wmf Martins Fontes, e colaborador das revistas L’Histoire e La quinzaine littéraire. Entre suas obras publicadas, estão as biografias de Stálin, Lênin e Trotsky e História da Guerra Civil Russa.

[2] Voiekov, Mikhail. Ala recherche d’une conception historique alternative. In: Cahiers d’histoire du mouvement ouvrier. No 7, p. 9.

[3] Ibid.

[4] Courrier International, 28 de maio – 3 de junho de 2009.

[5] Assim, o nome do dissidente Sákharov serve aqui para camuflar e garantir uma operação policial política e intelectual oposta à ação realizada pelo próprio Sákharov até sua morte!

[6] Narotchnitskaia, N. Que reste-t-il de notre victoire? p. 123.

[7] Kentavr, no 2, 1994, p. 71.

[8] Cahiers du mouvement ouvrier, op. cit, p. 11.